Coleção
AMOR E PSIQUE
O
feminino
• Aborto - perda e renovação, Eva
Pattis
• A prostituta sagrada, N.
Q. Corbett
• As deusas e a mulher, J.
S. Bolen
• A virgem grávida, Marion
Woodman
• Caminho para a iniciação feminina, S. B.
Perera
• Destino, amor e êxtase, J. A.
Sanford
• Os mistérios da mulher, Esther
Harding
• O medo do feminino, E.
Neumann
• Variações sobre o tema
mulher, J. Bonaventure
O
masculino
• A busca fálica, J.
Wyly
• A tradição secreta da
jardinagem, G. Jackson
• Castração e fúria masculina, E.
Monik
• Curando a alma
masculina, G. Jackson
• Falo, a sagrada imagem
do masculino, E. Monik
• Hermes e seus filhos, R.
L. Pedraza
• Os mistérios da sala de estar,
G.
Jackson
• Sob a sombra de Saturno,
J. Hollis
Psicologia
e religião
• A doença que somos nós, J. P.
Dourley
• A jornada da alma, J.
A. Sanford
• Bíblia e Psique, E. F.
Edinger
• Deus, sonhos e revelação, M.
Kelsey
• Do inconsciente a Deus, E.
van der Winchel
• Uma busca interior em
Psicologia e religião, J.
Hillman
Sonhos
• Aprendendo com os
sonhos, M. R. Gallbach
• Breve curso sobre os
sonhos, R. Bosnak
• Sonhos e ritual de cura,
C. A. Meier
• Sonhos de um paciente
com AIDS, R. Bosnak
• Os sonhos e a cura da
alma, J. A. Sanford
• Sonhos e gravidez, M.
R. Gallbach
Envelhecimento
• A passagem do meio, J.
Hollis
• A solidão, A.
Storr
• A velha sábia, R.
Weaver
• Despertando na
meia-idade, K. A. Brehony
• Envelhecer, J. R.
Pretat
• Meia-idade e vida, A.
Bermann
• Menopausa, tempo de
renascimento, A. Mankowitz
• O velho sábio, P.
Middelkoop
Contos
de fada e histórias
mitológicas
• A individuação nos contos de fada, M.-L.
von Franz
• A interpretação dos contos de fada, M.-L.
von Franz
• A sombra e o mal
nos contos de fada, M.-L. von Franz
• Gato, M.-L. von
Franz
• O que conta o conto?, J.
Bonaventure
• O significado arquetípico de Gilgamesh, R. S.
Kluger
O
puer
• O livro do puer, J.
Hillman
• Puer aeternus, M.-L.
von Franz
Relacionamentos
• Amar, trair, A.
Carotenuto
• Eros e pathos, A.
Carotenuto
• Incesto e amor humano, R.
Stein
• Não sou mais a mulher
com quem você se
casou, A. B. Filenz
• No caminho para as núpcias, L. S.
Leonard
• Os parceiros invisíveis, J. A.
Sanford
Sombra
• Mal, o lado sombrio da
realidade, J. A. Sanford
• Os pantanais da alma, J.
Hollis
• Psicologia profunda e
nova ética,
E.
Neumann
Outros
• Ansiedade cultural, R.
L. Pedraza
• Alimento e transformação, G.
Jackson
• Conhecendo a si mesmo, D.
Sharp
• Consciência solar, consciência lunar, M.
Stein
• O caminho da transformação, E.
Perrot
• Meditações sobre os 22 arcanos
maiores do tarô, anônimo
• O despertar de seu
filho, C. de Truchis
• No espelho de Psique, E.
Neumann
• Psicoterapia, M.-L.
von Franz
• Psiquiatria junguiana, H.
K. Fierz
• Rastreando os deuses, J.
Hollis
MARIE-LOUISE
VON FRANZ
A
INTERPRETAÇÃO DOS CONTOS DE FADA
Título original
L'lnterprétation des "contes de Fée"
©
Marie-Louise von Franz, 1981
Tradução
Maria Elci Spaccaquerche
Barbosa
Revisão Ivo
Stornioio
Coleção
AMOR E PSIQUE dirigida por
Dr. Léon Bonaventure - Pe. Ivo Stornioio - Profa. Maria Elci S.
Barbosa
Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro,
SP, Brasil)
Franz, Marie-Louise von, 1915-
A interpretação dos contos de fada / Marie-Louise von Franz
; [tradução Maria Elci Spaccaquerche
Barbosa; revisão Ivo
Stornioio]. — São Paulo : Paulus, 1990. — (Coleção amor e psique)
Bibliografia.
ISBN 85-349-1464-8
1. Contos de fada — História e crítica 2. Psicanálise e folclore I. Título. II. Série.
90-0587 CDD-398.042
-150.195
índices
para catálogo sistemático:
1. Contos de fada: História e crítica 398.042
2. Folclore e psicanálise 150.195
3. Psicanálise
e folclore 150.195
©PAULUS-1990
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 Tel. (11)5084-3066 www.paulus.com.br
editorial @ paulus.com.br
ISBN 85-349-1464-8
CONTRA-CAPA
Marie-Louise Von Franz, uma das mais criativas discípulas de Jung,
foi também sua colaboradora por mais de vinte e cinco anos, tendo com ele
assinado vários trabalhos. Especialista de fama mundial em interpretação de
contos de fada foi fundadora do Instituto CG. Jung, lá lecionando.
Analista de
longa experiência iniciou seus estudos no campo da filologia.
A Interpretação dos contos de fada contém as ideias básicas da autora sobre o
assunto, preparando o leitor para seus livros subsequentes. Trata-se de um
exame completo dos estudos já realizados nesse campo, retomando as várias
teorias sobre a origem, a natureza e a interpretação dos contos de fada;
apresenta uma análise detalhada de um tema específico e um capítulo especial
sobre anima, animus e sombra.
INTRODUÇÃO A COLEÇÃO AMOR E PSIQUE
Na busca de sua alma e do sentido de sua vida,
o homem descobriu novos caminhos que o levam para sua interioridade: o seu
próprio espaço interior torna-se lugar novo de experiência. Os viajantes destes
caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o
amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações
psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em
primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos
reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram da falta de amor. Por
outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e
transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim a
nossa própria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade
primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece
primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo
espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia
pode de novo estender a mão para a teologia.
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do
esforço para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito
analítico e do psicologismo, para que volte a si mesma, à sua própria
originalidade. Ela nasceu de reflexões durante a prática psicoterápica, e está
começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão
do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto
cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar
a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à
necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente
restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de sacerdotes
capazes de entenderem novamente a linguagem da alma", como C.G. Jung o
desejava.
Léon Bonauenture
PRIMEIRA PARTE
UMA INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA DOS CONTOS DE FADA
1
Teorias dos contos de
fada
Contos de fada são a expressão mais pura e mais
simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o
valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente
superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma
mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas
fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na
psique coletiva. Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais
elaborado, atingimos as estruturas básicas da psique humana através de uma
exposição do material cultural. Mas nos contos de fada existe um material
cultural consciente muito menos específico e, consequentemente, eles espelham
mais claramente as estruturas básicas da psique.
Segundo Jung, as concepções de cada arquétipo
são, na sua essência, um fator psíquico desconhecido, e por isso não há
possibilidade de traduzir seu conteúdo em termos intelectuais. O melhor que
podemos fazer é circunscrevê-lo com base em nossa própria experiência
psicológica e a partir de estudos comparativos, trazendo à luz toda a rede de
associações às quais as imagens arquetípicas estão interligadas exatamente como
aparecem. O conto de fada é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, o
seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da
história. Metaforicamente falando, o inconsciente está na mesma posição de
alguém que teve uma visão ou experiência original e quer compartilhá-la. Pelo
fato de ser um evento que nunca foi formulado conceitualmente, ele não sabe
como se expressar. Quando uma pessoa está nessa situação, faz diversas
tentativas para compreender sua experiência e tenta evocar, por apelo intuitivo
e analogia a materiais familiares, alguma resposta em seus ouvintes; e não se
cansa nunca de expor sua visão, até sentir que o conteúdo desta faz algum
sentido para eles. Do mesmo modo, podemos propor a hipótese de que cada conto
de fada é um sistema relativamente fechado, composto por um significado psicológico
essencial, expresso numa série de figuras e eventos simbólicos, sendo
desvendável através destes.
Depois de trabalhar muitos anos neste campo,
cheguei à conclusão que todos os contos de fada tentam descrever apenas um
fato psíquico, mas este fato é tão complexo, difícil e distante de se
representar em seus diferentes aspectos, que centenas de contos e milhares de
versões (como variações musicais), são necessários até que esse fato
desconhecido penetre na consciência, sem que isso consiga exaurir o tema. Este fato
desconhecido é o que Jung chama de SELF, que é a totalidade psíquica de
um indivíduo e também, paradoxalmente, o centro regulador do inconsciente
coletivo. Cada indivíduo e cada nação têm suas próprias formas de experienciar
esta realidade psíquica.
Diferentes contos de fada fornecem quadros de
diferentes fases dessa experiência. Algumas vezes eles se atêm mais aos
primeiros estágios que lidam com a experiência da sombra, apresentando somente
um pequeno vislumbre do que vem depois. Outros contos enfatizam a experiência
de animus e anima e das imagens de pai e mãe por trás deles, não
se fixando no problema anterior da sombra, nem no que viria a seguir. Outros
enfatizam o tema do tesouro
inacessível ou inalcançável, e das experiências centrais. Em termos de valor
não há diferenças entre esses contos, porque no mundo arquetípico não há
hierarquia de valores pela simples razão de que cada arquétipo é, na sua
essência, somente um aspecto do inconsciente coletivo, ao mesmo tempo que
representa, também, o inconsciente coletivo como um todo.
Cada arquétipo é um sistema energético relativamente
fechado, a veia energética pela qual correm todos os aspectos do inconsciente
coletivo. Isto não quer dizer que a imagem arquetípica seja uma imagem
estática, pois ela é sempre e ao mesmo tempo um processo típico e completo,
incluindo outras imagens de uma maneira específica. Um arquétipo é um impulso
psíquico específico que produz seus efeitos como um único raio de irradiação
e, ao mesmo tempo, um campo magnético expandindo-se em todas as direções.
Então, a energia psíquica de um "sistema" particular de um arquétipo
está em relação com todos os outros arquétipos. Consequentemente, embora
tenhamos que reconhecer a característica vaga e indefinida de uma imagem arquetípica,
precisamos no» disciplinar para polir arestas que turvam sua clareza.
Precisamos nos aproximar tanto quanto possível
do caráter específico e determinado de cada imagem e tentar expressar o
verdadeiro caráter específico da situação psíquica que ela contém.
Antes de tentar explicar a forma junguiana
específica de interpretação, vou entrar rapidamente na história da ciência dos
contos de fada e nas teorias das diferentes escolas e sua literatura. Pelos
escritos de Platão sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas
crianças histórias simbólicas — "mythoi". Desde então, os contos de
fada estão vinculados à educação de crianças. Na antiguidade, Apuleio, um
escritor e filósofo do século 2 d.C., escreveu sua famosa novela O asno de
ouro, um conto de fada chamado Amor e Psyche, uma história do tipo A bela e a fera. Este conto de
fada tem o mesmo padrão daqueles que se podem ainda encontrar, hoje em dia, na
Noruega, Suécia, Rússia e muitos outros países. Consequentemente, pode-se ao
menos concluir que este tipo de conto de fada (da mulher que redime seu amado
da forma animal) existe praticamente inalterado há 2.000 anos. Mas temos uma
informação ainda mais antiga, porque os contos de fada também foram encontrados
nas colunas e papiros egípcios, sendo um dos mais famosos o dos dois irmãos,
Anúbis e Bata. Ele se desenvolve de modo paralelo a todos os contos sobre
"dois irmãos" que se pode coletar nos países europeus. Nossa tradição
escrita data aproximadamente de 3.000 anos e o que é mais interessante, os
temas básicos não mudaram muito. Ainda mais, de acordo com a teoria do
padre W. Schimidt: "Der Ursprung Der Gottesidee", existem indícios de
que alguns temas principais de contos se reportam a 25.000 anos a.C,
mantendo-se praticamente inalterados.
Até os séculos 17 e 18, os contos de fada eram
— e ainda são nos centros de civilização primitivos e remotos — contados tanto
para adultos quanto para crianças. Na Europa, eles costumavam ser a forma
principal de entretenimento para as populações agrícolas na época do inverno.
Contar contos de fada tornou-se uma espécie de ocupação espiritual essencial.
Chegou-se mesmo a dizer que os contos de fada representavam a filosofia da roda
de fiar (Rocken Philosophie).
O interesse científico por eles começou no
século 18, com Winckelmann, Haman e J. G. Herder. Outros, como K. Ph. Moritz,
deram aos contos de fada uma interpretação poética. Herder dizia que tais
contos continham as remanescências de uma velha crença há muito enterrada,
expressas nos símbolos. Neste pensamento pode-se notar um impulso emocional — o
neopaganismo que começou a se movimentar na Alemanha na época da filosofia de
Herder e que floresceu de uma maneira muito desagradável há pouco tempo atrás. A insatisfação com
os ensinamentos cristãos e a aspiração por uma sabedoria mais vital, terrena e
instintiva, começou nessa época; mais tarde podemos perceber isso mais
explicitamente na escola romântica alemã.
Foi esta busca religiosa por alguma coisa que
parecia estar faltando nos ensinamentos cristãos oficiais, que primeiro
induziu os famosos irmãos Jakob e Wilhelm Grimm a colecionar contos
folclóricos. Antes disso, os contos de fada haviam sofrido o mesmo destino do
próprio inconsciente, ou seja, eram simplesmente aceitos. As pessoas aceitam o
inconsciente e vivem nele, mas não querem admitir sua existência. Elas usam-no,
por exemplo, em mágicas e talismãs. Se têm um sonho bom, elas o exploram, mas
não o levam tão a sério. Para tais pessoas, um conto de fada ou um sonho não
necessita ser analisado apuradamente, podendo ser distorcido; visto não ser
material "científico" pode-se perfeitamente torcê-lo um pouco,
tendo-se assim o direito de selecionar aquilo que mais convém e descartar o
resto.
Essa atitude desonesta, não científica,
estranha e desconfiada prevaleceu por muito tempo em relação aos contos de
fada. Então, sempre digo aos estudantes para buscarem o original. Pode-se
obter, ainda, edições dos contos de Grimm nas quais algumas cenas são omitidas
e outras, de outros contos, são enxertadas. O editor ou tradutor é muitas vezes
impertinente o bastante para distorcer a história sem sequer fazer uma nota de
rodapé. Eles não ousariam fazer isso com o épico Gilgamesh ou um texto dessa
espécie, mas contos de fada parecem ser um campo aberto de modo que alguns se
sentem livres para tomar qualquer liberdade.
Os Irmãos Grimm escreveram os contos de fada
literalmente, como eram contados pelas pessoas das redondezas, mas mesmo eles
não resistiram algumas vezes a misturar um pouco as versões, embora fizessem isso de uma maneira muito escrupulosa.
Eles foram bastante honestos para mencionar isso em notas de rodapé ou em
cartas para Achim von Arnim. Mas mesmo os Irmãos Grimm não tiveram aquela
atitude que os modernos escritores de folclore e os etnólogos tentam seguir, escrevendo
a história literalmente, deixando os vazios e os paradoxos aparecerem, podendo
soar tão paradoxais quanto nos sonhos.
A coleção dos contos de fada que os Irmãos
Grimm publicaram foi um tremendo sucesso. Devia haver um forte interesse
emocional e inconsciente, pois como cogumelos começaram a brotar outras
edições em todo canto, como, por exemplo, a coleção de Perrault, na França. Em
todos os países, pessoas começaram a colecionar histórias e contos de fada
nacionais. De repente todo mundo estava perplexo com o número enorme de temas
que se repetiam. O mesmo tema, em milhares de variações, apareciam tanto nas
coleções da França como da Rússia, Finlândia e Itália. Com isso, ressurgiu o
primeiro interesse emocional de Herder em pesquisar as remanescências de uma
"antiga sabedoria" ou "fé". Os Irmãos Grimm, por exemplo,
usaram tais comparações como "um cristal quebrado cujos fragmentos ainda
se podem encontrar espalhados na grama".
Paralelamente aos Irmãos Grimm, surgiu a então
chamada escola simbólica, cujos principais representantes são Chr. C. Heyne,
F. Creuzer e J. Gõrres. A ideia básica era de que os mitos expressavam
simbolicamente realizações e pensamentos filosóficos mais profundos; e eram um
ensinamento místico de algumas das verdades mais profundas em relação a Deus e
ao mundo (cf. L. W. von Bülow, Die Geheimsprache der Màrchen ou P. L.
Stauff, Mãrchendeutungen, 1914). Embora esses investigadores tivessem
algumas ideias interessantes, as suas explicações parecem-nos agora muito
especulativas. Surgiu então um interesse mais histórico e científico, uma tentativa de responder à questão de
por que tantos temas repetitivos. Visto não haver naquela época hipótese
alguma sobre um inconsciente coletivo comum, ou sobre uma estrutura comum da
psique humana (embora alguns pesquisadores mostrassem isso, ainda que indiretamente)
surgiu um interesse apaixonado em descobrir onde haviam se originado os contos
de fada e quando teriam migrado. Theodor Benfey (Kleinere Schriften zur
Màrchen Forschung, Berlim, 1894) tentou provar que todos os temas dos
contos de fada se originaram na índia e migraram para a Europa, enquanto outros
como Alfred Jensen, H. Winkler e E. Stucken argumentavam que todos os contos de
fada eram de origem babilônica e que tinham se espalhado pela Ásia Menor e de
lá para a Europa. Muitos tentaram construir tais teorias. Um dos resultados foi
a criação do Centro Folclórico, a escola finlandesa, cujos primeiros
representantes foram Kaarle Krohn e Antti Aarne. Estes dois homens afirmavam que
era impossível determinar um país somente onde os contos de fada teriam se
originado e que diferentes contos poderiam provir de diferentes países. Eles
organizaram coleções de contos de fada do mesmo tipo, partindo do pressuposto
que de todos os contos "da bela e da fera", de todos os "de
animal salvador" etc., a versão melhor e mais rica, a mais poética e
melhor expressa, seria a original, e todas as outras seriam derivações. Ainda
há, hoje em dia, quem pesquise nessa linha, mas parece-me que a hipótese não
pode sobreviver por muito tempo, pois sabemos que o fato de os contos de fada
serem manuseados não significa necessariamente a degeneração dos mesmos, pode
até mesmo trazer a sua melhora. Consequentemente, para mim, a escola finlandesa
fornece-nos uma seleção de temas muito útil, mas não precisamos concordar com
suas deduções. O principal livro de A. Aarne, Verzeichnis der Mãrchentypen, foi
publicado na Inglaterra sob o título Types of Folk Talers (Helsinki,
1961).
Ao mesmo tempo, houve um movimento liderado por
Max Müller que tentou interpretar os mitos como imitações dos fenômenos
naturais, tal como o sol e suas diferentes aparições (mito solar, Frobenius), a
lua (o mito lunar, P. Ehrenreich), a aurora (Stucken et Gubernatis), a vida da
vegetação (Mannhardt) e a tempestade (Adalbert Kuhn).
Já no século 19, algumas pessoas começaram a
pesquisar em outra direção, e aqui precisa ser mencionado um homem que é
raramente lembrado, embora esteja presente na minha memória como alguém de
grande mérito; ele é Ludwig Laistner, que escreveu Das Ràtsel der Sphinx (Berlim,
1889). A sua hipótese era que os temas básicos dos contos de fada e folclóricos
derivam de sonhos. Mas ele se concentra principalmente em temas de pesadelos.
Basicamente, o que ele tenta fazer é mostrar uma ligação entre a ocorrência
repetida de sonhos típicos e temas folclóricos, apresentando um material
interessante para provar seu ponto de vista. Embora não interessado no
folclore, o etnólogo Karl von der Steinen, na mesma época, tentou no final de
seu livro Voyage to Central Brazil, explicar que as crenças mais
sobrenaturais e mágicas dos primitivos que ele estudara, provinham de
experiências de sonhos, pois é uma maneira típica do comportamento primitivo
considerar a experiência elementar, mas muitos pensamentos nacionais indicam
real e verdadeira. Por exemplo, se alguém sonha que esteve no céu, onde
conversou com uma águia, é muito claro e justo para ele contar isso na manhã
seguinte como um fato, sem mencionar que ele sonhou isso, e de acordo com Von
Der Steinen, é dessa forma que tais histórias se originam. Um outro estudioso,
Adolf Bastian (Beitrãge zur vergheichenden Psychologie, Berlim, 1868),
tinha uma teoria interessante, dizendo que todos os temas mitológicos básicos
são o que ele denominou de "pensamentos elementares" da espécie
humana. Sua hipótese era de
que a espécie humana tem um estoque de Elementargedanken que não migra,
mas é congênito a cada indivíduo; e que esses pensamentos elementares aparecem
com diferentes variações na índia, Babilônia e mesmo, por exemplo, nas
histórias dos Mares do Sul. Ele chamou as histórias específicas Vòlkerzedanken
(pensamentos nacionais). A ideia dele se aproxima claramente da ideia de
Jung sobre arquétipo e imagem arquetípica, sendo o arquétipo a disposição
estrutural básica para produzir uma certa narrativa mítica, a imagem específica
sob a qual o arquétipo toma forma, sendo denominada "imagem
arquetípica". Os pensamentos elementares, de acordo com Bastian, são um
fator hipotético, isto é, você nunca vê um pensamento elementar mas muitos
pensamentos nacionais indicam a existência de um pensamento básico subjacente.
Nós discordamos de Bastian quando considera
esses temas como "pensamentos". Ele tinha um espírito muito
filosófico, obviamente um tipo pensador, tentando mesmo interpretar alguns
pensamentos elementares, associando-os com ideias de Kant e Leibnitz. Para nós,
ao contrário, o arquétipo não é somente um "pensamento elementar",
mas também uma fantasia e imagem poética elementar, uma emoção elementar e
mesmo um impulso elementar dirigido a alguma ação típica. Então, nós agregamos
a ele toda uma subestrutura de sentimento, emoção, fantasia e ação que Bastian
não incluiu na sua teoria.
A hipótese de Ludwig Laistner e mais tarde a de
George Jakob (Mãrchen und Traum, Hannover, 1923), que escreveu um livro
sobre contos de fada e sonhos, numa perspectiva muito próxima de Laistner, não
tiveram sucesso, nem as sugestões feitas por Karl von der Steinen foram
aceitas. Bastian também foi desconsiderado no mundo científico em geral, que
preferia seguir a linha da Sociedade Inglesa de Folclore e a Sociedade
Finlandesa de Folclore. Após o aparecimento da obra de Antti Aarne, já mencionada, um trabalho
enorme e muito útil feito por Stith Thompson foi publicado sob o título Motif
Index of Folk Literature, constando atualmente de seis volumes.
Além desses trabalhos, novas formas de estudo
surgiram, entre elas a chamada escola literária. A sua proposta é investigar a
partir de um ponto de vista estritamente literário e formal a diferença
existente entre os vários tipos de contos, a saber: o mito, a lenda, histórias
cômicas, histórias com animais, histórias jocosas, e o que se pode chamar de
contos de fada clássicos. (Veja, por exemplo, o trabalho de Max Lüthi, Das
Europãische Volksmàrchen, Berna, 1947). Esse é um estudo de muito mérito.
Com o método típico das escolas literárias, os pesquisadores começaram a
comparar o herói da lenda com o tipo de herói no conto de fada clássico, e
assim por diante. Surgiram resultados bastante interessantes, e eu recomendo
esses trabalhos a vocês.
Um outro movimento moderno constitui-se de um
grupo de etnólogos, arqueólogos e especialistas em mitologia, e em história
comparativa das religiões. Desse grupo, praticamente todos conhecem Jung e a
psicologia junguiana, mas tentam interpretar os temas mitológicos omitindo a
hipótese de Jung, e, logicamente, também o seu nome, apesar de fazerem um uso
indireto de suas descobertas. Eles escreveram livros cujos títulos são: The
Great Goddess, The Three fold Godhead e The Hero, mas não tomam como ponto
de partida o ser humano e a estrutura psíquica que produziram tais símbolos,
mas se instalam no meio do arquétipo, por assim dizer, deixando-o ampliar-se
poética e "cientificamente".
Na mitologia existem nomes como Pettazone, Julius
Schwabe (Archetyp und Tierkreis), e em alguns pontos Mircea Eliade.
Citamos, também trabalhando dessa maneira com os contos de fada Otto Huth,
Robert Graves, e algumas vezes, Erich Fromm. Estes são apenas alguns dos nomes, mas há muito mais. Essas
pessoas pecam por sua abordagem não-científica e ilegítima, caindo num terreno
que não consideraram de antemão. Quando se aborda arquétipo dessa maneira,
qualquer fato pode levar a tudo. Se você começa com a árvore do mundo, você
pode facilmente provar que cada tema mitológico conduz finalmente à árvore do
mundo. Se você começa com o sol, você pode facilmente provar que tudo é sol, e,
finalmente, que tudo é um tema solar. E, então, você acaba se perdendo no caos
das interconexões e dos significados sobrepostos que todas as imagens
arquetípicas têm umas com as outras. Se você escolher a Grande Mãe, ou a Árvore
do Mundo, ou o Sol, o mundo subterrâneo, ou o Olho, ou qualquer outra coisa,
como tema, então, você pode compilar um material comparativo, indefinidamente,
mas perde assim de modo radical o ponto de vista de Arquimedes para
interpretação.
Num de seus últimos trabalhos, Jung mostrava
que esta é uma grande tentação para o tipo intelectual, porque os intelectuais
tratam com desapreço o fator afetivo-emocional, que está sempre presente na
imagem arquetípica. Uma imagem arquetípica não é somente um pensamento padrão
(como um pensamento padrão ela está interligada com todos os outros
pensamentos); mas ela é, também, uma experiência emocional — a experiência
emocional de um indivíduo. Só se essa imagem arquetípica tiver um valor
emocional e afetivo para o indivíduo ela poderá ter vida e significação. Como
disse Jung, podem-se compilar todas as Grandes Mães do mundo, e todos os
santos, e tudo o mais, e o que se conseguir juntar significará absolutamente
nada, caso se deixe de lado a experiência afetiva do indivíduo.
Isso é de fato uma dificuldade, pois todo o
nosso treinamento acadêmico tende a descartar esse fator. Na faculdade,
especialmente nas ciências naturais, quando um professor mostra um cristal, as
meninas, particularmente, tendem a dizer "oh que cristal bonito!", e
então, o professor diz: "Nós não estamos aqui para admirar a beleza do
cristal, mas para analisar sua estrutura". Então, a gente está constante e
habitualmente treinado, desde o começo, a reprimir nossas reações pessoais,
emocionais, e a treinar nossa mente para aquilo que nós chamamos de objetivo.
Bom, isso tem sua razão até certo ponto, com o qual concordo, mas não podemos
tratar a psicologia da mesma forma, e como Jung disse, esta é a difícil posição
da psicologia como ciência, pois a psicologia em contraste com todas as outras
ciências, não pode desconsiderar o fator sentimento. Ela tem que levar em
consideração o tom afetivo e o valor emocional de fatores internos e externos,
incluindo também a reação afetiva do observador. Como se sabe, a física moderna
aceita o fato de que o observador e a hipótese teórica que tem em mente, sob a
qual ele monta um plano experimental, desempenham um papel no resultado de sua
investigação. O que não é aceito, ainda, é que o fator emocional do observador
possa também ter um papel. Mas os físicos têm que repensar isso, pois como
assinalou W. Pauli, não temos uma razão a priori para rejeitá-lo, mas
certamente podemos dizer que em psicologia temos que levar esse fator em
consideração. Esta é a razão pela qual tantos cientistas acadêmicos consideram
a psicologia junguiana não-científica, pois ela leva em conta um fator que tem
sido, até agora, constante e intencionalmente excluído da visão científica. Mas
esses críticos não veem que isto não é um simples capricho, que não somos tão
infantis que não possamos reprimir nossas reações afetivas pessoais diante do
material. Nós sabemos, a partir de um ponto de vista científico e consciente,
que esses sentimentos são necessários e pertencem ao método da psicologia,
quando se quer compreender um fenômeno de maneira correta.
Se um indivíduo tem uma experiência
arquetípica, por exemplo, um sonho confuso de uma águia entrando através da janela, isto não é somente um
"modelo de pensamento" sobre o qual pode-se dizer: "Oh! sim, a
águia é um mensageiro de Deus, e era um dos mensageiros de Zeus e de Júpiter, e
na mitologia norte-americana a águia aparece como um criador etc.". Fazer
isto é intelectualmente bastante correto, pois se amplia o arquétipo, mas
também negligencia toda a experiência emocional. Por que é uma águia e não um
corvo, não uma raposa, e não um anjo? Mitologicamente falando, um anjo e uma
águia são a mesma coisa, um angelos, um mensageiro alado do céu, do
além, do Deus Supremo; mas para o indivíduo que sonha, tem uma grande diferença
se ele sonha com um anjo e tudo o que isso significa para ele, ou se ele sonha
com uma águia e suas reações positivas e negativas que tem a respeito da águia.
Não se pode simplesmente desaperceber as reações emocionais daquele que sonha,
embora, cientificamente, Eliade, Huth, Fromm e outros, simplesmente dirão que
ambos são mensageiros do Além. Em termos intelectuais é a mesma coisa, mas
emocionalmente há uma diferença. Então, não se pode ignorar o indivíduo e todo
o contexto onde a experiência se dá. Os representantes desta tendência tentam
colocar todos os resultados da psicologia junguiana no velho contexto do
pensamento acadêmico e pôr de lado o fator mais importante que Jung introduziu
na ciência dos mitos, a saber: a base humana a partir da qual tais temas
florescem. Mas não se podem estudar plantas sem estudar o solo onde elas
crescem: melões crescem melhor sobre esterco e não na areia, e se você for um
bom jardineiro, você tem um conhecimento do solo tão bom quanto das plantas; e,
em mitologia, nós somos o solo dos temas simbólicos — nós, os seres humanos.
Este fato não pode ser ignorado sob o pretexto de que isto não existe, mas
excluí-lo é uma tentação terrível para o tipo-pensamento e para os
intelectuais, porque fazer isso é coerente com suas atitudes habituais.
Tomemos, por exemplo, o tema árvore. Suponhamos
que eu seja um investigador que tenha um "complexo da árvore", de tal
sorte que a árvore seja meu ponto de partida. Estando emocionalmente fascinada
por ela, eu direi: "Oh! o Mito do Sol e o Mito da Árvore estão ligados,
pois pela manhã o sol nasce a leste da árvore. Seja, por exemplo, a árvore de
Natal, e toda árvore de Natal traz o nascimento da nova luz no momento do
solstício do inverno. Logo, todos os mitos do sol são, também, os mitos da
árvore. Mas, veja, a árvore também é maternal. Ainda hoje na Saxônia, diz-se
que as meninas bonitas nascem debaixo das folhas das árvores, e eu posso lhes
mostrar quadros ilustrando crianças que nascem das árvores; as almas das
crianças não-nascidas farfalham sob as folhas, e esta é a razão pela qual há
árvores no centro de todas as cidades alemãs, austríacas e suíças. A árvore é,
consequentemente, a Grande Mãe. Mas, a árvore não é somente a mãe da vida, ela
o é também da morte, pois é com as árvores que se fazem urnas funerárias, e há
também os enterros feitos em árvores. Os Xamãs, das tribos do círculo polar e,
em certas tribos norte-canadenses, enterram pessoas em troncos de árvore.
Provavelmente, também os Zigurates babilônicos, as colunas nas quais os persas
colocam seus mortos, são também uma espécie de árvore. E, então, já pensou na
relação entre árvore e poço? Sob cada árvore há uma vertente. Assim, sob a
árvore cósmica Igdrasil se encontra o poço Urd. Certos selos babilônicos trazem
a imagem de uma árvore com um poço da vida sob ela, então poder-se-ia concluir
que todos os temas da água-da-vida são realmente temas da árvore, de forma que
toda vez que o tema da água-da-vida aparecer nos mitos, ele representa a
mitologia da árvore. Tudo isto é bem claro! Todo mundo vê isso! Mas ainda
pode-se relacionar a lua com a árvore. Como a mãe, a árvore é feminina, mas
também é o pai, pois a árvore é um símbolo fálico. Em documentos astecas, por
exemplo, a palavra que exprime a terra original de onde emigraram os astecas e
maias, representa uma árvore cortada, uma espécie de tronco de árvore, e tronco
é imagem fálica, paternal. Existem histórias de mulheres que passando sob uma
árvore, recebem uma semente da árvore no seu útero. Logicamente, então, a
árvore é o pai e isso relaciona a árvore com o sol, que é uma figura paternal.
Isto é óbvio".
Se se tem o que poderia ser chamado de
"complexo solar", então tudo acaba sendo solar, e se se tem o
"complexo lunar", tudo é lunar.
No inconsciente todos os arquétipos estão
contaminados um pelo outro. É como se diversas fotografias
fossem impressas umas sobre as outras; elas não podem ser separadas. Isto tem a
ver, provavelmente, com a relatividade atemporal e a-espacial do inconsciente.
É como um pacote de representações que estão simultaneamente presentes.
Somente quando o consciente olha para elas, um tema é selecionado, é como se
colocasse uma lanterna acesa, e tudo depende de onde se coloca o facho de luz
em primeiro lugar, pois, de alguma forma, sempre se
obtém todo o inconsciente coletivo. Então, ocorre que para um cientista a mãe é
tudo, para outro tudo é a vegetação, e para outro, o mito solar é tudo. O mais
interessante é que todos esses intelectuais, quando veem a conexão, por
exemplo, entre a árvore, o sol e o caixão, dizem "é lógico",
"óbvio", ou ainda "naturalmente", assim, a árvore é obviamente
a mãe. Eu paro para observar onde o investigador usa essas palavras. É uma
tentação fácil, pois as conexões arquetípicas são óbvias e naturais, e então, o
escritor diz "naturalmente" ou "obviamente", e está seguro
que todos os seus leitores caminharão na mesma trilha. Somente o tipo
intelectual é apanhado nessa armadilha. Outros, após certa revolta, percebendo
que não é possível que tudo seja tudo, voltam-se para os valores das diferenças
emocionais entre os símbolos.
Na realidade, pode-se interpretar um conto de
fada com qualquer das quatro funções da consciência. O
"tipo-pensamento" apontará a estrutura e a maneira pela qual todos os
temas se conectam. O "tipo-sentimento" colocará todos numa ordem de
valores (hierarquia de valores) que é igualmente racional. Com a ajuda desta
função uma interpretação boa e completa de contos de fada pode ser feita. O
"tipo-sensitivo" se contentará somente em olhar os símbolos e
amplificá-los. O "tipo-intuitivo" verá todos os elementos na sua totalidade;
ele será o melhor dotado para mostrar que o conto de fada, tomado em seu conjunto,
não é uma história discursiva, mas é realmente uma única mensagem com
muitas facetas. Quanto mais diferenciadas e desenvolvidas são as funções do
consciente, melhor e mais rica será a interpretação feita, pois, a história
será circundada, tanto quanto possível, pelas quatro funções. Quanto mais se
tiver desenvolvido e treinado o uso das funções mais conscientes, melhor e mais
colorida será a interpretação. É uma arte que tem que ser praticada. Não pode
ser aprendida apesar de algumas indicações gerais que eu tento dar. Eu sempre digo aos estudantes que não aprendam
somente com minhas aulas, mas que tentem eles mesmos interpretar os contos de
fada, pois essa é a única maneira de se aprender. Interpretação é uma arte, na
verdade um ofício, que depende unicamente da pessoa. Nas aulas em que cada um
interpretar o mesmo conto de fada, ocorre quase uma confissão, uma espécie de
teste de Rorschach. Isto é inevitável, e é normal, pois a pessoa tem que se
colocar aí por inteiro.
Podem-se perguntar as razões pelas quais a
psicologia junguiana se interessa por mitos e contos de fada. O Dr. Jung
disse, certa vez, que é nos contos de fada onde melhor se pode estudar a
"anatomia comparada da psique". Nos mitos, lendas ou qualquer outro
material mitológico mais elaborado obtém-se as estruturas básicas da psique
humana através da grande quantidade de material cultural. Mas nos contos de
fada existe um material consciente culturalmente muito menos específico e,
consequentemente, eles oferecem uma imagem mais clara das estruturas psíquicas.
Uma das objeções que outras escolas
psicológicas nos propõem é que vemos arquétipos em todo canto, que nossos
pacientes aparentemente sonham sobre arquétipos todas as noites, mas que os
pacientes deles nunca produzem tal material. Se o analista não sabe o que são
temas arquetípicos, naturalmente ele nunca os notará; ele os interpretará
pessoalmente ligando-os com memórias pessoais. A fim de que se possa iluminar
um material arquetípico é necessário que se tenha um conhecimento geral a
respeito do mesmo. Esta é uma das principais razões pelas quais procura-se
aprender de maneira aprofundada esses temas, bem como seus diferentes
contextos.
Mas existe ainda uma outra razão que tem mostrado
ser ainda mais importante e que nos conduz a problemas mais essenciais. Se
alguém lhe conta um sonho e você já fez a anamnese dessa pessoa (isto é, sua
história de vida exterior e
interior), mesmo se tenta se refrear, você acaba normalmente levantando uma
hipótese geral a respeito do problema dessa pessoa: que ela ainda está ligada à
mãe, ou que existe uma "fixação-paterno-filial", ou que é uma
"mulher dominada pelo seu animus", ou Deus sabe lá o quê.
Suponha, por exemplo, que você tenha uma
hipótese de que uma paciente em análise está bastante perturbada por seu animus,
e quando ela lhe traz um sonho de um ladrão, que a atemorizou
terrivelmente, então você tem uma reação do tipo: "Ah! Olha aí!".
Você não nota que assim não interpretou o sonho, mas somente reconheceu nele
aquilo que você já supunha. Você o ligou com aquilo que intuitivamente já
imaginara ser o problema. Então você considera o ladrão uma figura do animus,
e isso parece ser uma interpretação objetiva. Mas você não aprendeu de fato
a interpretar o sonho de maneira científica, ou seja, não fazendo hipóteses a
não ser a partir daquilo que emerge dos próprios temas do sonho. Deveríamos
observar os sonhos tão objetivamente quanto possível e somente então,
permitir-nos tirar uma conclusão. O sonho fornece uma nova mensagem que
nem o analista nem o paciente conhecem de antemão.
Este método objetivo pode ser melhor aprendido
com a prática de interpretação sobre temas dos contos de fada, nos quais não há
contexto pessoal e não se tem conhecimento pessoal da situação consciente
correspondente.
Mas consideremos primeiro: como será que um
conto de fada teve sua origem? Se formos realistas, devemos dizer que ele se
originou num momento particular, numa certa época. Como pode acontecer? Eu
elaborei sobre esse tema uma teoria pessoal que lhes proponho.
Max Lüthi em Die Gabe in Sage und Màrchen ("Os
dons na saga e contos de fada") mostra que nas lendas e nas sagas locais o
herói da história é o próprio ser humano.
Uma saga local é aquela espécie de história que
começa desta maneira: 'Você está vendo aquele belo castelo lá em cima? Bem,
existe uma história sobre ele. Era uma vez um pastor que num dia de verão muito
quente levou seu rebanho para perto do castelo. De repente, tomado de curiosidade,
pensou em entrar, apesar de ter ouvido que havia fantasmas ali. Então, com mãos
trêmulas ele abriu a porta e viu uma serpente branca que lhe falou numa
linguagem humana que ele deveria entrar e ficar com ela; e se ele conseguisse
suportar três noites, ele poderia redimi-la"... ou algo assim. Isso é o
que é chamado de saga local. Lüthi mostra, com muitos exemplos, que naquelas
sagas locais o herói é um ser humano cujos sentimentos e reações são relatados.
Por exemplo, fala-se que o coração do pastor batia violentamente quando ele
abriu a porta do castelo e que ele se arrepiou quando viu a serpente e lhe deu
um beijo gelado, mas que ele foi corajoso e permaneceu ali todo o tempo. A
história é contada como se um ser humano comum estivesse tendo uma experiência
sobrenatural ou parapsicológica. Mas se se considera os contos de fada
clássicos — como por exemplo, O pássaro de ouro, de Grimm — aí o herói
já não tem sentimentos. Se um leão o ataca, ele puxa sua espada e mata-o. Nada
é dito se ele ficou com medo, tremeu e quando atravessou a espada pela garganta
do leão, ele coçou a cabeça e se perguntou o que estava fazendo. É por ser um
herói que ele mata o leão com esta naturalidade. Lüthi diz que o herói no conto
de fada é uma figura abstrata e não humana. Ele é completamente preto,
ou completamente branco, e tem reações estereotipadas: ele salva a dama e mata
o leão, e não teme a velha da floresta etc. Ele é completamente esquemático.
Depois de ter lido isso, eu vim a ler uma
história de uma crônica familiar do século 19, publicada na Suíça, num artigo
sobre folclore (Schweiz, Zeitshrift für Volkskunde, 1937).
A família ainda vive em Chur, a capital de
Graubünden. O bisavô da família tivera um moinho numa cidadezinha solitária dos
Alpes, onde vivia. Certa noite saiu para caçar raposa. Quando ele encontrou uma
raposa e se preparou para atirar, esta levantou sua pata e disse: "Não
atire em mim", e em seguida desapareceu. O moleiro voltou para casa
bastante impressionado, pois raposas que falam nunca fizeram parte da sua
experiência diária. Quando chegou encontrou seu moinho girando sozinho em torno
da roda. Ele berrou, perguntando quem havia posto o moinho em movimento.
Ninguém havia posto. Dois dias depois, ele morre. Esta é uma história típica
que se encontra em relatos espíritas ou parapsicológicos. Em todo canto do
mundo tais coisas acontecem por vezes prenunciando a morte de alguém:
instrumentos comportam-se como se fossem vivos, relógios param como se fossem
parte do seu dono que morre e muitas coisas estranhas acontecem.
Um homem que leu esta história nas crônicas
desta família, resolveu ir até a cidadezinha e perguntar às pessoas sobre o
moinho. O moinho propriamente dito está em ruínas. Algumas pessoas disseram:
"Sim, havia um moinho lá, e havia alguma coisa inquietante sobre ele.
Havia um fantasma lá". Então, pode-se notar o quanto a história se
degenerou. Todos sabiam que aquilo (o moinho) tinha alguma coisa a ver com a
morte e com um evento parapsicológico, mas eles não lembravam de qualquer coisa
em especial. Neste ponto, a escola finlandesa parece estar certa em dizer que
contar a mesma história diversas vezes acaba por empobrecê-la. Mas, por outro
lado, esse mesmo investigador encontrou pessoas mais velhas que lhe disseram:
"Ah! sim, nos lembramos da história. O moleiro saiu para caçar raposas e
uma raposa lhe disse: 'Moleiro, não atire em mim! Você se lembra como eu colhi
o milho no sítio da tia Jette'! E então, na festa do funeral uma garrafa de
vinho quebrou-se e a tia
Jette, a tia do moleiro empalideceu, e todo mundo sabia que ela era a raposa e
que havia matado o moleiro".
Há uma crença geral de que as bruxas tomam a
forma de raposa. Crê-se que as bruxas saem à noite e tomam forma de raposa e
fazem muitas maldades sob esta forma, e depois voltam para os seus corpos, que
permaneceram deitados nas camas como mortos, nesse meio tempo. Isto pode ser
"provado", pois por vezes, um caçador atira numa raposa e a fere na
pata e então, na manhã seguinte, a Sra. Fulana de tal aparece com um braço na
tipoia e quando se pergunta o que aconteceu, ela não responde. É
"evidente" que ela era a raposa que estava agindo durante a noite. Há
uma crença geral, de origem arquetípica, que se encontra tanto nos Alpes, na
Áustria, como no Japão e na China, de que as bruxas e as mulheres histéricas
têm almas de raposas. Então, um tema arquetípico universal foi associado com a
nossa história da raposa, e a história foi enriquecida de modo a torná-la mais
coerente. É como se as pessoas tivessem dito que a primeira história não era
satisfatória — por que a raposa falaria com o moleiro antes dele morrer? Então,
ela foi enriquecida com a história da bruxa, associada à da tia do moleiro, que
se deu a perceber na festa do funeral. Uma outra velha senhora da aldeia contou
a mesma história, mas juntou a ela ainda um outro detalhe — que quando o
moleiro voltou para casa, viu uma raposa correndo em volta do moinho, fazendo-o
girar.
Isto prova, para mim, que Antti Aarne estava
errado ao pensar que as histórias sempre se degeneram, pois elas podem se
desenvolver e ampliar enriquecendo-se através do acréscimo de temas
arquetípicos. Se elas são contadas por pessoas dotadas de imaginação e de um
talento de contador de histórias elas podem se tornar muito bonitas. Minha
hipótese é que, provavelmente, as formas mais originais de contos folclóricos
são as sagas locais e as histórias parapsicológicas, histórias miraculosas que
acontecem devido a invasões do inconsciente coletivo sob a forma de alucinações
em estado de vigília. Estas coisas ainda acontecem; os camponeses suíços
experienciam-nas constantemente e elas formam a base das crenças folclóricas.
Quando alguma coisa estranha acontece, ela é cochichada e corre, como correm os
boatos; então, sob condições favoráveis, o fato emerge enriquecido de
representações arquetípicas já existentes e progressivamente transforma-se num
conto.
E interessante que nesta história somente uma
pessoa lembrou o nome do moleiro. Em outras versões, ficou somente "um
moleiro". Enquanto for o "moleiro Fulano de tal", é ainda uma
saga local, mas quando se tornar: "Uma vez um moleiro saiu para caçar
raposa...", então, começa a se tornar um conto de fada, uma história mais
geral, que pode migrar de uma cidade para outra, pois não mais se refere a um
moleiro específico, nem a um homem em particular. É muito provável que a
afirmação de Lüthi esteja certa: os contos de fada são abstrações. São
abstrações de uma saga local condensada, e cuja forma se cristalizou, o que
permite ser mais facilmente contada e retida na memória, pois desta forma toca
mais diretamente as pessoas.
Desde que comecei a desenvolver a ideia de que
experiências parapsicológicas são a base das sagas locais, o mesmo foi
descoberto e apresentado por J. Wyrsch, Sagen und Ihre seelischen
Hintergründe (Innerschweiz, Jahrb für Heimatkunde, Luzern, 1943, bd. 7 e H.
Burkhardt, Psychologie der Erlebnissage, Diss. Zürich, 1951).
Vocês podem encontrar ainda mais na excelente
tese de G. Isler, Die Sènnenpuppe, Diss. Zürich, 1970.
2
Contos de fada, mitos e outras histórias arquetípicas
Parece-me que as histórias arquetípicas se
originam, frequentemente, nas experiências individuais através da irrupção de
algum conteúdo inconsciente, que podem surgir em sonhos ou em alucinações em
estado de vigília. Algum evento ou alguma alucinação coletiva acontece, e
então, o conteúdo arquetípico irrompe na vida de um indivíduo. Isto é sempre
uma experiência numinosa. Nas sociedades primitivas praticamente nenhum
segredo é guardado; então essa experiência é sempre comentada, ampliando-se por
outros temas folclóricos existentes que a completam. Então, ela se desenvolve
tanto quanto um boato.
Tais invasões do inconsciente coletivo no campo
de experiências de um único indivíduo, provavelmente, de tempos em tempos criam
novos núcleos de histórias e mantêm vivos os materiais já existentes. Por
exemplo, aquela história do moleiro reforçará naquela região a crença nas
"bruxas-raposas". A crença existia anteriormente, mas esta história
manterá viva, ou modernizará, ou, ainda, trará uma nova versão à velha ideia de
que as bruxas sob forma de raposas saem matando ou enfeitiçando pessoas. Estes
eventos psicológicos, que sempre atingem um indivíduo em primeiro lugar, são,
no meu modo de pensar, o ponto de partida e ao mesmo tempo o fator que mantém
vivos os temas folclóricos.
Cogitou-se que as pessoas que conhecem certos
temas de contos de fada e de histórias, adaptam-nas a situações locais. Digamos
que exista uma moça numa cidade que se suicidou atirando-se de um penhasco. Dez
anos mais tarde este suicídio, que ocorreu devido a um caso amoroso
malsucedido, pode ser circundado por um conto com o tema clássico do suicídio.
Eu acho que isso facilmente poderia acontecer, mas não encontrei até agora
nenhum exemplo significativo onde se pudesse constatar e provar cada passo
dessa transformação. Provavelmente temos que reconhecer os dois modos, podendo
dizer que quando uma história está enraizada em algum lugar, ela é uma saga
local; e, quando ela vagueia como uma planta aquática sem raízes, adquire a
característica abstrata de um conto de fada, e que se uma vez mais adquirir
raízes, torna-se novamente uma saga local. Pode-se usar a analogia de um
cadáver, sendo o conto de fada os ossos ou o esqueleto, a parte que não é
destruída, pois ele é o núcleo básico e eterno de tudo. Ele reflete com mais
simplicidade as estruturas arquetípicas básicas.
O mesmo problema existe quanto à diferença
entre uma história local e um conto de fada, aparece de outra maneira e com
muita controvérsia quanto às relações entre o mito e o conto de fada. E.
Schwizer, um clássico, mostrou, por exemplo, que o mito de Hércules foi construído
a partir de aventuras separadas, todas elas sendo temas de contos de fada. Ele
demonstrou que este mito deve ter sido um conto que foi enriquecido e elevado
ao nível literário de um mito. Numa teoria oposta, algumas pessoas contestam
dizendo que os contos de fada são mitos degenerados. Elas creem que
originalmente os povos tinham somente mitos e se a ordem social e religiosa de
um povo decaísse, então as remanescências daquele mito sobreviviam em forma de
contos de fada.
Existe uma certa veracidade nesta teoria do
"mito decadente". Por exemplo, numa coleção intitulada The Fairy Tales of World
Literature (Die Márchen der Welt Literatur), que consta
agora de cerca de 35 volumes, pode-se encontrar no volume de contos gregos,
episódios ligeiramente distorcidos da Odisseia: um príncipe viaja para uma ilha
onde existe um grande peixe (ou um ogro) I ele cega esse ogro de um só olho e
se esconde sob a barriga de um grande carneiro, conseguindo escapar da caverna
do monstro. Foi assim que Ulisses escapou da caverna de Ciclope; vê-se,
portanto, que a história foi preservada até hoje.
Portanto não acho forçado dizer que este conto
é remanescente da história de Ulisses. Ele sobreviveu sendo hoje em dia um
conto folclórico comum na Grécia. Isto me convenceu que os grandes mitos podem
decair com a civilização a que pertencem, e que os temas básicos podem
sobreviver como temas de contos de fada, migrando ou então permanecendo no
mesmo país. Do mesmo modo que analisei as sagas locais, eu considero duas
possibilidades. Para mim os contos de fada são como o mar, e as sagas e os
mitos são como ondas desse mar; um conto surge como um mito, e depois afunda
novamente para ser um conto de fada. Aqui novamente chegamos à mesma conclusão:
os contos de fada espelham a estrutura mais simples, mas também a mais básica —
o esqueleto — da psique.
O mito é uma produção cultural. Se se pensar no
mito de Gilgamesh está se pensando na civilização babilônico-hitita-suméria,
porque Gilgamesh pertence a elas e não pode ser colocado na Grécia ou em Roma.
Da mesma forma, os mitos de Hércules e Ulisses pertencem à Grécia e não podem
ser imaginados no contexto de Maori. Se se estuda as implicações psicológicas
dos mitos, vê-se que eles expressam em muito o caráter nacional da civilização
onde se originaram e onde permanecem vivos. Têm uma forma bonita porque
geralmente sacerdotes ou poetas (ou sacerdotes-poetas, pois em algumas
civilizações são a mesma coisa), deram a essas histórias uma forma solene, litúrgica e poética. O mito apresenta,
pois, conjuntos de expressões culturais conscientes, que facilitam sua
interpretação, pois nele certas ideias são expressas de maneira mais explícita.
Diz-se, por exemplo, que Gilgamesh é favorecido por Shamash, o deus sol, a
respeito do qual muito material pode ser coletado e unido numa ampliação,
fornecendo tudo o que é necessário. Muitas vezes um herói de um conto de fada
tem qualidades solares, mas estas podem estar indicadas somente por um pequeno
detalhe — por exemplo, o fato dele ter cabelos dourados. Não há menção alguma
do fato de ser ele favorecido por um deus solar específico.
Pode-se então dizer que a estrutura básica ou
que os elementos arquetípicos de um mito são construídos numa expressão formal,
que se liga ao consciente coletivo cultural da nação na qual se originou e que,
de certa maneira, está mais próximo da consciência e do material histórico
conhecido. Às vezes, ele é mais fácil de ser interpretado, pois é menos
fragmentado. Frequentemente, é também mais bonito e mais impressionante na
forma do que os contos de fada, e isso faz com que certos estudiosos fiquem
seduzidos e digam que o mito é o mais importante e que o resto é somente um
reles vestígio. Por outro lado, ao elevar-se tal tema arquetípico a um nível
nacional e cultural, unindo-o a tradições religiosas e formas poéticas,
expressa-se mais especificamente os problemas daquela nação naquele determinado
período cultural, mas perde-se muito do seu caráter humano. Ulisses, por
exemplo, é a essência do intelecto hermético-mercurial grego e pode ser
facilmente comparado a heróis ardilosos de outras nações. Entretanto, o mito de
Ulisses é mais específico e mais grego, perdendo desta maneira certos traços
humanos universais.
O estudo dos contos de fada é essencial, para
nós, pois eles delineiam a base humana universal. Eles são especialmente
importantes quando se analisam pessoas do
outro lado do mundo; se um indiano ou um australiano chega ao seu consultório,
e se você estudou apenas alguns mitos, será difícil lançar uma ponte humana até
esse homem. Se, entretanto, o analista conhece as estruturas humanas básicas,
ele será capaz de contatá-lo. Eu ouvi, certa vez, um missionário das Ilhas dos
Mares do Sul dizer que a maneira mais simples de entrar em contato com os
habitantes de lá era contando-lhes contos de fada. É uma linguagem que todos
entendem. Se ele houvesse contado a história de algum grande mito, não teria
tido tão bons resultados. Ele tinha que usar o material básico na sua forma
mais simples, porque esta é a expressão da estrutura mais geral, e ao mesmo
tempo mais básica do ser humano. Isto também se deve ao fato de o conto de fada
estar além das diferenças culturais e raciais, podendo assim migrar facilmente
de um país para outro. A linguagem dos contos de fada parece ser a linguagem
internacional de toda a espécie humana — de idades, raças e culturas.
Algumas vezes, quando não entendo um conto de
fada, uso os mitos como paralelos, pois devido ao fato de o mito estar mais
próximo da consciência, frequentemente ele me fornece uma ideia sobre o
significado. Logo, não se pode deixar de lado os mitos, pois eles podem servir
de ponte quando o material de um determinado conto de fada não for
compreendido. E às vezes o conto está terrivelmente distante do nosso mundo
coletivo consciente.
Também temos que subdividir mitos religiosos,
pois alguns estão ligados a um ritual, enquanto outros não. Numa certa ocasião,
o mito é contado num certo festival, e canta-se a canção que pertence a certo
evento mitológico. Ou, em algumas escolas — a escola Talmud, por exemplo —
existem textos sagrados que são lidos em certas ocasiões, passando então a
constituir-se numa espécie de liturgia. Por outro lado, existem mitos religiosos
que não se constituíram em liturgias, como, por exemplo, o Épico Gilgamesh, que
era repetidamente recitado na corte do rei, mas nada indica que isto tenha se
erigido em liturgia. Quanto a mitos religiosos que não são incluídos nem em
liturgia, nem citados em ritual, e que não são veículos de conhecimento sagrado
— oral ou escrito — seriam classificados na categoria anteriormente citada. Mas
há o caso específico em que se deparam com mitos que constituem rituais religiosos,
como liturgias ou canções entoadas por certos sacerdotes. Na minha opinião,
tais mitos litúrgicos não são basicamente diferentes de outros, exceto por
terem se tornado parte da tradição consciente da nação; eles passaram a
integrar o corpo do conhecimento consciente daquela nação, sendo oficialmente
reconhecidos. Isto não os coloca de modo algum em segundo plano: significa
somente que eles foram elaborados por um longo tempo. De modo geral esses
mitos foram influenciados por tradições históricas; estes textos e canções
sagrados são frequentemente ininteligíveis: foram burilados de tal forma que
fazem meramente alusão a algo que todo mundo já conhece. Por exemplo, algumas
canções de Natal que conhecemos são assim; se você tivesse que pesquisá-las como
apareceram há 2.000 anos atrás, e se você não conhece nada a respeito do
cristianismo, não seria capaz de apreender o seu sentido. Uma canção de Natal
alemã diz: "De uma raiz tenra uma rosa despontou", e então seguem-se
algumas alusões remotas a respeito de uma Virgem intocada. Suponhamos que não
se conheça nada sobre o cristianismo, e se descubra essa canção. Dir-se-ia que
há algo sobre uma rosa e sobre uma virgem, mas o que isso significa? Para nós,
a canção é inteligível, porque ela se refere a um mistério que nós todos
conhecemos. A tradição cristã está totalmente integrada em nossa cultura,
podendo tais canções aparecer sob uma forma alusiva; entretanto, somente os
temas arquetípicos que são significativos para muitas pessoas, há centenas de
anos, são tratados dessa maneira. Se o cristianismo
tivesse sido confinado a uma seita local na Ásia Menor, ele teria morrido com o
seu mito, e não teria atraído outros materiais simbólicos, e nem teria essa
forma.
A elaboração extensiva do material original provavelmente
depende da importância do impacto que o evento nuclear arquetípico causa sobre
as pessoas.
Há uma proposta de que, talvez, o cristianismo
tenha se originado como saga local e, a partir desta, tenha se desenvolvido em
um mito. Em seu livro Aion, Jung coloca que a personalidade de Jesus de
Nazaré, tão desconhecida, misteriosa e impressionante, e sobre a qual nós
conhecemos muito, muito pouco, atraiu uma enorme quantidade de projeções e
símbolos, como, por exemplo, o símbolo do peixe, do cordeiro, e muitas outras
imagens arquetípicas do SELF, tão bem conhecidas por toda a humanidade.
Muitos desses símbolos não são sequer mencionados na Bíblia; por exemplo, o
pavão, um símbolo do início do cristianismo, símbolo da ressurreição e do
Cristo. Toda a rede de ideias mitológicas existentes na antiguidade remota
foram vagarosamente sendo cristalizadas em torno da personalidade de Cristo.
Os caracteres específicos de Jesus de Nazaré foram de tal maneira obscurecidos,
que nos confrontamos muito mais com o símbolo do "Deus-Homem", que em
si mesmo está ampliado por muitos outros símbolos arquetípicos.
Deste modo, se de um lado a figura de Jesus é
generalizada, de outro ela é mais específica, como pode ser comprovado pelos
primeiros Padres da Igreja que lutavam contra a tendência da época de se dizer
que Jesus Cristo era somente um outro Dionísio, ou Osíris. As pessoas diziam:
"Ah! seu Jesus Cristo, nós o conhecemos, nós o veneramos sob a forma de
Osíris". Os apologistas cristãos ficavam furiosos com isso, dizendo que
Cristo não era nem Osíris, nem Dionísio: ele era uma nova mensagem. A partir
daí, travou-se a luta sobre a nova mensagem — que tinha de ser analisada sob
uma outra luz e — tais pessoas diziam — não devia ser juntada regressivamente
a esses outros mitos. Sobre Jesus as pessoas diziam: "Mas este é Osíris!
Este é o nosso Dionísio! Nós conhecemos o Deus sofredor e dilacerado há muito
tempo". E eles estavam parcialmente certos, pois o que viam era o mesmo
modelo arquetípico geral. Mas os outros também estavam certos quando insistiam
que agora esta era uma nova consciência cultural sob uma forma nova e
específica.
O mesmo aconteceu quando os conquistadores na
América do Sul descobriram o ritual da crucificação entre os aborígenes. Algum
padre jesuíta chegou mesmo a dizer que o demônio havia posto aquelas coisas nas
cabeças dos índios para despertar a possibilidade de conversão. Mas a hipótese
da disposição arquetípica da psique humana simplifica muitas dessas questões, e
torna-se desnecessário que nos percamos em brigas por causa dos mitos
religiosos. As diferentes versões são elaborações diferentes de várias formas
do arquétipo. Pode-se dizer que onde quer que se constele um conteúdo
arquetípico de importância vital, ele tende a se tornar o símbolo central de
uma nova religião. Entretanto, quando o conteúdo arquetípico pertence meramente
aos afazeres do ser humano e não está especificamente constelado, ele é
manipulado sob a forma de folclore. Mas na época de Cristo a ideia do
Deus-Homem — que já existia há anos — tornou-se uma mensagem iminentemente
importante—aquilo que agora teria que ser realizado a qualquer custo. E por
isso que ela se tornou a "Boa Nova", a nova luz e seu impacto emocional
criou tudo isso que nós conhecemos como civilização cristã (assim como a
iluminação de Buda criou tudo aquilo que se conhece agora como religião
budista).
Há um outro problema ligado a este. Em seu
livro: Primitive culture, Tylor, a partir de sua teoria sobre o
animismo, tentou explicar os contos de fada a partir do ritual, dizendo que os contos deveriam ser
considerados não só como remanescentes de determinada fé em decadência, mas
principalmente como remanescentes de um rito antigo: o rito morreu, mas sua
história permaneceu na forma dos contos de fada. Eu não acredito nisso, porque
acho que a base não é ritual, mas uma experiência arquetípica.
Entretanto, os ritos são tão antigos que o máximo que se pode fazer é imaginar
como teriam se originado. Os melhores exemplos que encontrei de como um rito
poderia ter se originado estão nas histórias que se seguem.
Uma das histórias é a autobiografia de Black
Elk, um curandeiro pertencente à tribo de índios americanos dos Sioux Oglala.
Ainda menino, Black Elk esteve muito doente, ficando quase em coma; foi quando
ele teve uma visão ou revelação impressionante, na qual era transportado para
os céus, onde muitos cavalos vinham a ele dos quatro pontos cardeais, quando
então encontrou o Espírito do Avô que lhe deu a planta medicinal para o seu
povo. Profundamente abalado pela visão, o jovem guardou-a para si como qualquer
pessoa normal o faria. Porém, mais tarde desenvolveu-se nele uma aguda fobia de
tempestades e trovoadas, de tal modo que bastava aparecer uma nuvenzinha no
horizonte para ele tremer de medo. Isso o forçou a consultar o curandeiro da
tribo. Este lhe disse que a causa desse temor, dessa doença, era ele ter
guardado para si a visão que teve e não a ter compartilhado com sua tribo. O
curandeiro disse a Black Elk: "Sobrinho, agora eu sei qual é o problema! Você
precisa fazer o que o cavalo baio, na sua visão, queria que você fizesse. Você
precisa fazer uma apresentação desta visão para o seu povo na terra. Precisa
primeiro fazer a dança do cavalo para que o povo veja. Então o medo o
abandonará; mas se você não fizer isso, algo muito ruim irá lhe
acontecer". Black Elk, que estava com 17 anos, seus pais e outros membros
da tribo juntaram alguns cavalos; alguns eram brancos, outros pretos, outros alazões, mais alguns
pardos e um cavalo baio para Black Elk montar. Black Elk ensinou as canções que
ele ouvira durante sua experiência e quando a visão foi encenada, teve um
profundo efeito na tribo inteira, chegando mesmo a ser um efeito curativo,
fazendo com que um cego passasse a enxergar, um paralítico a andar e outras doenças
psíquicas também foram curadas. A tribo decidiu encená-la novamente.
E creio que muito provavelmente isso teria
continuado como um ritual se, pouco depois, a tribo não tivesse sido quase que
totalmente destruída pelos brancos. Por esse relato, estamos muito próximos de
testemunhar as origens de um ritual.
Eu encontrei uma outra pista para a origem de
um rito num conto esquimó, relatado por K. Rasmussem (Die Gabe des Adlers, Frankfurt,
1923). Certas tribos do círculo polar ártico celebram um festival da Águia.
Eles enviam mensageiros com bastões que têm na ponta uma pena, para convidar as
outras tribos para a grande festa. Os anfitriões constroem um grande iglu,
algumas vezes uma grande casa de madeira. Uma vez por ano as pessoas aí chegam
nos seus trenós puxados por cachorros. Na entrada da casa há uma águia
empalhada; eles dançam, contam histórias, trocam esposas e comerciam. O
festival da águia é o grande encontro semirreligioso, semiprofano, de todas as
tribos.
A história sobre o festival é a seguinte: uma
vez, um caçador solitário matou uma águia especialmente bonita. Ele a levou
para casa, aparentemente com um certo sentimento de culpa; ele a empalhou e
guardou-a, sentindo-se de tempos em tempos impelido a oferecer-lhe um pouco de
comida como sacrifício. Aconteceu que certa vez estava ele com seus esquis
caçando, quando entrou numa tempestade de neve. Ele se sentou e de repente viu
à sua frente dois homens com bastões ornados de plumas. Os homens vestiam
máscaras de animais e ordenaram-lhe que os
seguisse e depressa. Então, apesar da nevasca, ele se pôs de pé e seguiu-os;
eles iam muito depressa, deixando-o com uma grande exaustão. Foi quando,
através da bruma, ele avistou uma cidadezinha da qual vinha um ribombar
fantasmagórico. Ele perguntou aos homens o que aquilo significava, e um deles
respondeu muito tristemente: "É o coração de uma mãe que está
batendo". Eles levaram-no à cidade até uma mulher muito digna que estava
de preto, e ele logo percebeu que era a mãe da águia que ele havia matado. A
mulher — mãe da águia — disse que ele havia tratado seu filho tão bem, que ela
queria lhe agradecer e queria pedir que continuasse fazendo assim. Em seguida,
disse-lhe que o apresentaria ao seu povo, (as pessoas, na verdade, eram águias
que temporariamente tomavam forma humana) e que lhe mostraria o Festival da
Águia. Ele deveria memorizar tudo e quando voltasse à sua tribo deveria
relatar-lhes o que vira e dizer-lhes que, anualmente, deveriam fazer essa
comemoração. Depois dos "homens-águias" terem apresentado o Festival
da Águia, tudo desapareceu repentinamente, e ele se viu novamente no meio da
neve, tonto e quase congelado. Ele voltou à sua cidade, reuniu os homens e
contou-lhes a mensagem, e desde então, diz-se que o Festival da Águia é
celebrado, exatamente como foi prescrito. O caçador obviamente caiu em coma,
quase congelado, e neste estado de profunda inconsciência ele teve o que
podemos chamar de visão arquetípica. Isso explica por que tudo desapareceu tão
repentinamente e por que ele se viu tonto no meio da neve; este foi o momento
em que voltou à consciência e viu as pegadas dos animais atrás dele — os
últimos vestígios dos "mensageiros".
Podemos ver novamente como um rito passa a
existir de modo paralelo àquele de Black Elk — isto é, a partir da experiência
arquetípica de um indivíduo; e se o impacto é suficientemente forte, há
necessidade de transmiti-lo, ao invés de guardá-lo para si mesmo. Eu encontrei
em menor escala fatos similares na análise, quando um analisado tem uma
experiência arquetípica e, naturalmente, guarda-a para si. Esta é a reação
natural, pois é o segredo de uma pessoa que não quer que outros a minimizem.
Mas então outros sonhos aparecem dizendo-lhe que não deve guardar a visão para
si, mas contá-la para seu marido, ou sua mulher, dizendo-lhe: "Eu tive uma
experiência e tenho que me ater a ela. E por isto que agora quero falar-lhe
sobre ela, pois de outra maneira você não entenderá minha conduta. Eu tenho que
ser leal à visão e agir de acordo com ela". Numa vida matrimonial não se
pode mudar de comportamento de repente, sem qualquer explicação. Ou talvez, ela
precise ser comunicada a um grupo maior, como aconteceu à visão de Blak Elk,
para quem o curandeiro disse que seus sintomas neuróticos mostravam que a
visão de Black Elk era algo que pertencia à tribo e não um segredo seu, em
particular.
A partir dessas duas histórias, eu concluí que
esta é uma explicação provável de como um ritual passa a existir. Neste exemplo
do esquimó, eles dizem isso para si mesmos. Vemos novamente que a base é
uma invasão pelo mundo arquetípico da consciência coletiva temporal de um
grupo, sendo um indivíduo o seu intermediário. Primeiro uma pessoa passa pela
experiência e depois conta às outras. Além do mais, se realmente pensarmos
bastante, de que outra maneira isto poderia ter acontecido? Essa é a maneira
mais óbvia pela qual um ritual poderia ter se originado.
Mais tarde o rito poderá ser ainda modificado
por incursões menos fortes no inconsciente e por sonhos. Existe um famoso
ritual entre os primitivos australianos chamados Kunapipi, que já conta 30 anos
de existência. Um etnólogo de mérito, Berndt, colecionou os sonhos que se
referiam a esse rito. Os aborígenes dizem que eles sonham sobre o ritual e no
seu livro Kunapipi ele nos dá uma
coleção desses sonhos, todos eles com influência no ritual, seja alterando-o
ligeiramente, seja acrescentando-lhe pequenos aspectos. O sonho é contado à
tribo, e se a alteração for boa e pertinente, ela é acrescentada ao ritual.
Analisando católicos, tenho observado que isso ocorre de alguma maneira. Alguém
sonha com a missa, por exemplo, e o inconsciente dessa pessoa faz toda sorte de
proposições para que alguma coisa possa ser acrescentada. Eu me lembro de uma
freira que sonhou com a missa e toda a cerimônia seguia normalmente até que
chegou o momento do "Sanctus" e, então, o sino tocou e houve
uma interrupção. No momento mais sagrado da missa, o momento da
transubstanciação, o bispo subiu ao púlpito e fez um sermão curto, prosaico e
realista sobre o significado de Deus ter se tornado homem, após o qual a missa
retomou seu curso. E como se o inconsciente da freira desejasse mostrar que uma
parte importante do sentido do mistério havia sido perdida de vista.
Há, ainda, um outro tipo de história
arquetípica que vale a pena mencionar. Se considerarmos o Fairy Tales of
World Literature, observaremos que em certos relatos de etnólogos, o que é
chamado de contos de fada são praticamente contos de animais, e mesmo na
coleção de Grimm há muitos contos desse tipo. De acordo com Laurens van der
Post, em The Heart of the Hunter, cerca de 80% dos contos dos
bosquímanos são contos de animais. A palavra "animal" não é muito
exata, pois embora os personagens sejam animais, todo mundo sabe que esses
animais são, ao mesmo tempo, seres antropomórficos. Como acontece na história
do Festival da Águia, no qual existem águias que são seres humanos e que dois
minutos mais tarde são novamente águias, analogicamente acontece o mesmo com as
histórias dos bosquímanos. Algumas vezes, eles mesmos dizem: "A hiena, que
naturalmente é um ser humano, disse à sua esposa...". Nem sempre isso é
dito de forma explícita, mas na história a hiena apanha um arco ou faz um barco, ou coisas semelhantes.
Essas figuras são seres humanos com forma de animais, ou animais em forma de
seres humanos; não são o que hoje em dia chamaríamos de animais.
Os antropólogos discutem se os animais estão
disfarçados em seres humanos, ou os seres humanos disfarçados em animais. Mas
para mim isto é uma besteira. Eles são o que são! São animais e seres humanos;
nenhum primitivo iria se questionar sobre isso, não há contradição. Do nosso
ponto de vista eles são animais simbólicos, pois fazemos uma outra distinção:
nós consideramos que o animal é o portador da projeção de fatores psíquicos
humanos. Enquanto houver uma identidade arcaica e enquanto não se levar em
conta a projeção, o animal e o que se projeta nele são idênticos; eles são uma
e a mesma coisa. Consideram-se bonitas aquelas histórias de animais que
representam as tendências humanas arquetípicas. Eles são humanos porque
naturalmente não representam os verdadeiros instintos dos animais, mas nossos
instintos animais e, nesse sentido, eles são de fato antropomórficos.
Digamos, por exemplo, que o tigre numa história represente a avidez; não é a
avidez real do tigre que é representada, mas a nossa própria avidez de
tigre. É quando nos tornamos tão ávidos quanto os tigres, que sonhamos com
um tigre. Trata-se então de um tigre antropomórfico. Tais histórias com animais
são extremamente frequentes, e há muitos pesquisadores que afirmam que eles
são o tipo mais antigo de história mitológica. Estou muito tentada a acreditar
que as formas mais antigas e básicas de contos arquetípicos têm esse molde —
história sobre seres animais antropoides onde a raposa fala com ratos, e o
coelho com o gato.
Por ser conhecida como alguém interessada em
contos de fada, sempre sou forçada pelas famílias a contar histórias para suas
crianças, e tenho observado que crianças abaixo de certa idade preferem
histórias com animais. Quando se
começa com histórias de príncipes e princesas que foram capturados pelo
demônio, então as crianças perguntam: "O que é demônio?", e assim por
diante. Elas precisam de muitas explicações. Mas se se inicia dizendo: "O
cachorro disse para o gato...", então elas ouvem com muita atenção.
Parece-me, pois, que esse é o material básico, a mais profunda e antiga forma
de contos. Ocorre o mesmo na relação entre os contos de fada, sagas locais,
fábulas de animais, ritos, mitos e contos religiosos. Eu menciono isso
simplesmente pelo fato de haver tanta discussão e tantas hipóteses a esse
respeito na literatura que trata de mitologia.
3
Um método de interpretação psicológica
O problema que se segue é o método de
interpretação dos contos de fada. Como podemos nos aproximar do significado de
um conto de fada? Ou antes, como seguir sua trilha? Com efeito, é como
perseguir a pista de uma corça fugitiva e ágil. E por que interpretamos? Sempre
e sempre os pesquisadores e especialistas em mitologia atacam os junguianos
dizendo que os mitos falam por si sós; que se tem somente que desvendar o que
ele diz e que não é necessária a interpretação psicológica; que a interpretação
psicológica somente vê nele alguma coisa que não lhe pertence; que o mito, com
todos os seus detalhes e amplificações é bastante claro por si mesmo. Isso é
parcialmente verdadeiro. É tão verdadeiro quanto o sonho, que Jung diz que é
por si mesmo sua melhor explicação. Isto significa que a interpretação do sonho
sempre lhe é inferior. O sonho é a melhor expressão que existe para os
acontecimentos interiores, podendo-se dizer o mesmo com relação aos mitos e aos
contos de fada. Então, nesse sentido, aqueles que odeiam interpretações,
dizendo que o mito é suficiente, estão certos. A interpretação é um
escurecimento da luz original que brilha no próprio mito. Mas se alguém lhe
conta um sonho maravilhoso, e está muito empolgado com ele, e você se senta
calmamente e diz: "Sim, então você teve esse sonho!", e ele lhe dirá:
"Mas eu quero saber o que significa!". Você, então, pode responder:
"Bem, olhe para o sonho! Ele lhe diz tudo que possa ser dito. E essa é a
melhor interpretação possível". Isso tem seu mérito, pois o indivíduo que
sonhou vai para casa c pensará sobre o sonho até que de repente terá sua
própria iluminação sobre ele. E isso acontece como esfregar uma pedra de churinga
— isto é, tratar o sonho como se faz com uma pedra de churinga[1]
ou talismã, até que este lhe dê alguma força — e esse processo não é
interrompido por uma terceira pessoa que se interpõe.
Por outro lado, esse método não é suficiente na
maior parte das vezes, pois as mensagens dos sonhos mais bonitas e
surpreendentes não são captadas. Então, quem sonhou é como alguém que tem uma enorme
conta bancária e não sabe disso, ou perdeu sua chave de segurança, ou o número
de depósito. Então, qual a vantagem de tê-la? É bem verdade que se precisa ter
tato, esperar e ver se o sonho fará ou não sua própria ponte de ligação com o
consciente (do indivíduo que sonhou) e se esse processo pode ou não ocorrer por
si só, pois certamente é mais genuíno e as pessoas ficam muito mais
impressionadas com o que elas descobrem por si mesmas sobre seus sonhos do que
se alguém lhes apresenta uma interpretação, ainda que muito boa. Mas ocorre
frequentemente, que aqueles milhões no banco não são usados, e as pessoas
acabam empobrecidas. Há, ainda, uma outra razão por que a interpretação tem de
ser praticada: as pessoas tendem a interpretar seus próprios sonhos e mitos
dentro de um quadro específico de proposições conscientes. Por exemplo, um
"tipo-pensamento" tenderá a extrair somente alguma espécie de
pensamento filosófico que ele sente estar contido no sonho, e passará por cima
da mensagem emocional, e das circunstâncias afetivas. E eu mesma tenho
observado em homens, principalmente, que quando são cativos de sua própria anima (negativa), projetam essa sensação no
sonho e veem, talvez, só os aspectos negativos.
O intérprete é útil porque ele diz: "Mas
olhe aqui! O sonho começa muito ruim, mas observe, sua conclusão é muito boa.
Certamente, ele lhe diz que você ainda é tolo ou meio cego, mas também lhe diz
que há um tesouro". A interpretação traz um pouco mais de objetividade: o
sonho ou o conto não trilham somente um estado de consciência já existente. É
por isso que usamos interpretação em análise.
Como já sugeri, interpretação é uma arte ou
ofício, que só pode ser aprendida pela prática e experiência. Entretanto,
existem algumas regras para nos guiarem.
Da mesma forma que no sonho, nós dividimos a
história arquetípica em vários aspectos, começando com a exposição (tempo e
lugar). Em contos de fada o tempo e lugar são sempre evidentes porque eles
começam com "Era uma vez" ou algo semelhante, que significa fora de
tempo e de espaço — a "terra-de-ninguém" do inconsciente coletivo.
Por exemplo:
"Muito mais adiante do fim do mundo e
mesmo além das montanhas dos Sete Cães, havia uma vez um rei...".
"Na extremidade da terra, lá onde o mundo
termina com um muro..."
"Na época em que Deus ainda caminhava
sobre a terra..."
Há muitas maneiras poéticas de expressar essa
"terra-de-ninguém", esse tempo de "era uma vez", que, a
partir de M. Eliade, muitos mitólogos chamam de illud tempus, que é essa
eternidade atemporal de agora e de sempre.
Então, tomemos as dramatis personae (as pessoas
envolvidas). Eu recomendo contar o número de pessoas que
aparecem no começo e no fim da história. Se o conto começa: "O rei tinha
três filhos", nota-se que há quatro personagens e que a mãe está sendo
omitida. A história pode
terminar com um dos filhos, sua noiva, a noiva do seu irmão e uma outra noiva,
ou seja, quatro personagens também, mas numa outra disposição. Tendo-se
observado que está faltando a mãe no início da história e que há três mulheres
no final, poder-se-ia suspeitar que toda a história trata da redenção do
princípio feminino, como acontece em uma das histórias que eu apresentarei mais
tarde como ilustração.
Agora, nós continuamos com a exposição, ou
seja, com o início do problema. Você o encontrará na forma do velho rei que
está doente, por exemplo, ou o rei que descobre que toda noite são roubadas
maçãs douradas de sua árvore, ou que seu cavalo é estéril, ou que sua mulher
está doente e que precisa da água da vida. Algum problema sempre aparece no
início da história obviamente, porque se assim não fosse, não haveria história.
Então define-se o problema psicologicamente e procura-se também entender sua
natureza.
Em seguida, tem-se a peripetéia, que pode ser
curta ou longa — os altos e baixos da história. Isso pode ocupar páginas e
páginas, pois pode haver muitas peripeteiai; ou talvez tenha somente
uma, e então geralmente se alcança o clímax, o ponto decisivo, onde ou todo
enredo se desenvolve para uma tragédia ou ao contrário, dá tudo certo. Este é
o ponto alto da tensão. Então, com raras exceções, há uma conclusão feliz ou
catastrófica. Pode-se dizer, também, conclusão positiva ou negativa: ou o
príncipe encontra sua noiva, casam-se e são felizes para sempre, ou eles caem
no mar e desaparecem, e nunca mais ninguém ouve falar deles (esse último caso
sendo positivo ou negativo, dependendo do ponto de vista de cada um). Algumas
vezes, em histórias muito primitivas, entretanto, não há conclusão feliz nem
catástrofe, a história simplesmente cessa. De repente, torna-se estúpida e se
vai exatamente como se o contador de histórias de repente perdesse o interesse
e adormecesse.
E, ainda, pode haver um final ambíguo, algo que
não se encontra em outras espécies de lendas ou materiais míticos:
explicitando, um final feliz seguido de um comentário negativo do historiador.
Por exemplo: "E eles casaram, houve uma grande festa e havia vinho,
cerveja e um maravilhoso pedaço de carne; eu fui à cozinha, mas quando tentei
pegar alguma coisa, o cozinheiro me deu um pontapé no traseiro e saí correndo
tanto que cheguei até aqui para contar-lhe essa história".
Os russos algumas vezes terminavam assim:
"Eles casaram e foram muito felizes. Beberam muito vinho e cerveja, mas eu
não consegui beber tanto, pois o vinho sempre corria pela minha barba".
Alguns ciganos dizem: "Eles casaram e viveram felizes e ricos até o fim de
suas vidas, mas nós, pobres diabos, estamos aqui chupando o dedo e tremendo de
fome!"; e então, eles passam o chapéu recolhendo dinheiro.
Esta maneira de finalizar um conto de fada é um
rite de sortie[2], porque
um conto de fada leva você para longe, para o mundo sonhador da infância, do
inconsciente coletivo, onde você não pode ficar. Agora imagine que você mora
numa casa de camponeses e você permanece no clima do conto de fada, e então
você tem de ir à cozinha. Se você não saiu da história, você certamente
queimará a comida, porque você continuará a devanear sobre o príncipe e a
princesa. Então, a história precisa ser terminada com um: "Sim, este é o
mundo do conto de fada, mas nós estamos aqui numa realidade mais amarga. Nós
precisamos voltar ao nosso trabalho cotidiano, e não ficarmos sonhando e
questionando sobre a história". É preciso desligar o mundo do conto de
fada.
O método consiste, pois, em observar a
estrutura do material, a fim de que se possa pôr um pouco de ordem; e como eu
disse, devemos especialmente lembrar de contar RS figuras e o simbolismo do
número e o papel disso.
Existe um outro modo que eu algumas vezes
adoto, mas que não pode ser feito com todas as histórias. Por exemplo, há uma
história russa onde o czar tem três filhos e você pode colocá-la dessa maneira:
Primeiro existe um quarteto no qual a mãe é
omitida, e o herói, o 4º do sistema, vai para o Além (para o inconsciente, nós
podemos dizer, onde há três bruxas (Baba-Yagas) e a Princesa Maria, que fica
com o herói. No fim, Maria é redimida pelo herói e eles se casam e têm dois
filhos. Então, há um quarteto que é puramente masculino, um que é puramente
feminino e no fim (representado no centro do esquema), um quarteto misto, de
três homens e uma mulher. Não se pode traçar esse tipo de esquema com todas as
histórias. Há muitas histórias estruturadas dessa forma, entretanto é
necessário verificar se existe tal esquema. Se não existe, isto também é
revelador, porque a falta de uma estrutura é também significativa, como o é uma
estrutura irregular nas ciências físicas. A exceção pertence também aos
fenômenos, mas é necessário explicar por quê.
Para continuar com a sequência do nosso pensamento:
nós simplesmente tomamos o primeiro símbolo. Digamos que havia um velho rei
doente porque lhe faltava a água da vida, ou uma mãe que tinha uma filha
desobediente; é necessário ampliar tais elementos, o que significa que nós precisamos
procurar todos os possíveis temas paralelos. Eu enfatizo que é importante
reunir todos aqueles que se possam encontrar, pois inicialmente é muito
provável que não se encontrem muitos, quando você chegar ao número 2.000, então
pode parar! No conto russo O filho do czar, por exemplo, a história
começa com um velho czar e seus três filhos. O filho mais novo é o herói
"inocente" da história. Eu comparei o comportamento do czar com
aquele da função superior, e o filho com a quarta função, mas isso é discutível.
Isto não pode ser provado a partir da história, pois o czar não é eliminado no
final, bem como não luta com seu filho. Mas se você analisar histórias
paralelas, então, torna-se muito claro que o czar representa a velha função
superior e o terceiro filho é aquele que traz a renovação, isto é, a função
inferior.
Então, é preciso que se analise o material
comparativo, antes que possamos dizer qualquer coisa. Precisamos perguntar se
aquele tema ocorre em outros contos, como ocorre, e tirar uma média, e somente
então nossa interpretação pode ter uma base relativamente segura. Por exemplo,
pode haver um conto da fada no qual uma pomba branca tem um mau comportamento e
se é tentado a concluir que ela representa uma bruxa ou feiticeira. Nessa
história isso pode ser verdade, mas se você procurar o que uma pomba branca
usualmente significa, você se surpreenderá. Em regra geral, na tradição cristã,
a pomba branca significa o Espírito Santo, e em contos de fada, em geral,
significa uma mulher amante, tipo Vênus. Consequentemente, tem-se que perguntar
por que algo que é usualmente um
símbolo do Eros positivo, aparece negativamente nesta história. Tem-se uma
visão diferente da imagem, se não se preocupar em consultar outras histórias.
Imagine que você é médico fazendo sua primeira autópsia e encontrou um
apêndice no lado esquerdo, e não sabe, pela anatomia comparativa, que normalmente
apêndice fica no lado direito. O mesmo acontece com contos de fada: é
necessário que se conheça o contexto médio, no qual aparece um elemento, e,
então, confrontá-lo com material análogo a fim de que se conheça o que chamo de
"anatomia comparativa". Este estudo lhe permitirá compreender o que
é específico, e somente então, você poderá apreciar, com consistência, o que é
exceção. Amplificar significa alargar um tema através da junção de numerosas
versões análogas. Quando já se colecionou bastante paralelos de um tema, então
pode-se passar para 0 tema seguinte, e, deste modo, adentrar a história.
Existem ainda mais dois passos que devem ser
dados; o próximo será construir o contexto. Digamos que no conto de fada existe
um rato: amplificando-se o tema, nota-se que este rato comporta-se de uma
maneira específica. Encontrou-se, por exemplo, que os ratos representam as
almas dos mortos e bruxas; que eles são animais de demônio, que são o animal de
Apoio no seu aspecto infernal; que trazem a peste e também animais fantasmas,
pois quando alguém morre sai um rato de seu corpo, ou que a alma aparece sob a
forma de rato etc. Analisando o rato da história e os das amplificações,
verifica-se que algumas amplificações ajudam a entender e explicar o rato em
questão, outras não. Então o que fazer? Em tais casos, eu primeiro considero
aqueles ratos que explicam o "meu" rato, e deixo os outros de reserva
no bolso do colete, pois, algumas vezes, no decorrer da história, outros
aspectos do rato aparecem numa outra constelação e eu posso precisar deles.
Digamos que em nosso conto ele é um rato positivo e que não há nenhum
rato-bruxa por volta, mas, mais
adiante, existe alguma coisa sobre uma bruxa. Então você diria: "Hum, hum.
Existe uma conexão entre essas duas imagens; é muito bom que eu saiba que ratos
são bruxas também."
Segue-se, agora, o passo essencial, que é a
interpretação propriamente dita, ou seja, o trabalho de traduzir a história
amplificada para a linguagem psicológica. Há um risco de se ficar no meio do
caminho, ou seja, de ficar aprisionado no modo mítico de expressão e falar, por
exemplo, sobre "a mãe terrível que é vencida pelo herói". Tal
afirmação torna-se correta somente se a ela acrescentarmos: "A inércia do
inconsciente é suplantada por um impulso em direção a um nível mais alto de
consciência". Ou seja, precisa-se usar a linguagem estritamente
psicológica e somente então saberemos o que é interpretação.
O leitor de espírito crítico dirá: "Tudo
bem, mas o que se faz é simplesmente uma troca de um mito pelo outro que pode
ser chamado de mito junguiano". Não há muito o que se responder a isso, a
não ser dizer: "Sim, fazemos isso, mas conscientemente; sabemos o que estamos
fazendo e, sabemos também que daqui a 200 anos alguém lendo nossas
interpretações poderá dizer: 'Não é gozado? Eles traduziram o mito do conto de
fada para a psicologia junguiana e pensaram que era só isso e pronto! Mas nós
sabemos que...' ". E então, essas pessoas trarão uma nova interpretação e
a nossa será arrolada entre tantas outras interpretações — uma ilustração de
como tal material foi analisado na época. Estamos bastante conscientes dessa
possibilidade e de quão relativas são nossas interpretações e de que elas não
encerram a verdade última. Contudo, pela mesma razão que antigamente os contos
de fada e mitos eram contados, nós hoje os interpretamos, ou seja: existe um
efeito vivificante que provoca uma reação satisfatória, trazendo paz ao substrato
inconsciente instintivo, sendo o mesmo tipo de sensação
que os contos de fada provocam quando conta-os. Interpretação psicológica é o
nosso modo de contar histórias, pois ainda necessitamos delas e ainda aspiramos
à renovação que advém da compreensão de imagens arquetípicas. Nós sabemos muito
bem que a interpretação é o nosso mito. Nós explicamos X por Y, porque Y
corresponde melhor ao nosso espírito atual. Um dia não será mais esse o caso e
haverá necessidade de uma explicação Z. Isso nos leva a afirmar que nossas
interpretações nunca deverão se apresentar como "Isto é assim", o
que seria uma tapeação. Numa linguagem psicológica pode-se dizer somente que o
mito parece representar isso ou aquilo, e então, modernizá-lo sob essa forma. O
único critério correto seria perguntar: Essa interpretação é satisfatória? Em
que medida tem significado para mim e para outras pessoas? e meus sonhos
concordam com ela? Quando faço uma interpretação, eu sempre observo meus sonhos
para ver se eles concordam. Se eles concordam, então, eu sei que a
interpretação é a melhor que posso fazer— ou seja, que em relação à minha
própria natureza eu interpretei o material de maneira satisfatória. Se minha
psique não diz: "Está bem, porém você ainda não respondeu a isso", eu
sei que eu não posso ir mais além. É possível que haja outras revelações na
história, mas eu alcancei os meus próprios limites e não posso ir além de mim
mesma. Tenho, pois, que descansar, satisfeita, e comer o que posso digerir. Há
muito alimento no simbolismo do texto, mas eu ainda não posso digeri-lo
psicologicamente.
4
A interpretação de um conto: "As três penas"
Vamos abordar, agora, problemas mais práticos
de interpretação dos contos de fada. Por razões didáticas, eu escolhi um conto
de Grimm bastante simples, não pensando em termos de fazê-lo interessante ou
fascinante, mas, simplesmente, de expor o método de interpretação. Eu tentarei
demonstrar como se deve proceder para se chegar ao significado de uma dada
história. Eis o texto:
As três penas
"Era uma vez um rei que tinha três filhos.
Dois eram espertos e inteligentes, mas o terceiro não falava muito e era
simplório, por isso chamavam-no de 'Tolo'. O rei estava velho e fraco, pensava
na proximidade de sua morte e não sabia qual dos seus filhos deveria herdar seu
reino. Então, um dia, o rei disse a seus filhos que eles deveriam sair pelo
mundo e aquele que trouxesse o tapete mais bonito se tornaria rei quando ele
morresse. Para evitar qualquer briga entre eles, o rei os acompanhou até a
frente do castelo, assoprou três penas no ar e disse: Tara a direção que elas
voarem, vocês deverão seguir'. Uma pena foi para o leste, outra para o oeste e
a terceira voou só um pouco para a frente e caiu no chão. Logo, um irmão seguiu
para a direita, outro para a esquerda e eles riram do Tolo que tinha que ficar
onde a terceira pena caiu. O Tolo sentou-se no chão e estava muito triste,
quando de repente ele notou que havia um alçapão ao lado da pena. Ele
levantou-se e, abrindo-o, encontrou degraus que desciam; ele desceu as escadas
para dentro da terra. Ali, encontrou
uma outra porta, onde bateu e de dentro saiu uma voz que dizia:
— Senhorita-Rãzinha verde e pequenina, Encolha
a perna, Encolha a perna do cachorrinho, Encolha para frente e para trás, Vá
depressa ver Quem está a bater.
A porta se abriu; o Tolo viu uma rã enorme e
gorda sentada com várias rãzinhas em volta, circundando-a. A Senhora-rã,
então, perguntou-lhe o que queria, e ele disse que gostaria de ter o tapete mais
fino e mais bonito. Ela chamou uma rãzinha e disse:
— Senhorita-Rãzinha verde e pequenina, Encolha
a perna,
Encolha a perna do cachorrinho, Encolha para
frente e para trás Vá e a caixa grande me trarás.
A jovem-rã, correndo, trouxe a caixa; a
senhora-rã abriu-a e tirou de dentro um tapete tão lindo e tão delicado, que
jamais poderia ter sido tecido na terra, e deu-o para o Tolo. Ele agradeceu e
subiu novamente as escadas.
Os outros dois irmãos pensavam que o irmão mais
novo, sendo tão tonto, nunca seria capaz de encontrar coisa alguma, e assim
eles compraram mantas grosseiras que a primeira pastora que encontraram estava
usando. Juntos chegaram em casa os três irmãos, e quando o rei viu o tapete
tão lindo do Tolo, disse: 'Por direito o reino deverá ser entregue ao mais
jovem'. Mas, acontece que os outros dois irmãos não deixaram o pai em paz,
dizendo ser impossível entregar o reino ao Tolo, pois ele era tão estúpido e
pediram, então, que se fizesse outra prova.
Então o rei disse: 'Quem trouxer o anel mais
bonito terá o reino'. E outra vez as três penas foram sopradas. Os irmãos mais
velhos foram para leste e oeste, e para o Tolo a pena caiu em frente, no chão.
Como da vez anterior, o Tolo desceu até a sala
onde estava a senhora-rã e disse-lhe que precisava do anel mais bonito. Ela
abriu uma caixa, tirou de lá um anel cheio de pedras preciosas e tão lindo que
nenhum ourives da face da terra seria capaz de fazê-lo. Os outros dois irmãos
riram ao saber que o Tolo saíra em busca de um anel de ouro, e eles por sua vez
não encontraram dificuldade na tarefa e se contentaram em trazer um anel de uma
velha roda de carroça. Quando o Tolo mostrou seu anel de ouro, o rei falou que
o reino lhe pertencia. Novamente, os dois irmãos não deixaram o rei em paz, e
pediram-lhe que fizesse uma terceira prova. E o rei então disse: 'Quem trouxer
a noiva mais bonita terá o reino'. Ele soprou as penas, e os filhos seguiram as
direções das mesmas. O Tolo foi ao encontro da senhora-rã, e disse que agora
precisava levar a mulher mais bonita para sua casa. 'Ah! disse a rã, a mulher
mais bonita não se encontra à mão assim tão fácil, mas você a terá.' Ela,
então, lhe deu uma cenoura com um buraco no meio e presos a ela seis ratinhos.
E o Tolo, muito triste, disse: 'O que eu devo fazer com isso?' A rã
respondeu-lhe que ele deveria colocar uma de suas rãzinhas dentro da
carrocinha. Ele apanhou, ao acaso, uma das rãzinhas que circundavam a
senhora-rã, e colocou-a na carrocinha. Mal ela se senta e já se transforma numa
linda moça; a cenoura numa carruagem e os seis ratos em cavalos brancos. Ele a
beijou e dirigiu a carruagem para o palácio. Os irmãos comportaram-se da mesma
maneira que das vezes anteriores e voltaram para casa com as duas primeiras
camponesas que encontraram. Quando o rei os viu disse: 'O reino será do mais
jovem quando eu morrer'. E, novamente, os dois irmãos começaram a reclamar
dizendo que não deveria ser assim e, então, propuseram que aquele cuja esposa
saltasse através da argola que estava pendurada no teto deveria ganhar o reino.
Eles pensavam que as duas camponesas tivessem mais chance de vencer, pois eram
muito mais fortes que a esposa do Tolo, que era uma moça muito delicada. O
velho rei concordou e as duas camponesas saltaram, mas elas eram tão
desajeitadas que quebraram braços e pernas. Por outro lado, a mulher do Tolo
saltou tão leve quanto um veadinho atravessando a argola. E, então, não foi
possível mais fazer nenhuma objeção, os irmãos tiveram que aceitar a perda, e o
Tolo ganhou a coroa e reinou com sabedoria por muitos e muitos anos."
Pode-se reconhecer nessa história, simples e
clássica, um acúmulo de temas bem conhecidos. Balte e Polivka (Anmerkungen zu den Kindar und
Hausmãrchen der Brüder Grimm, vol. II, p. 30) dizem que esse
conto de fada foi encontrado pelos Grimm em 1819, em Zwehrn, Alemanha, e que
existe uma outra versão alemã, proveniente da região de Hesse, com pequenas
variações. Eu não vou repetir toda a história, mas nesta outra versão, o que se
tem é que ao invés de tapete é um lençol, e quando o Tolo desce à terra ele não
encontra rãs, mas uma linda jovem tecendo o lençol, o que muda um pouco o
problema. Ela também lhe dá um tapete e somente vira rã quando vem para a
superfície da terra. Isso significa que sob a terra ela lhe parece uma linda jovem,
mas, tão logo ela vem à superfície com o Tolo ela se torna uma rã. E como uma
rã, ela chega ao palácio do rei, numa carruagem e suplica em altos brados:
"Beija-me e versenk Dick". "Versenken" quer dizer meditação
intimista, ou seja, mergulhar na própria meditação — o que é uma expressão
muito estranha para um conto de fada. A rã repete isso três vezes para o Tolo,
que enlaçando-a pula num riacho com ela, pois ele entendeu
"versenken" como significando que ele deveria mergulhar na água (o
que também é um significado para essa palavra). No momento em que ele a beija e
mergulha, ela se torna uma linda mulher.
Existem ainda outras variações em Hesse. Em uma
outra, ao invés de três penas, tem-se três maçãs que rolam em diferentes
direções. Na versão francesa, a única variação é que, ao invés de rã, existe um
gato branco. Para não repetir todas as possibilidades, mencionarei algumas mais
frequentes. O tema das penas, por exemplo, aparece muitas vezes como flechas
que o pai atira em três direções. A noiva pode aparecer como uma rã, um sapo,
um gato branco, uma maçã, um lagarto ou uma tartaruga e, algumas vezes, ocorre
ser um objeto inanimado como uma meia comprida, uma boneca ou uma boina que
salta.
No final de todas essas variações — entre as
quais as russas são as mais interessantes — existe sempre uma nota curta,
explicativa para o fato de soprar uma pena, que é uma forma de decidir a
direção a seguir e é um costume comum de muitas cidades medievais. Não se
sabendo aonde ir, ou estando perdido numa encruzilhada, e não tendo nenhum
plano, então, o costume era apanhar uma pena, assoprá-la e caminhar para a
direção que o vento a levasse. Esta era uma espécie de oráculo pelo qual as
pessoas se guiavam. Existem muitas histórias medievais e mesmo expressões folclóricas,
que se referem a isso, como, por exemplo: "Eu devo ir para onde a pena
voar". Em países nórdicos e em certas versões russas e italianas, ao invés
de penas e flechas, ou maçãs, aparecem esferas ou bolas.
Começaremos o nosso estudo com a análise das primeiras
sentenças do conto. A exposição da história começou assim: "Era uma vez um
rei que tinha três filhos. Dois eram espertos e inteligentes, mas o terceiro
não falava muito e era simplório, por isso chamavam-no de Tolo. O rei estava
velho e fraco, pensava na proximidade de sua morte e não sabia qual dos seus
filhos deveria herdar seu reino". Isso mostra a situação psicológica de
abertura. A última sentença propõe o problema, a saber, quem deverá suceder ao
rei e herdar o reinado.
Esse tipo de situação de abertura — o rei e
seus três filhos — é extremamente frequente. Considerando-se somente a coleção
de Grimm, que é uma fração no mundo dos contos de fada, encontra-se ao menos 50
ou 60 histórias que se iniciam dessa forma. Esta não é uma família normal, pois
não há nem mãe nem irmãs, sendo este contexto inicial puramente masculino. O
elemento feminino que existe numa família completa não está representado.
Decorre daí que a ação principal refere-se ao fato de se encontrar a mulher
adequada, da qual depende a herança do reino. Consequentemente, espera-se que o herói não realize nenhum dos feitos viris.
Ele não é um herói no sentido próprio da palavra. Ele é ajudado o tempo inteiro
pelo elemento feminino, que resolve todos os problemas para ele, e realiza todas
as tarefas exigidas, tais como tecer o tapete, encontrar o anel e pular através
da argola. A história termina com um casamento — uma união equilibrada dos
princípios feminino e masculino. Em resumo, a estrutura geral da história
indica a existência de um problema, que é uma atitude masculina dominante,
uma situação que omite o elemento feminino, e toda a trama mostra como esse
elemento feminino é trazido à luz e restaurado.
Primeiro, devemos considerar o simbolismo do
rei. Um estudo mais aprofundado sobre o rei encontra-se na alquimia num
capítulo intitulado "Rex et Regina", do livro de CG. Jung, Mysterium
Conjunctionis. O material coletado por Jung é muito extenso, mas farei uma
condensação breve do que ele diz sobre o rei.
Nas sociedades primitivas, geralmente o rei ou
o chefe da tribo tem qualidades mágicas — ele tem mana. Certos chefes,
por exemplo, são tão sagrados que não podem mesmo tocar a terra e por isso são
carregados pelo seu povo. Em outras tribos, as vasilhas onde o rei come e bebe
são jogadas fora e ninguém pode tocá-las — elas são tabu. Alguns chefes e reis
também nunca são vistos por causa de um tabu — quem olhar a face do rei
morrerá. De alguns chefes é dito que suas vozes são como trovões e que de seus
olhos emanam raios. Em muitas sociedades primitivas, a prosperidade de todo o
país depende da sanidade física e psíquica do rei: se ele se torna impotente ou
doente, ele tem que ser morto e um outro rei tomar seu lugar, um novo rei cuja
saúde e potência garantam a fertilidade das mulheres e do gado, tanto quanto a
prosperidade de toda a tribo. Frazer cita exemplos de sociedades onde não se
espera o rei chegar à impotência ou à doença, mas ao invés disso, o rei é morto
após certo período de tempo —
diga-se 5, 10 ou 15 anos — estando subjacente a mesma ideia, ou seja, que o rei
deve ser reposto periodicamente. Em certas tribos prevalece a ideia de que,
realmente, não se deve matar o rei, que incorpora uma espécie de espírito
protetor e ancestral para a tribo, mas que haja uma sucessão: a velha casa é
derrubada, de tal forma que o espírito possa se mudar para uma nova casa e
continuar a reinar. A crença é que o mesmo espírito sagrado e totêmico continua
reinando e que a morte do rei se faz necessária, pois propicia um melhor
continente físico para esse espírito.
Pode-se dizer, em resumo, que o rei ou chefe
incorpora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico
de toda a nação. O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível,
é sua encarnação e sua moradia. No seu corpo vive o espírito do totem da tribo.
Consequentemente, ele tem muitas características que nos levariam a
considerá-lo o símbolo do SELF, porque o SELF, de acordo com a
nossa definição, é o centro do sistema autorregulado da psique, do qual depende
o bem-estar do indivíduo. (Os nossos reis cristãos, frequentemente, carregavam
uma esfera — a terra — com uma cruz sobre ela; e os reis, em geral, carregavam
outros tantos símbolos pertencentes a vários contextos mitológicos que, como
se sabe, representam o SELF.)
Em muitas tribos há uma separação entre o
curandeiro (médico) e o rei ou chefe — isto é, entre os poderes terrestres e
espirituais — a mesma coisa acontece em nossa civilização; por exemplo, na
Idade Média, a terrível luta entre o sacerdotium e imperium (a
Igreja e o Estado). Esses poderes chamavam a si o princípio divino, clamando
ser a encarnação dos símbolos do divino — ou, como pode-se dizer, símbolos do
inexprimível arquétipo do SELF. Em todos os países e no simbolismo
alquímico, relatado no livro de Jung, a ideia dominante é a de que o rei velho
é de alguma maneira insatisfatório. Nas tribos primitivas,
quando ele é impotente, do harém surgem os rumores, e a tribo, silenciosamente,
decide matá-lo. Ele pode ainda ser insatisfatório sob outros aspectos: ele pode
ser muito velho para realizar determinadas tarefas, ou seu tempo já se esgotou
(ele já reinou 10 ou 15 anos); torna-se, então, inevitável a morte do rei.
Em civilizações mais adiantadas, como, por
exemplo, no Antigo Império Egípcio, havia um ritual de renovação, uma morte e a
ressurreição simbólica do rei, como o que era realizado na Festa de Sed. Em
outros países havia o denominado rei do Carnaval. Um criminoso condenado a
morrer tem o direito de viver seus três últimos dias como um rei. Ele se veste
como um rei, com todas as insígnias, tiram-no da prisão e ele pode pedir o que
quiser, pode ter todas as mulheres que quiser, pode realizar festins e tudo o
mais e, depois de três dias, ele é executado. Existe também um ritual onde um
boneco é "morto" no lugar do rei. Atrás de todas essas diferentes
tradições, existe o mesmo tema: a necessidade de renovação do rei através da
morte e do renascimento.
Se se aplica isso tudo à nossa hipótese — ou
seja, de que o rei é um símbolo do SELF, pode-se perguntar: Por que um
símbolo do SELF envelhece? Conhecem-se alguns processos psicológicos que
correspondam a esse fato? A história comparada das religiões mostra a tendência
dos rituais ou dogmas religiosos a tornarem-se superados depois de um tempo, a
perderem seu impacto emotivo original, tornando-se fórmulas mortas. Embora
adquiram qualidades positivas da consciência, como a continuidade, eles perdem
o contato com a corrente irracional da vida e tendem a tornar-se mecânicos.
Isso é verdadeiro não somente para as doutrinas religiosas e sistemas
políticos, mas para quase tudo na vida, pois quando algo se torna consciente
por muito tempo, é como o vinho que se esvai da garrafa; torna-se um mundo
morto. Consequentemente, se nossa vida consciente quiser evitar uma
petrificação, há necessidade de
constante renovação pelo contato com a corrente da vida psíquica inconsciente;
e o rei, sendo o símbolo dominante e mais central dos conteúdos do inconsciente
coletivo, está naturalmente sujeito a esta necessidade.
Pode-se dizer que o símbolo do SELF está
também exposto a esse processo e tem necessidade de renovação constante, de
compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma
fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e
tornar-se uma fórmula puramente exterior. Nesse sentido, pode-se dizer que um
rei envelhecido representa um conteúdo dominante da consciência coletiva e está
subjacente a todas as doutrinas políticas e religiosas de um grupo social. No
Oriente, para muitas camadas da população, este conteúdo aparece como o Buda,
e para nós, até agora, como Cristo que, de fato, foi chamado de "Rei dos
reis".
Na nossa história, aparentemente o rei não tem
esposa, ou se tem, ela não aparece. O que representaria, então, a rainha? Se
nós tomarmos o rei como representação do conteúdo simbólico central e
dominante da consciência coletiva, então a rainha seria o elemento feminino
correspondente, ou seja — as emoções, sentimentos ou ligações irracionais desse
conteúdo dominante. Pode-se dizer que em cada civilização há uma cosmovisão com
uma imagem central de Deus que domina a civilização, e com decorrentes hábitos
ou estilos de vida, com uma certa forma de sentir e de viver o Eros, que
influenciam o relacionamento das pessoas umas com as outras. A tônica do
sentimento afetivo dessa coletividade seria representada pela rainha,
companheira do rei; assim, na Idade Média, a ideia gótica de Cristo se
encarnava na figura do rei daquela época, enquanto as representações de Eros —
encontradas nos poemas dos trovadores — cristalizavam-se em torno da Virgem
Maria, a Rainha do Céu, relacionada com o
Cristo-Rei. Ela estabeleceu um modelo de comportamento feminino, e um padrão
para a anima do homem tanto quanto para a da mulher. Nos países
católicos, as mulheres tendem ainda a se adaptar naturalmente a esse modelo, e
os homens tentam educar a anima para se enquadrar neste estilo de
relacionamento e comportamento erótico.
Pode-se, pois, observar a conexão íntima
existente entre o rei e a rainha, o princípio do Logos dominando uma certa
civilização e atitude coletiva, e o estilo de Eros acompanhando-o de uma forma
específica. A ausência da rainha significa que esse último aspecto foi perdido
e, consequentemente, o rei é estéril; sem a rainha, ele não pode ter mais
filhos. Pode-se pressupor, então, que a história trata da problemática de uma
atitude coletiva dominante na qual o princípio de Eros — o relacionamento com
o inconsciente, com o irracional, o feminino — foi perdido. Isto se refere à
situação onde a consciência coletiva tornou-se petrificada e enrijecida em
doutrinas e fórmulas.
Este rei tem três filhos; então, o problema se
propõe sob a forma de quatro figuras masculinas, três das quais estão adaptadas
ao que deveriam ser e a quarta está abaixo da média. As pessoas que conhecem a
psicologia junguiana, naturalmente, concluirão que eles significam obviamente
as quatro funções da consciência: o rei, a função dominante ou principal; os
dois irmãos mais velhos, as funções auxiliares, enquanto que o Tolo seria a
quarta função, ou seja, a função inferior. Isso pode ser correto, porém
parcialmente, pois a teoria das quatro funções de Jung refere-se ao indivíduo.
Nos contos de fada não se tem a história interior de um indivíduo e então não
podemos olhar por esse ângulo. Devemos, sim, ampliar o tema da quaternidade
masculina, e encontraremos na História da Humanidade temas, tais como os Quatro
filhos de Horo, os Quatro evangelistas, e outros mais circundando o
símbolo principal do SELF.
Estas quaternidades encontradas na história comparada
das religiões e na mitologia não podem, a meu ver, ser interpretadas como as
quatro funções que aparecem no âmbito do indivíduo. Elas representam um padrão
mais básico da consciência do qual a estrutura das quatro funções é derivada.
Se nós sabemos como diagnosticar um tipo psicológico, podemos dizer que tal
homem é um "tipo-pensamento" e que seu sentimento inferior traz tais
e quais problemas, e que certos aspectos do seu comportamento são característicos
desse tipo, enquanto outros são mais individuais. O problema das quatro funções
sempre aparece para um indivíduo, num certo contexto, mas existem tendências
gerais básicas subjacentes. Finalmente, pode-se questionar por que a
consciência humana tende sempre a desenvolver, em cada homem, as quatro
funções. E a resposta é que pode haver uma disposição inata no ser humano para
estruturar um sistema consciente quadrifuncional. Mesmo havendo pouca ou
nenhuma influência numa criança, ela espontaneamente desenvolverá uma função, e
se for analisada na idade de 30 ou 40 anos, ela apresentará uma estrutura
quadrifuncional. A disposição geral subjacente é espelhada em muitos símbolos
quaternários na mitologia, tais como os quatro ventos, os quatro pontos
cardeais e também as quatro figuras reais desse nosso conto.
Para ser exato, dever-se-á dizer que o rei não
representa a principal função, mas é a base arquetípica daquela função, no
sentido de que ele é o fator psicológico que constrói as principais funções de
todas as pessoas. Pode parecer que eu esteja me contradizendo, pois, primeiro,
eu disse que o velho rei representava o conteúdo dominante da consciência
coletiva e, agora, eu digo que ele simboliza aquela disposição responsável pelo
surgimento da função principal. Como isso se relaciona? É uma contradição? Isto
poderá parecer uma segunda interpretação, mas se refletirmos a respeito de
como uma função principal
se forma, observaremos então que ela se constrói na primeira metade da vida
humana servindo geralmente à adaptação coletiva. Tomemos, por exemplo, o caso
de um menino, que ao brincar com coisas práticas, mostra-se habilidoso, e seu
pai então lhe diz que ele será engenheiro mais tarde e o menino é, assim,
encorajado; na escola tenderá a ser muito bom nas matérias ligadas a esse
campo, enquanto será ruim nas outras, ficando orgulhoso do que ele pode fazer
bem, e quererá fazer sempre melhor, porque há uma tendência natural para se
fazer sempre aquilo que sai melhor e negligenciar o outro lado. Essa
perspectiva unilateral, sem dúvida, aos poucos formará a função principal, que
é aquela função com a qual as pessoas se adaptam às necessidades coletivas.
Portanto, o dominante da consciência coletiva, também constela a função
principal no indivíduo.
Retornemos ao homem medieval para quem a figura
dominante do SELF é o Cristo. Se esse homem, por suas disposições, for
um tipo-pensamento, ele meditará intelectualmente sobre a essência do Cristo;
se sua tendência inata for o tipo-sentimento, ele será envolvido pelas preces
que ouve e não pensará sobre o símbolo de Cristo, mas se relacionará com ele
através de sua função principal, o sentimento. E, pois, assim que o rei
representa o conteúdo simbólico dominante de uma situação consciente coletiva,
e que está, também, relacionado com a função principal de cada pessoa.
Os outros filhos, logicamente, têm que ser
interpretados nessa mesma linha — isto é, os dois filhos que são inteligentes
e bem dotados representam o fundamento básico para a construção das duas
funções auxiliares no ser humano — e o Tolo representaria a base da construção
da função inferior. Mas o Tolo não é somente isso, ele é também o herói, e toda
a história está centrada nele. Então, nós precisamos considerar, ainda que
brevemente, o que significa a figura do herói numa história mitológica, pois, lendo-se muitas interpretações
psicológicas dos mitos, logo se percebe que há uma tendência constante a interpretar
o herói ora como símbolo do SELF, ora como símbolo do "Ego".
Alguns autores se contradizem no mesmo tempo: eles começam como se o herói
fosse um "Ego" e, depois, passam a interpretá-lo como sendo o SELF.
Antes de se discutir esse problema, é
necessário ter-se claro o que se entende por "Ego". O ego é o
complexo central do campo da consciência da personalidade. Mas como todas as
pessoas têm um "Ego", então, falar em "Ego" já é uma
abstração, pois está-se falando do "Eu" de todas as pessoas. Se se
diz frases tais como: "O ego resiste ao inconsciente", então, está-se
fazendo uma observação geral, algo que se aplica ao ego médio, desprovido das
qualidades mais subjetivas e únicas.
Agora tem-se que ver o símbolo do herói nos
mitos, o que normalmente ele faz. Frequentemente, ele é um salvador: ele salva
seu país e seu povo de dragões, bruxas e de outros males. Em muitas histórias,
é ele quem encontra o tesouro escondido. Ele liberta sua tribo e livra-a de
toda a sorte de perigos. Ele restabelece as ligações de seu povo com os deuses
e com a vida. Ele renova o princípio da vida. É ele, também, quem navega pelos
mares à noite, e que saindo fora da barriga da baleia, leva consigo todos
aqueles que foram engolidos antes dele. Em certos mitos, ele é excessivamente
autoconfiante, chegando mesmo a ser destrutivo. Então, os deuses, ou alguns
poderes inimigos, decidem destruí-lo. Em muitos mitos o herói aparece como uma
vítima inocente dos poderes malignos. Existe ainda uma figura de
herói-trapaceiro, que tanto faz coisas boas como más, e que liberta seu povo,
mas também coloca-o em algumas dificuldades; ele ajuda certas pessoas e
destrói outras por engano ou por distração; então, ele é semidiabólico,
semi-salvador, e nestes casos ele pode ser ou destruído ou reformulado ou
transformado no final da história.
Entre as figuras de herói existe uma grande
variedade: o tipo "tolo", o tipo trapaceiro, o homem-forte, o
inocente, o jovem belo, o feiticeiro, aquele que resolve os problemas e
obstáculos através da mágica e aquele que os suplanta e resolve através de
poder e coragem. Sabe-se pelos resultados de pesquisas na área da psicologia
infantil, que nos primeiros 20 anos de vida (tomando-se uma estimativa ampla),
a principal tendência do inconsciente é construir um complexo de Ego forte, e
que a maioria das dificuldades na juventude resultam de perturbações ocorridas
nesse processo, seja pela influência negativa dos pais, seja pela experiência
traumática ou qualquer outro distúrbio. Em casos tais como os descritos por
Michael Fordham, o complexo do Ego não é capaz de se construir. Mas, existem
processos naturais observáveis na psique da criança: os sonhos os espelham e é
através dos sonhos que se pode observar o modo como o ego se forma. Ora, um dos
fatores desta formação é o ideal do herói que desempenha o papel de modelo. O
pai muitas vezes preenche esse papel, da mesma forma que os maquinistas de
trens, policiais, irmãos mais velhos, ou os meninos maiores da sala de aula;
são eles que recebem a transferência da criança. Nos seus sonhos secretos, a
criança imagina que é aquilo que ela quer ser quando crescer. As fantasias de
muitos garotinhos são aquelas de vestir uma capa vermelha e sinalizar os trens,
de ser o chefe, o "chefão", o rei, ou chefe de polícia. Esses modelos
são projeções produzidas pelo inconsciente; elas aparecem naturalmente nos
sonhos dos adolescentes ou são projetadas em figuras externas que captam a
fantasia da criança e influenciam a construção do seu ego; toda mãe sabe disso.
Por exemplo, se a mãe leva seu filho ao dentista, ela pode dizer: "Bem,
olhe, agora você é o chefe de bombeiros, e como o chefe de bombeiros não chora,
você não pode chorar quando o dente for arrancado!". Isso fortifica o ego
do menino, de modo que ele tentará controlar suas lágrimas. Este é um método
comumente usado para educar, e é um truque. Se um menino admira um amiguinho
mais velho chamado Alberto, e comporta-se mal, a mãe dirá: "O Alberto não
faria isso" e, então, o menino tentará se comportar melhor.
Esses são os processos psicológicos típicos que
demonstram como, aos poucos, o complexo do ego — centro do campo consciente — é
formado nas crianças. Se se observam mais atentamente esses processos, através
dos sonhos ver-se-á que eles brotam do SELF e que é o SELF que
constrói o ego. Uma representação gráfica mostraria a totalidade psíquica
desconhecida de um ser humano como uma esfera e não um círculo — sendo a parte
superior da esfera o campo da consciência; qualquer coisa neste campo é
conhecida e o centro dele é o complexo do ego. Tudo o que não estiver ligado,
por qualquer associação que seja, com o complexo do ego, é inconsciente. Antes
desse campo da consciência existir, o centro regulador do SELF (o SELF
é considerado como a totalidade e o centro regulador de toda personalidade,
e parece estar presente desde o início da vida do indivíduo) constrói o
complexo do ego através de certos processos emocionais ou outros. Estudando-se
os simbolismos do complexo de ego e do SELF, observa-se que o ego tem as
mesmas estruturas, e é, em grande parte, uma imagem espelhada do SELF. São
bem conhecidas as representações do SELF nos mandalas, por exemplo, e o
ego tem a mesma divisão quaternária que se vê no mandala. O centro do SELF vai
progressivamente construindo o complexo do ego, que espelha este centro
original e que, como todos sabem, frequentemente, sucumbe à ilusão de ser ele
aquele centro. A maioria das pessoas que não são analisadas, naturalmente,
acreditam (por suas convicções emocionais) em que Eu sou EU — que EU sou tudo.
E até esta ilusão ocorre pelo fato de o ego ter sido formado a partir do centro
da totalidade. Mas na infância há a tragédia da separação;
por exemplo, o evento típico de ser expulso do Paraíso, o primeiro choque de se
ver incompleto e de descobrir que alguma coisa perfeita foi para sempre
perdida. Tais tragédias espelham o momento em que o ego começa a tornar-se uma
entidade à parte do SELF e a estabelecer-se como um fator com existência
própria, perdendo-se parcialmente a conexão intuitiva com o centro.
Até onde se sabe, o ego funciona de maneira
apropriada somente quando ele consegue uma certa adaptação ao sistema
psíquico. Isso significa que ele funciona melhor se uma certa plasticidade é
conservada, ou seja, quando o ego não está petrificado ele pode, através dos
sonhos, de humores etc., ser influenciado pelo SELF, adaptando-se, assim,
a todo o sistema psíquico. É como se o ego significasse, pela própria natureza,
ser, não um guia, mas um instrumento da totalidade do sistema psíquico, que
funciona melhor quando responde às necessidades básicas instintivas dessa
totalidade e, não, quando resiste a elas.
Imagine-se, por exemplo, diante de uma situação
perigosa em que o instinto o manda fugir (não é preciso ter um ego muito
consciente para isso). Se um touro corre atrás de você, você não necessita
consultar o seu ego; é muito melhor você consultar suas pernas que sabem o que
fazer. Mas, se o ego funciona com suas pernas, então, enquanto você está
fugindo do touro, você também está procurando um bom lugar para se esconder, ou
uma cerca para pular, então a situação é perfeita: seus instintos e seu ego
funcionam de acordo um com o outro. Se, por outro lado, você for um filósofo
cujas pernas querem correr, mas que pensa assim: "Pare, eu primeiro
preciso pensar se é certo fugir do touro", então o ego bloqueia a
necessidade instintiva, tornando-se autônomo, antinstintivo e destrutivo, tal
como se observa em todo indivíduo neurótico. A neurose pode ser mesmo definida
com um ego cuja estrutura
não é mais capaz de se harmonizar com toda a personalidade. Se, pelo contrário,
o ego funciona de acordo com a totalidade da personalidade, essa o reforça
deixando aparecer a sabedoria inata das estruturas instintivas básicas.
Por vezes, é necessário que o ego resista ao
instinto. Imagine, por exemplo, os lemingues, espécie de rato do Ártico Norte
que têm uma necessidade instintiva de migrar para uma outra região onde possam
obter comida. Guiados por esse impulso instintivo, eles se reúnem e partem. Se,
por azar, eles se defrontam com o mar ou com um rio, eles continuam sua marcha
e morrem afogados aos milhares. Estou certa de que vocês conhecem essa
história, que tem deixado perplexos os zoólogos, à medida em que demonstra a
inadequação de alguns instintos naturais. Konrad Lorenz deu-nos, uma vez, uma
conferência com muitos exemplos desse tipo; eu me lembro de um sobre um
pássaro que, para agradar sua companheira na época da acasalamento, produz um
enorme saco vermelho no seu peito o qual lhe dá força para o canto de
casamento. Este saco vermelho é tão pesado que ele não pode voar, então seus
inimigos se juntam e atacam-no, trucidando-o. Como se vê, essa não é uma
invenção muito boa! Um bonito rabo vermelho, ou um traseiro vermelho como o que
tem o macaco babuíno seria bem melhor, pois o deixaria livre para voar se
necessário. Pode-se observar, então, que os padrões instintivos nem sempre são
positivos. Vamos imaginar que o lemingue pudesse se perguntar por que ele
está agindo daquela maneira, pudesse refletir sobre a situação e perceber que
ele não tem nenhuma vontade de se afogar e, ainda, que poderia voltar atrás;
isso seria muito útil para ele. Essa talvez seja a razão do porquê da natureza
inventar o ego como um novo instrumento para nós; nós somos um experimento
novo na natureza, pois nós temos um instrumento adicional para regular os
impulsos instintivos. Nós não vivemos
apoiados somente sobre as estruturas de comportamento, mas dispomos de algo
mais, de um estranho aditivo conhecido como ego. A situação ideal, tanto
quanto possamos depreender, é quando o ego, com uma certa plasticidade, obedece
à regulagem central da psique. Mas quando ele se endurece e torna-se autônomo,
agindo de acordo com as próprias razões, geralmente aparece uma síndrome
neurótica. Isto acontece não somente com o indivíduo em particular, mas também
com a coletividade como um todo, razão pela qual fala-se em neuroses e psicoses
coletivas. Grupos inteiros da espécie humana ao desviarem-se de seus padrões
instintivos básicos podem cair nessa situação dicotômica e, então, o desastre
está próximo. Essa é a razão por que, nas histórias de heróis, existe sempre um
contexto situacional terrível; por exemplo, a terra está secando porque as rãs
estão bloqueando a água da vida ou, ainda, algum inimigo sombrio chega do
Norte, rouba todas as mulheres, deixando a região sem possibilidade de procriar.
Seja quão terrível for a situação, o herói tem a tarefa de repará-la. O dragão
pode ter exigido todas as jovens do rei para serem sacrificadas; todas as
pessoas no reino já se vestem de preto e quando a última princesa vai ser doada
ao dragão, então, sempre aparece o herói.
O herói é, consequentemente, o restaurador da
situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal
e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão
desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então,
que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego
funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique
inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando
corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF.
Assim sendo, de certa forma, o herói parece ser o próprio SELF, pois
ele serve de instrumento do SELF e
realiza completamente tudo o que o SELF quer que aconteça. Dessa forma,
ele é também o SELF, pois expressa ou encarna as tendências salvadoras
que ele tem. Então, o herói tem esse estranho duplo caráter. Isso é captado de
maneira mais simples e ingênua pelos sentimentos. Quando se ouve um mito
heroico, pode haver identificação com o herói e ser-se contaminado pelo humor
do herói. Digamos, por exemplo, que uma tribo esquimó está prestes a morrer de
inanição: os resultados das caçadas têm sido ruins. Sabe-se que os primitivos
muito facilmente desistem, abandonam a luta e morrem por falta de coragem,
antes mesmo que isso seja física ou psicologicamente necessário. Então, surge
um contador de histórias e conta que fulano teve contato com espíritos e que
através disso salvou sua tribo da inanição etc. e tal. Isto pode colocá-los de
pé, outra vez, simplesmente através do emocional. O ego adota uma atitude
heroica, corajosa e cheia de esperanças, que salva a situação coletiva. Isto é
a razão por que as histórias de heróis constituem uma necessidade vital em
condições difíceis da vida. Se você retoma o seu mito-heroico, então você pode
viver. Ele dá as razões de se viver e ao mesmo tempo restaura a coragem.
Quando se contam histórias de fada para as
crianças, elas se identificam ingênua e imediatamente e captam toda a atmosfera
e sentimento que a história contém. Se a história do pobre patinho é contada,
todas as crianças que têm complexo de inferioridade esperam que no fim elas
também se tornem princesas. Isso funciona exatamente como deveria ser; o conto
oferece um modelo para a vida, um modelo vivificador e encorajador que
permanece no inconsciente contendo todas as possibilidades positivas da vida.
Há um costume muito bonito entre os aborígenes
australianos: quando o arroz não está crescendo bem, as mulheres vão para os
campos de arroz, ficam de cócoras e contam
para o arrozal o mito da origem do arroz. Então, o arroz fica sabendo por que
ele está lá e se põe a crescer. Isto é, provavelmente, uma projeção de nossa
própria situação; conosco isto também é verdadeiro, pois se retomamos esses
mitos, nós compreendemos as nossas razões de viver e isso muda toda a nossa
disposição de vida, podendo muitas vezes mudar nossa própria condição
psicológica.
Interpretando o herói dessa forma, então fica
claro por que o Tolo é o herói. Sendo o rei o elemento dominante da atitude
consciente coletiva que perdeu contato com o fluxo de vida, especialmente com o
feminino (o princípio de Eros), o Tolo representa a nova atitude consciente,
que é capaz de entrar em contato com o feminino, pois é ele que faz da rã uma
princesa. De modo característico, é ele que é chamado de estúpido e que parece
o mais azarado. Mas se se observar seu comportamento de perto, ver-se-á que ele
é simplesmente espontâneo e natural; ele aceita as coisas como elas são. Por exemplo,
os dois irmãos não são capazes de aceitar os fatos: cada vez que o Tolo vence,
eles querem uma outra competição, dizendo que aquilo na está certo. Mas o mais
novo simplesmente faz o que tem que ser feito, até mesmo quando tem que se
casar com uma rã, o que não é lá muito agradável, mas é assim que as coisas
são. Obviamente, essa é a qualidade enfatizada pela história.
Podem-se sempre considerar essas histórias como
se consideram os sonhos das pessoas, perguntando-se qual situação consciente é
compensada por tal mito. Então, claramente, vê-se que essa história compensa a
atitude consciente de uma sociedade patriarcal, cujo esquema de deveres e
obrigações predominam. Ela é regida por princípios rígidos, razão pela qual a
adaptação espontânea e irracional aos eventos é perdida. Histórias como esta
são, estatisticamente, mais encontradas nas sociedades do homem branco do que
em outras e é óbvio por
que isso acontece: nós somos povos que devido a um superdesenvolvimento da
consciência perdemos a flexibilidade de aceitar a vida como ela é. Assim, as
histórias de ingênuos ou de tolos são de especial valor para nós. Existe
também um número muito grande de histórias em que o herói parece como um
indivíduo completamente preguiçoso: ele contenta-se simplesmente em sentar-se
perto de um fogo e ficar se coçando, e então, as coisas de que precisa caem no
seu colo. Essas histórias são também compensatórias, no caso de uma atitude
coletiva que enfatiza por demais a eficiência. Esses contos onde o herói é
preguiçoso são, então, contados e recontados com um grande prazer — pois trazem
em si uma mensagem benéfica e de cura.
Retomando o conto, vemos que o rei não sabe a
quem deixar seu reino. E nesse ponto ele se desvia do seu tipo provável de
comportamento, pois ele deixa que o destino resolva quem deve herdar o reino.
Essa não é uma maneira comum de agir; apesar de ser frequente no caso de rei
velho, não é, porém, a única alternativa. Há outras histórias onde o velho rei
fica sabendo, seja através de um sonho, seja de uma profecia, quem será o novo
rei e, então, ele põe toda sua energia e paixão em prol da destruição do seu
possível sucessor. Esse é um outro tipo de história e um exemplo pode ser
encontrado em Grimm no conto O demônio e os três cabelos de ouro, mas
desse tipo existem exemplos aos milhares. Algumas vezes ocorre no início da
história que o rei dá uma chance aos seus possíveis sucessores, mas se é
eleito um sucessor que não está de acordo com seus planos, ele começa a opor
resistência.
Há pessoas neuróticas cujas atitudes do ego
divergem de sua natureza psicológica total, e que vêm para análise sem grande
resistência, pois elas justamente querem saber o que vem depois e se seus
sonhos produzem alguma vida nova, elas a aceitam e vão em frente, sem
praticamente qualquer resistência. Com elas, a "sucessão
do rei" — uma atitude do ego reposta por outra — é relativamente fácil.
Mas existem outras que descrevem seus sintomas e seus sonhos, mas se o
analista sugere, ainda que timidamente, qual seria o problema, elas pulam na
sua garganta e argumentam que pode ser tudo, mas que aquilo certamente não é.
"Aquilo" elas sabem que está bem, e lutam contra qualquer argumentação
em contrário. Esse é um exemplo típico de estrutura do ego endurecida a tal
ponto que recusa qualquer possibilidade de renovação. Eu, frequentemente, digo
a essas pessoas que elas têm a mesma atitude daquele indivíduo que vai ao
médico e pede que esse o cure, mas que, por favor, não examine a urina porque é
algo muito pessoal. Muitas pessoas fazem isso. Eles vão para a análise, mas
guardam as informações principais no bolso do colete, pois "não é da conta
de ninguém" o conhecimento daqueles aspectos. Em todas essas variações de
comportamento você reconhece o velho rei — que num indivíduo significa o centro
de sua consciência — resistindo à renovação.
Naturalmente, uma resistência desse tipo encontra-se,
também, em situações coletivas. Uma sociedade inteira pode ser violentamente
contrária a uma certa reforma religiosa e, depois, quase que instantaneamente
passa a reconhecê-la. Só para mencionar um exemplo clássico, doze sentenças
escritas por santo Tomás de Aquino, o grande pilar da Igreja católica, foram
condenadas pelo Concilio de 1320. Então, pode-se observar que aquilo que
posteriormente foi reconhecido como sendo nada hostil, a princípio sofreu
resistência por causa do preconceito coletivo da época. Isso se estende às
perseguições políticas ou religiosas, censuras nos jornais e perseguições nos
negócios etc., — tudo isso que está ocorrendo agora, e que sempre ocorrerá em
qualquer contexto social do mundo. Existe a fobia de que a coisa nova seja em
si mesma terrível. Tudo isto é o comportamento característico do velho rei.
Essa atitude pode se radicalizar em desconfiança
e conduzir a uma verdadeira tragédia, ou como acontece aqui, não se verificar
nada disso. Nosso conto reflete a possibilidade de uma renovação ocorrer sem
qualquer crise ou tragédia. E uma história mais moderada, sendo por isso não
muito interessante, mas contém todas as facetas clássicas de que precisamos.
Vamos continuar, passando a seguir ao ritual
das três penas. Este costume, comum na época, não difere muito daquele de jogar
uma moeda para o alto. Quando a consciência não pode decidir racionalmente,
recorre-se ao acaso e o que der é considerado como sendo a indicação. Que a
moeda caia desse lado, ou que o vento sopre desse modo, é tão somente um
aspecto que deve ser considerado como uma sugestão significativa. Isto é em si
mesmo importante, pois é o primeiro movimento em termos de abandonar a
determinação do ego, a racionalização consciente do próprio indivíduo. Pode-se
mesmo dizer que esse velho rei não é tão mau assim, pois embora saiba que
morrerá em breve, e que deverá ter um sucessor, ele deixa para os deuses
decidirem quem deverá suceder-lhe. Outra vez pode-se observar que isso também
está de acordo com todo o contexto da história que não é dramática e não está
formalizada sobre um conflito.
Continuando a ampliar o simbolismo, temos que
na mitologia as penas representam algo muito semelhante àquilo que tem penas —
o pássaro. De acordo com o princípio pars pro totto (a parte pelo todo),
que é uma forma mágica de pensar, a pena significa pássaro e, pássaros, em
geral, representam entidades psíquicas de caráter intuitivo e mental. Existem
representações medievais, por exemplo, onde a alma deixa o corpo do morto em
forma de um pássaro. Em certas vilas do Upper Wallis existe ainda hoje, no
quarto dos pais, uma janelinha chamada a janela-da-alma — que é aberta somente
quando alguém está morrendo, a fim de que sua alma possa sair. A ideia é que a
alma, um ser volátil, sai como um
pássaro que escapa de sua gaiola. Na Odisseia, Hermes reúne as almas dos
inimigos de Ulisses e elas conversavam como pássaros (a palavra grega é Thrizein)
e seguiam-lhe como o rumor de asas, como morcegos. Também no mundo
subterrâneo, para onde vai Enkidu, o amigo de Gilgamesh, os mortos sentam-se em
círculos e estão enfeitados com penas de pássaros. Então, pode-se dizer que os
pássaros representam uma entidade sem corpo, habitantes do ar, do domínio do
vento, associados sempre à respiração e, consequentemente, à psique humana.
Essa é a razão por que é tão difundida a ideia (e em particular entre os índios
americanos tanto do norte como do sul) de que colar penas em um objeto
significa que ele é psicologicamente real. Existe mesmo uma tribo sul-americana
que usa a palavra "pena" como sufixo para descrever tudo aquilo que
existe só no plano psicológico, e não na realidade externa. Pode-se falar de
uma "raposa-pena", um "arco-pena", ou uma
"árvore-pena"; a palavra "pena" indica que a raposa, o arco
e a árvore não estão contidos na realidade física, mas têm a ver com a
realidade psíquica. Quando os índios norte-americanos e certas tribos de
esquimós mandam mensagens convidando os outros para um festival religioso, os
mensageiros carregam bastões com penas e estas conferem ao portador a qualidade
de sacrossanto. Pelo fato de carregarem uma mensagem espiritual, tais
mensageiros não podem ser mortos. Colocando penas no próprio corpo o primitivo
marca a si mesmo como um ser psíquico e espiritual.
Por ser a pena muito leve, cada sopro do vento
a carrega. Ela é aquilo que é muito sensível, podendo ser chamada de corrente
espiritual, psíquica, imperceptível e invisível. O vento, na maioria dos
contextos religiosos e mitológicos, representa o poder espiritual, de onde vem
a palavra "inspiração". Assim, no Pentecostes, o Espírito Santo
milagrosamente encheu toda a casa como um vento que soprava. Os espíritos provocam
uma espécie de vento frio
quando se manifestam e em geral a aparição de fantasmas se acompanha de sopros
ou correntes de vento. A palavra spiritus tem a mesma raiz de spirare
(respirar). No Gênesis, o Ruach Jahweh (o Espírito de Deus) pousa
sobre as águas. Pode-se, então, concluir que um vento tão imperceptível, cuja
direção descobre-se somente ao assoprar uma pena, representaria uma tendência
psíquica dirigida e uma finalidade, dificilmente detectável, e quase
inconcebível, no fluxo da vida psíquica.
Isto é o que acontece quando alguém chega para
a análise e conta todos os problemas e o analista diz: "Bem, eu não sou
mais inteligente que você. Eu não vejo nada a partir disso, mas vejamos o que
os sonhos dizem". E, então, os sonhos serão examinados sob o ângulo de sua
finalidade e, aí, pode-se discernir para onde a corrente da vida se dirige nos
sonhos. De acordo com Jung os sonhos não obedecem somente ao princípio da
causalidade, mas apresentam também um aspecto de finalidade, através do qual
observa-se para onde a libido tende a ir. Nós "assopramos uma pena no
ar" e vemos que direção ela toma e, então, dizemos: "Vamos por esse
caminho, pois há uma ligeira tendência nesta direção".
Isso é o que o rei faz: ele se coloca
completamente flexível e consulta os poderes supranaturais. Uma pena vai para o
leste, outra para o oeste e a pena do Tolo cai bem em frente, no chão. De
acordo com algumas variações mais sutis, a pena cai em cima de uma pedra marrom
bem a seus pés, e o Tolo diz: "Isso significa que eu não vou para nenhum
lugar", e é assim que ele encontra o seu próprio caminho, aquele que está
perfeitamente de acordo com o seu caráter. Muitas vezes procuramos por todos os
cantos a solução de nossos problemas e não percebemos que ela está bem em
frente do nosso nariz. Não somos humildes o suficiente para olhar para baixo,
mas, ao contrário, mantemos o nariz bem levantado no ar. É por isso que Jung
sempre gostava de contar a bela história do rabino que sempre que interrogado por seus alunos
do porquê de no Antigo Testamento haver tantas aparições de Deus, enquanto que
hoje em dia essas coisas não mais acontecem, dizia: "Porque hoje em dia
ninguém é tão humilde para se curvar o suficiente". Mas o Tolo, por ser
simples e sem sofisticação, tem uma atitude simples e sem pretensões diante da
vida. Ele é naturalmente levado ao que está bem no chão e bem diante do seu
nariz — e isso é tudo. Nós sabemos desde o início da história que o problema
está na ausência do feminino e esse pode ser encontrado na terra e em nenhum
outro lugar. Isto pertence à lógica interna da nossa história.
5
"As três penas"
(continuação)
Embora tenhamos ampliado o tema das três penas,
não passamos ainda para o segundo passo que é o de expressar o sentido
psicológico essencial de maneira concisa. Penas representam pensamentos ou
fantasias, elas se colocam, pars pro totto, como pássaros, e o vento é
um símbolo bem conhecido da inspiração espiritual do inconsciente. Então este
tema significaria que alguém deixa a sua própria imaginação ou pensamentos vagarem,
seguindo as inspirações que vêm do inconsciente. Precisa-se seguir esse ritual,
se se está numa encruzilhada e não se sabe que direção tomar. Ao invés de
decidir a partir de considerações do ego, espere-se por uma sugestão do
inconsciente, deixando-o pronunciar-se acerca do problema. Pode-se compreender
este aspecto do conto como uma compensação para a situação coletiva dominante,
que parece ter perdido contato com o elemento irracional feminino; como
consequência ocorre habitualmente uma atitude muito racional, muito ordenada e
muito organizada. Junto com o feminino está o sentimento, o irracional e a
fantasia e aqui, ao invés de dizer aos filhos onde ir, o velho rei tem um gesto
que possibilita uma renovação, permitindo ao vento que decida. A pena do Tolo
cai bem à sua frente, no chão, onde ele descobre um alçapão com degraus que o
conduzem para as profundezas da Mãe Terra. No conto paralelo de Hesse, a
princesa-rã diz-lhe que ele deveria "sich versenken"—ou seja,
ir para as profundezas. O movimento de descida é sempre enfatizado.
Se há um alçapão com degraus conduzindo à
terra, isso não é a mesma coisa que se houvesse uma cavidade natural. Aqui, os
seres humanos deixaram suas marcas, talvez houvesse um prédio, ou ainda, um
porão de um castelo, cuja parte superior tivesse desaparecido há muito tempo
ou, mesmo, um esconderijo de uma civilização que não mais existe. Quando, em
sonhos, as figuras descem para dentro da terra ou da água, habitualmente são
interpretadas de maneira superficial, como um descensus ad inferos, como
uma descida ao mundo subterrâneo, nas profundezas do inconsciente. Mas deve-se
observar se é uma descida inconsciente de natureza virginal, ou se há traços de
civilização. Esse último caso indicaria que houve elementos que foram uma vez
conscientes, mas que mergulharam de volta ao inconsciente, como um castelo que
pode cair em ruína e restar o porão, deixando marcas da forma de vida anterior.
Interpretando psicologicamente, isso
significaria que o inconsciente não contém somente nossa natureza animal,
instintiva, mas contém também as tradições do passado e é, parcialmente,
formado por elas. É por isso que em análise os elementos das primeiras
civilizações frequentemente reaparecem. Um judeu pode pouco se importar com o
seu passado cultural, mas temas cabalísticos aparecem em seus sonhos. Uma vez,
analisando os sonhos de um hindu que havia sido educado nos Estados Unidos e
que conscientemente não tinha o menor interesse pelo seu passado cultural,
notou-se que seus sonhos eram cheios de divindades hindus, bastante vivas no
seu inconsciente. Há uma crença erroneamente difundida de que Jung tinha uma
tendência de forçar as pessoas
a uma volta ao seu passado cultural; por exemplo, que ele insistia em que os
judeus deveriam voltar aos seus simbolismos ortodoxos, ou que os hindus
deveriam rezar a Shiva. De forma alguma é esse o caso. Não há absolutamente um
"deveria", ou "precisaria"; é simplesmente uma questão de
se querer reconhecer ou não tais elementos no inconsciente de uma pessoa,
quando aparecem.
Como pode ter acontecido, em nossa história,
que o elemento feminino tenha sido mais consciente numa determinada época e
esteja agora submergido no inconsciente? As religiões pagãs originárias dos
germânicos e dos celtas tinham muitos cultos à Mãe Terra e a outras deusas da
natureza, mas a superestrutura unilateralmente patriarcal da civilização
cristã aos poucos foi reprimindo esse elemento. Por consequência, se existe o
problema de fazer ressurgir o elemento feminino e integrá-lo novamente, nós
deveríamos (ao menos na Europa), encontrar traços de uma civilização passada na
qual ele foi muito mais consciente. Na Idade Média, com o culto da Virgem Maria
e com os trovadores, o reconhecimento da anima era muito mais vivo do
que o foi no século XVI em
diante, época essa que é caracterizada por um aumento de repressão do elemento
feminino e da cultura do Eros, em nossa civilização. Nós não sabemos a data
desse conto de fada, mas a situação da abertura mostra uma condição onde o elemento
feminino não é reconhecido, embora, obviamente, ele o tenha sido numa época, o
que vem facilitar o seu retorno. O Tolo desce na terra, passo a passo, e não
cai de cabeça, nem mesmo se perde no escuro. No conto paralelo de Hesse, a
escada está encoberta por uma tampa redonda com um anel sobre ela, como os
anéis das tampas de bueiros das ruas. Há, aí, uma alusão não só ao símbolo da anima,
mas também ao do SELF.
Quando o Tolo desce, encontra uma porta, bate e
ouve um estranho versinho:
— Senhorita-rãzinha verde e pequenina encolha a
perna encolha a perna do cachorrinho encolha para frente e para trás. Vá
depressa ver quem está a bater.
Essa é uma espécie de rima infantil com uma
combinação de palavras pouco compreensível, como um sonho.
Quando a porta abre, o Tolo vê uma enorme rã
circundada de pequenas rãzinhas e quando ele diz que quer um lindo tapete, elas
tiram-no de uma caixa.
Nós devemos primeiro ampliar o poema, e, principalmente,
o símbolo da rã. Em muitas outras versões desse conto, ao invés de rã tem-se um
sapo, então temos que entender o sapo também. Em geral, na mitologia, o sapo é
tido como o elemento masculino, enquanto a rã é o feminino. Existe o
príncipe-sapo nas histórias europeias, africanas e malaias, onde aparece como
elemento masculino, enquanto praticamente em todas as civilizações a rã é
feminina. Na China acredita-se que uma rã de três pernas vive na lua e,
juntamente com uma lebre, produz o elixir da vida. De acordo com a tradição
taoísta ela foi fisgada no "poço da verdade" e, como uma espécie de
espírito protetor, trabalha com a lebre para produzir o elixir — que são
pílulas que curam e prolongam a vida. Na nossa civilização, a rã foi sempre
associada com a Mãe Terra, especialmente com sua função de auxiliar nos partos.
Ela tem sido considerada como uma representação do útero. Nos países católicos,
quando uma perna ou um braço ou qualquer outra parte do corpo é curada por um
santo, uma imagem de cera representando aquela parte do corpo é feita e doada à
igreja onde está o santo, como um ex voto — um sinal de que a graça foi
alcançada. Mas se uma mulher tem uma
doença do útero ou algum problema com o parto, ela não fará uma imagem de cera
do útero; sua oferta ao santo será uma rã de cera, pois a rã representa o útero[3].
Em muitas igrejas e capelas da Bavária, a estátua da Virgem é circundada por
rãs desse tipo. Aí a Virgem Maria tem a função da deusa grega, Artemis
Eileithyia, a mãe positiva que ajuda a mulher na gravidez e na hora do parto,
para que esse transcorra sem problemas. Esta analogia da rã e útero mostra como
a rã, nesta conexão, realmente representa o útero materno — a mãe — exatamente
o que está faltando na família real.
A senhora-rã sentada no centro pode ser vista
como a mãe de todas as rãzinhas que a circundam. O Tolo se casa com a
senhora-rã; ele escolhe uma do círculo, e ela se torna uma linda princesa, o
que mostra mais claramente que a senhora-rã é a figura de mãe e, que de seu
círculo o Tolo obtém a sua anima. Pois, como sabemos, a anima é
uma derivação da imagem da mãe na psicologia masculina. Aqui, a deusa Mãe
Terra ocupa o centro.
A palavra encolher é bem mais difícil de
compreender. Certamente na língua alemã, hutzel, a palavra original,
está sempre associada à idade, velhice, antiguidade, alguma coisa que permanece
por muito tempo. Pode-se imaginar o fato de que a deusa-mãe, tendo sido
excluída do domínio da consciência e negligenciada, está agora encolhida no
porão, como uma velha maçã.
Vejamos agora o significado para perna (Bein),
que sou inclinada a interpretar mais como um osso do que uma perna, por causa
do tão generalizado ritual dos amuletos de amor na Alemanha, na Suíça e na
Áustria. De acordo com esse ritual, dever-se-á pegar um sapo ou uma rã e
jogá-la viva num formigueiro. Em seguida, sair correndo para não ouvir os
gritos que a rã ou o sapo podem dar, pois esses são gritos de maldição. As
formigas vão comer o animal até sobrarem os ossos. Depois disso, dever-se-á
apanhar um dos ossos da perna e guardá-lo e, quando roçar as costas de uma
mulher com esse ossinho, sem ela perceber, ela se apaixonará perdidamente por
você. Rãs e sapos são muito usados em bruxarias ou magia, como amuletos ou em
poções afrodisíacas. No folclore, a natureza venenosa do sapo é também muito
enfatizada. De fato, um sapo quando tocado solta um líquido que, embora não
seja venenoso para o ser humano, pode causar um eczema ou uma leve inflamação
na pele. Por outro lado, animais menores podem ser mortos por esse líquido. No
folclore, esse fato é bastante exacerbado, o sapo é visto como um animal
feiticeiro, e sua pele e pernas pulverizadas são usadas como um dos
ingredientes básicos de praticamente todas as poções mágicas.
Resumindo, vemos que a rã (ou sapo) é uma deusa
da terra, que tem poderes sobre a vida e sobre a morte; ela pode tanto
envenenar como dar vida a alguém, e isso tem muito a ver com o princípio do
amor. A rã (ou sapo) contém, pois, todos os elementos que estão omissos no
contexto consciente de nossa história. Ela é verde, a cor da vegetação e da
natureza. A terceira linha do verso fala de Hutzelbeins's Hündchen, ou
seja, de um cachorrinho. A princípio parece estranha a associação com um
cachorrinho, o que fica mais claro se considerarmos a coleção de histórias
paralelas de Bolte-Polivka. Aí encontrar-se-ão muitas outras versões,
principalmente francesas, nas quais a princesa a ser redimida não é uma rã, mas
um cachorrinho. Obviamente, há uma mudança ou um entrelaçamento de temas, pois
muitas vezes ela é um cachorrinho branco, ou ainda um gato, um rato ou um
sapo. Se a princesa encantada ou não redimida fosse um cachorrinho, ela
estaria, obviamente, muito mais próxima da esfera humana do que se fosse um
sapo. Ela teria sido negligenciada, porém, retornando ao inconsciente, num
nível mais acima do que na condição de sapo ou rã, que é um nível mais baixo. Então, em algumas
versões, o Tolo encontra o elemento feminino ausente em uma forma não-humana,
como um animal de sangue frio e em outras versões, como um cachorro, ou seja,
na forma de um animal de sangue quente.
A posição da senhora-rã circundada por rãzinhas
mostra que não somente o símbolo do feminino, mas também o símbolo da
totalidade estão constelados.
Agora, vejamos o simbolismo do tapete. Na
civilização europeia, até seu contato com o Oriente, o tapete era desconhecido.
As tribos nômades árabes, ainda hoje famosas pela confecção de tapetes, dizem
que os tapetes que usam nas suas tendas representam a continuidade da terra, e
que são necessários para manter o sentimento da continuidade do solo sob seus
pés. Onde quer que se instalem, eles estendem um daqueles belos tapetes,
usualmente com um padrão sagrado e, sobre esses, eles armam suas tendas. E a
base sobre a qual eles ficam, como nós fazemos com a nossa terra. O tapete
protege-os também das influências malignas do solo estranho.
Todos os animais de sangue quente e superiores
na escala evolutiva, inclusive nós, têm uma forte ligação com seu próprio
território. A maioria dos animais têm o instinto de posse e de defesa do seu
território. Nós sabemos que os animais voltam para os seus próprios
territórios. Foram feitos muitos esforços para exilar ratos a milhas de
distância de suas casas, mas eles voltam, atravessando todas as dificuldades e
perigos e só não o fazem quando a chance de sobrevivência é nula. Então, ele
tenta ganhar um novo território, lutando e expulsando um outro rato do novo
local. Em seu próprio território, o animal tem uma espécie de conhecimento
íntimo e imediato de toda a situação, de tal forma que quando um inimigo
aparece ele pode facilmente se esconder; por outro lado, em lugar estranho, se
ele percebe a sombra de um falcão, ele tem que procurar um local para se
esconder, e por questão de segundos, pode ser apanhado. Heinrich Hediger,
professor de zoologia na Universidade de Zurique, aprofundou ainda mais essa
questão e tentou estabelecer o fato de que o instinto de propriedade dos
animais advém da ligação com a mãe. Ele afirma que o território original de
cada animal é o corpo de sua mãe; o animal-filhote cresce e vive dentro do
corpo da mãe, sendo o canguru o exemplo mais claro deste fato. Mais tarde esse
instinto é transferido do corpo da mãe para o território. Nós sabemos que
quando os animais são capturados e transportados, fazem um território-lar da
jaula transportadora e se essa for destruída e eles forem colocados
imediatamente numa nova casa, podem até morrer. A caixa ou a jaula que
transporta o animal-filhote precisa ser sempre colocada no local que será seu
novo lar, para que ele possa se aclimatar aos poucos e só então ela pode ser removida.
Novamente é o útero materno, um habitat com uma qualidade maternal, o
sentimento de que é vagarosamente transferido para um novo local.
Nós somos iguais. Se privarmos as pessoas
idosas de suas raízes ou mudá-las de casa elas frequentemente morrem. Muitas
pessoas permanecem ligadas ao seu território de uma maneira espantosa. Se se
observa os próprios sonhos durante a época de mudança, pode-se perceber os
problemas psicológicos que acontecem no seu próprio íntimo. A mulher, em
especial, sofre de uma maneira tremenda quando perde seu próprio território.
Essa é a razão por que Jung disse, certa vez, que tinha pena das mulheres
americanas, que constantemente mudam-se de um lugar para outro. Os homens
suportam isso muito melhor, pois eles têm uma tendência mais errante, mas para
uma mulher isso é realmente difícil. Para nós também o território significa a
mãe e, para algumas dessas tribos nômades norte-africanas, o tapete significa a
mesma coisa, pois eles necessitam da continuidade do solo maternal e não o
tendo externamente, vivendo
praticamente cada noite num lugar diferente, carregam o seu território
simbólico com eles.
Os povos islâmicos, bem como os judeus, não
fazem imagens do seu Deus, então os desenhos do tapete são, na sua maioria,
abstratos, tendo um significado simbólico. A maioria são motivos geométricos,
de gazela, de camelo, da árvore da vida, do paraíso, de uma lâmpada etc., que
têm sido transformados em desenhos puramente geométricos. Especialistas em
tapete são capazes de dizer se é uma gazela ou uma lâmpada que foi transformada
num padrão esquematizado. A maioria dos elementos dos tapetes orientais
refere-se a ideias religiosas: a lâmpada, por exemplo, significa a iluminação
vinda da sabedoria de Alá e a gazela representa a alma humana à procura de
Deus. Isso quer dizer que o tapete representa não só a Mãe Terra mas também a
base interior da vida desses povos. E muito frequente aparecerem tapetes desta
forma nos sonhos de pessoas de nossa época. Há também a frase de Fausto:
"So schaff ich am sausenden Webstuhl der
Zeit Und wirke der Gottheit lebendiges kleid"[4]
(É o que o espírito fala quando visita Fausto,
no início da I Parte).
Eu acho que Goethe obteve esse tema do mito da criação de Pherekydes. Tal
mito diz que a terra era uma espécie de linho enorme, com padrões tecidos e que
foi espalhado num carvalho do mundo.
A partir dessas ampliações, pode-se notar que o
linho ou tapete tecidos com desenhos são frequentemente usados para representar
os modelos ("padrões") simbólicos da vida e os "desenhos"
ou desígnios secretos do destino. O tapete figura, pois, como o esquema mais
amplo da nossa vida, que nós ignoramos enquanto vivemos. Nós, constantemente,
construímos nossa vida através de nossas
decisões de ego e é somente na velhice, quando olhamos para trás, que
compreendemos que tudo correspondia a uma espécie de plano. Algumas pessoas
mais introspectivas percebem isso um pouco antes do fim de sua vida e
intimamente estão convencidas de que as coisas têm um padrão, que elas são
levadas, e que há uma espécie de desígnio secreto de cada ação e decisão
efêmera do ser humano.
De fato, se nos voltamos para os sonhos e para
o inconsciente é porque queremos saber mais e mais sobre nosso modelo ou padrão
de vida, procurando errar menos, não cortando com nossas facas o nosso tapete
interior, de maneira a completar o nosso destino ao invés de a ele resistir.
Esta finalidade do modelo de vida que nos dá o sentimento do significado e do
sentido é muitas vezes simbolizado no tapete. Geralmente os tapetes, especialmente
os orientais, têm padrões e arabescos complicados, tais como aqueles percebidos
em estados oníricos, quando se sente que a vida está em altos e baixos e que há
mudanças à volta. Somente olhando de longe, com uma certa distância objetiva,
percebe-se que há um padrão de totalidade nisso tudo.
Consequentemente, não é fora de propósito que
juntamente com os princípios femininos esquecidos, não haja na corte do rei
bons tapetes e que, portanto, haja necessidade de um, pois eles precisam
reencontrar o modelo da vida.
Desta forma, a história nos diz que a sutileza
das invenções do inconsciente e os desenhos secretos tecidos no interior da
vida humana são infinitamente mais inteligentes, mais sutis e superiores que
aqueles que a consciência humana possa inventar. Não se pode deixar de ficar
maravilhado cada vez e sempre, diante da genialidade deste fato desconhecido e
misterioso que é o inventor dos sonhos na nossa psique. Ele seleciona elementos
das impressões diurnas, das leituras feitas no dia anterior, das lembranças da infância e faz uma
espécie de agradável pot-pourri. E somente quando se vem a interpretar o
significado do sonho que se pode perceber a sutileza e genialidade de cada
composição onírica. Toda noite nós temos esse tapeceiro trabalhando dentro de
nós, tecendo temas fantásticos, mas eles são tão sutis que, infelizmente para
nós, muitas vezes, depois de uma hora tentando interpretá-los, desistimos por
sermos incapazes de captar seu significado. Na verdade, nós somos muito inábeis
e limitados para seguir o gênio desse espírito desconhecido do inconsciente que
inventa os sonhos. Todavia, isso nos leva a compreender por que esse tapete é
tecido com uma destreza superior a que o ser humano possa alcançar.
Naturalmente, este primeiro teste não foi
aceito pelo rei nem pelos dois irmãos mais velhos e, então, um segundo teste é
proposto e eles têm que encontrar o anel mais bonito. Segue-se novamente o
ritual das penas, e os dois irmãos mais velhos trazem aros de carroça sem os
pregos, bem ordinários, provando-se muito preguiçosos para buscarem algo
melhor, enquanto o Tolo vai até a rã e obtém um lindo anel de ouro com
brilhantes e pedras preciosas.
O anel, como um objeto circular, é um dos
muitos símbolos do SELF. Mas nos contos de fada existem tantos símbolos
dele que temos que encontrar qual é a função específica do SELF neste
caso particular. Sabemos que o SELF, sendo o fator regulador central da
psique inconsciente, tem um número enorme de aspectos funcionais diferentes.
Ele preserva o equilíbrio ou, como vimos anteriormente com o símbolo de herói,
ele constrói uma atitude de ego em equilíbrio correto com o SELF. O
símbolo de uma bola representaria mais a sua capacidade de movimentar-se; para
a mente primitiva a bola era obviamente aquele objeto com propriedade espantosa
de se mover a partir da própria volição, de tal forma que os primitivos podiam
suprir o pequeno fato de que um empurrão
inicial é necessário, pois para eles a bola é considerada como tal quando se
move por sua própria vontade, sem necessidade de um empurrão; por seu próprio
impulso de vida ela se move e continua rolando através de todas as
vicissitudes, obstáculos e dificuldades do mundo material. Como Jung constatou,
ela representa aquela característica da psique inconsciente capaz de criar
movimento por si mesma. Este fator psíquico não é um sistema que reage somente
a partir de eventos externos, mas é capaz de agir por si mesmo, sem um impulso
causai delineável, sendo capaz de produzir algo novo. É a capacidade para o
movimento espontâneo, que em muitos sistemas filosóficos e religiosos é
atribuído somente à Divindade — aquele que inicia o movimento.
A psique tem algo disso em si mesma; podemos,
por exemplo, analisar alguém por um longo período de tempo e os sonhos parecem
sempre mostrar algum aspecto óbvio dos problemas da vida e a pessoa sente-se
muito bem assim, mas, de repente, ela tem um sonho completamente fora dos
padrões, alguma coisa completamente nova. Uma ideia criativa, nova, que não se
esperava, ou não se pode explicar, surge como se a psique tivesse decidido
trazer algo novo. E esses são os grandes eventos psicológicos, altamente
significativos, que facilitam a cura. O símbolo da esfera ou da bola (lembre-se
que as esferas ou bolas, ou ainda maçãs que rolam, frequentemente aparecem no
lugar das penas, nesse conto de fada) significam isso. Essa é a razão por que
em contos de fada o herói segue uma maçã ou uma esfera que rola em direção a
alguma meta misteriosa. Ele simplesmente segue a impulsão autônoma e espontânea
da sua própria psique em direção a algum objetivo secreto. Eu ampliei o símbolo
da bola para mostrar a sua diferença em relação ao anel e para mostrar que
dizer que é "o símbolo do SELF" não especifica o suficiente, e
que se precisa sempre adentrar a função particular de cada símbolo do SELF.
O anel tem, em geral, duas funções além da
propriedade de ser redondo, que o faz uma imagem do SELF. Ele simboliza
ou uma conexão ou um grilhão. O anel de casamento, por exemplo, pode significar
uma aliança com o parceiro, mas também uma algema — é por isso que algumas
pessoas tiram-no e o guardam no bolso quando viajam! Então, depende do seu
sentimento em relação a ele para que seja ou um grilhão ou uma união significativa.
Se um homem dá um anel a uma mulher, ele expressa,
saiba ou não, o desejo de se ligar a ela de uma maneira suprapessoal, de se
ligar a ela não somente como um caso de amor efêmero. Ele quer dizer:
"Isto é para sempre. É eterno". E significa uma conexão via SELF e
não somente via caprichos do ego. No mundo católico, o casamento é um
sacramento e a conexão não é somente aquela de dois egos decidindo ter o que
Jung expressou como "uma pequena sociedade financeira para criar
filhos". Se um casamento é mais do que isso, ele significa o reconhecimento
de alguma coisa suprapessoal; ou, em linguagem religiosa, entre o aspecto
divino que significa o "para sempre" num sentido muito mais profundo
do que um estado apaixonado, ou algum cálculo que a princípio fez com que as
pessoas ficassem juntas. O anel expressa uma ligação eterna através do SELF,
e sempre que um analista lida com problemas de casamento ou acompanha um
ser humano nos seus últimos passos em direção à guilhotina que é o dia do
casamento, ele pode observar que sonhos muito interessantes aparecem indicando
que o casamento deve ser realizado para salvar a individualização. Isso
permite ter uma atitude básica profundamente diferente em relação aos
problemas cotidianos que possam surgir. Sabe-se que, bem ou mal, esse é o
destino através do qual deve-se trabalhar para uma conscientização mais
elevada, e que não se pode simplesmente jogar fora o casamento diante dos
primeiros problemas surgidos.
Isso é expresso secretamente pelo anel de casamento que simboliza uma conexão
através do SELF.
Em geral, o anel significa qualquer espécie de
conexão e, consequentemente, ele representa aspectos diferentes em diferentes
ocasiões. Para muitos rituais religiosos as pessoas têm que tirar os seus
anéis antes de iniciá-los. Não era permitido a nenhum sacerdote romano ou grego
que realizasse qualquer cerimônia sacramentai com seus anéis. E isso
significava que ele iria ligar-se a Deus e, para isso, precisava deixar de lado
todas as outras conexões; ele precisava despojar-se de todas as outras
obrigações para poder se abrir somente à influência divina. Nesse sentido, a
imagem do anel significa (e no mais das vezes, de forma negativa, na mitologia)
— estar ligado a alguma coisa que não deveria estar, estar escravizado por
algum fator negativo tal como, por exemplo, o demônio. Em linguagem psicológica
isso simbolizaria um estado de fascinação e de escravidão diante de algum
complexo emocional inconsciente.
Ao ampliarmos o simbolismo do anel, podem-se
levantar outras imagens que não significam somente o anel de colocar no dedo.
Por exemplo, o círculo da bruxa, ou marchar em círculo ou carregar um aro. Em
geral, o anel nesse sentido mais amplo, tem um significado do que Jung descreve
como um temenos, o espaço sagrado protegido e delimitado, seja pela
circum-ambulação, seja pelo traçado de um círculo. Na Grécia, um temenos era
simplesmente um pequeno local sagrado num bosque, ou numa montanha no qual a
pessoa não pode entrar sem que tome certas precauções, um local onde as pessoas
não podem ser mortas. Se alguém que está sendo perseguido refugia-se num temenos,
ela não pode ser nem capturada, nem morta, enquanto estiver lá. Um temenos
é um asilo, e dentro dele a pessoa é um asulos (inviolável). Como um
lugar do culto divino, ele significa o território que pertence a Deus. Os círculos
das bruxas têm um significado semelhante; existe um pedaço de terra delimitado,
um local redondo reservado para um propósito arquetípico e numinoso. Tal local
tem uma função dupla: de proteção e de concentração para o que está dentro e
exclusão do que está fora. Este é o significado geral que é encontrado sob
diversas formas. A palavra temenos vem de temno — cortar. Indica
cortar o aspecto sem significado e profano da vida—uma parte cortada fora,
isolada para propósitos especiais. Mas eu não creio que isso seja
particularmente relevante para nossa história, na qual nós temos um anel para o
dedo.
O anel de nossa história é de ouro. O ouro,
como um metal dos mais preciosos, tem sido associado em nosso sistema
planetário com o sol e está geralmente relacionado à incorruptibilidade e
imortalidade. Ele é o mais duradouro dos metais e, nos tempos primitivos, era o
único metal conhecido que não se decompunha, nem ficava preto, nem verde e que
resistia a todos os elementos corrosivos. Os tesouros de ouro podiam ser
enterrados e desenterrados após muitos anos, que eles permaneciam os mesmos, o
que não acontece com o cobre, a prata ou o ferro. Então, ele é considerado um
elemento imortal e transcendental que supera a existência efêmera — ele é
eterno, divino e o mais precioso, e qualquer coisa que tenha sido feita de ouro
é vista como tendo uma qualidade eterna. É por isso que o anel de casamento é
feito de ouro, pois significa sua duração para sempre, e que não deve ser
corrompido por quaisquer influências negativas terrenas; as pedras preciosas
enfatizam ainda mais isso. As pedras preciosas significam, em geral, os valores
psicológicos.
O velho rei e os dois irmãos mais velhos na
corte do rei não aceitaram o fato de que o irmão mais novo tivesse ganho novamente
o teste. Então uma terceira prova é proposta. Agora o reino será daquele que
trouxer a mais bela esposa. O Tolo
desce até a rã e desta vez ela não o atende tão prontamente. Ela diz:
"Bem, bem, a mais bela esposa! Isso não é algo que está tão à mão, mas
ainda assim você a terá!" Parece, então, haver um pouco mais de
dificuldade desta vez, e ela lhe dá uma cenoura amarela com forma de uma
carruagem puxada por seis ratinhos. Ele toma uma das rãzinhas, coloca-a sentada
na carruagem, e tão logo ela se senta e eles começam a se mover, ela se torna
uma linda princesa. Então, para que ele obtivesse a mais linda mulher, ele não
poderia simplesmente tomá-la como ele fez com o tapete e com o anel, mas um
veículo especial foi necessário. A rãzinha se transforma enquanto se senta na
carruagem de cenoura e essa começa a se locomover, carregando-a para o palácio
do rei, onde somente então ela se transforma totalmente.
Em outras versões aparece uma linda moça desde
o início. Se você se lembra, na versão de Hesse, o Tolo encontra uma linda moça
fiando sob a terra e é somente quando sai do mundo subterrâneo e chega à
superfície, que ela se torna uma rã. Isso é muito estranho, pois algumas vezes
ela é uma rã, algumas vezes um sapo que assim se transforma quando sobe em direção
ao mundo humano, enquanto que em nossa história ela se torna um ser humano
quando já está em cima da terra. Naquela versão ocorre que embaixo da terra ela
é uma pessoa muito bonita e em cima, no mundo comum, ela é um sapo. E ela só se
transforma em ser humano quando o Tolo pula com ela numa lagoa. Esta é uma
variação relativamente frequente: sob a terra ela já é um ser humano, mas na
esfera superior aparece como um sapo, uma rã ou um cachorro. Consequentemente,
nós temos que adentrar neste simbolismo ainda um pouco mais. Nós já havíamos
concluído, a partir das marcas e da construção produzidas pelo homem, na terra,
que o culto da mãe, ou a relação com o princípio maternal, em outros tempos,
deve ter sido integrado no domínio da consciência humana e mais tarde regressado à terra. Nossa história
refere-se ao surgimento de algo que já fora uma vez percebido no domínio
humano. As diversas variações onde uma bela moça está sentada sob a terra,
esperando por sua redenção, confirmam essa hipótese.
A anima — que significa para um homem o
domínio da fantasia e o modo como ele se relaciona com o inconsciente — foi,
uma vez integrada no campo da consciência, tendo chegado a um nível humano, mas
agora, sob circunstâncias culturais desfavoráveis, foi abolida ou reprimida
no inconsciente. Isso explica por que esta linda princesa está no porão
esperando que alguém apareça e a retire de lá. E explica, também, por que ela é
vista, ou aparece como uma rã. Sobre a terra, na corte do rei, uma atitude
consciente faz com que a anima seja vista somente como uma rã. Isso
significa que no domínio do inconsciente prevalece uma atitude de
desconsideração e "de senões" quanto ao fenômeno de Eros; e, nestas
circunstâncias, a anima aparece aos olhos destes homens da corte do rei
como uma rã. Nós temos um exemplo moderno disto na teoria freudiana na qual o
fenômeno de Eros está reduzido tão-somente as funções biológicas do sexo: tudo
o que surge, ou vem à tona, é explicado com os "senões" da teoria
racional. Freud, reconhecendo muito pouco o elemento feminino, explica-o
sempre como sexo. Do ponto de vista freudiano, uma catedral gótica não poderia
ser considerada senão como uma compensação mórbida da sexualidade não vivida, e
isso é provocado pela forma fálica das torres! Sob tal perspectiva, a esfera da
anima não pode existir. Entretanto, não somente a atitude freudiana que
faz isso com a anima, pois um preconceito ou uma repressão do princípio
moral contra Eros, ou ainda, uma repressão do princípio de Eros por razões
políticas ou outras, são exemplos de atitudes que também levam à
desconsideração da anima. Todas essas atitudes, enfim, reduzem a anima
a um sapo ou um piolho, ou qualquer
outra forma, conforme o nível em que foi reprimida, e então, a anima do
homem se torna tão subdesenvolvida quanto a função de Eros de uma rã.
Uma rã, entretanto, de algum modo é contatável.
É possível domesticar rãs e pode-se mesmo treiná-las para comer em nossa mão;
elas têm uma certa capacidade de se relacionar. Homens com uma anima de
"rã" podem comportar-se da mesma maneira. E por isso que na versão
de Hesse é necessária uma operação suplementar para restaurar a natureza humana
da anima. Em nossa história isso acontece de outra maneira. A anima aparece
debaixo da terra como uma rã, necessitando de uma cenoura como veículo para
trazê-la à tona, e assim tornar-se ser humano.
Na versão russa, a "princesa-rã" tem
que ser apresentada pelo Tolo, como a sua noiva na corte do Czar. Ele imagina
que não será muito agradável aparecer com essa moça que pode sair pulando em
forma de rã. Ela, então, pede ao Tolo que confie nela dizendo que quando ele
ouvir um trovão, ele saberá que ela está colocando o seu vestido de noiva, e
quando ele enxergar raios, saberá que ela terminou de se vestir. Tremendo de
horror, ele espera pela tempestade para sua noiva-rã aparecer. Enfim, ela
chega, e é uma linda moça numa carruagem puxada por seis cavalos pretos. Ela se
transformara durante a tempestade.
Nessa versão russa, o Tolo tem somente que
confiar na "princesa-rã" e estar pronto para recebê-la, mesmo se ela
aparecer numa forma não-humana e ridícula. Em outras versões, aparecem
contaminações com o tema do "príncipe-sapo", ou seja, como o famoso
príncipe-sapo, ela pede para ser aceita, comer no mesmo prato, ser levada para a
cama, enfim, ser plenamente aceita na vida privada como se fosse um ser
humano. Embora colocando o herói em situações bastante bizarras, ela faz todas
as exigências e, só então, se transforma num ser humano.
Pode-se, portanto, concluir que ela é redimida
pela confiança, aceitação e amor incondicionais. Porém, na nossa história, a
sua aceitação não se dá dessa maneira, ou seja, a confiança não é pedida, e ela
é carregada por um veículo-cenoura. Nós temos que entender o simbolismo da
cenoura. No Handwõrterbuch des Deutschen Aberglaubens você encontrará a
cenoura como um símbolo fálico. Em Baden, conta-se que quando se semeiam
cenouras, diz-se: "Eu semeio cenouras, meninos e meninas, mas se alguém
roubar algumas delas, que Deus permita que tenhamos tantas que nem mesmo
possamos notar". Fica bastante claro que semear sementes de cenoura é como
semear meninos e meninas. Em alguns países, diz-se: "Agora eu semeio
cenouras para os meninos e meninas..." e continua da mesma forma. Existe
uma série de alusões interessantes, referentes ao fato de se semear cenouras,
sendo que em todas aparecem as cenouras como sendo alimento para pessoas muito
pobres. Portanto, quando se semeia cenoura deve-se sempre ser generoso e dizer:
"Eu semeio estas cenouras, não somente para mim, mas também para todos os
meus vizinhos", e então, a colheita será farta. Uma vez, entretanto, um
homem muito avarento disse: "Eu semeio cenouras para mim e para minha
esposa", e quando ele foi colher havia somente duas cenouras! As cenouras
contêm muita água, provavelmente essa é a razão de serem chamadas em dialeto de
"pissenlit" (xixi na cama).
Por tudo isso, pode-se perceber que a cenoura,
como a maioria dos vegetais, tem um significado erótico e especificamente
sexual. Pode-se dizer que o veículo que traz a anima é o sexo e a
fantasia sexual, que é no homem o modo frequente do mundo de Eros se revelar na
sua consciência. Primeiramente o mundo de Eros é trazido, como o foi, pelas
fantasias sexuais.
Os camundongos têm de alguma forma um significado
similar. Na Grécia, juntamente com o rato, eles pertencem
ao Deus-Sol, Apoio, na sua fase boreal ou invernal e simbolizam, então, o
aspecto sombrio do princípio solar. Em nosso país[5],
os ratos pertencem ao diabo, que é o chefe tanto dos camundongos como dos
ratos. Em Fausto, Goethe assim o expressa: "Der Herr der Ratten und der
Mãuse". No Handwõrterbuch des Deutschen Aberglaubens, pode-se ver
que os ratos são considerados como os "animais-espíritos". Na nossa
linguagem eles, em geral, representam a parte inconsciente do ser humano. Por
exemplo, como eu mencionei acima, um pássaro deixando um corpo significa a alma
deixando o corpo. Pode acontecer também que a alma deixe o corpo na forma de um
camundongo. Em certos poemas ou ritos diz-se que não se deve ferir ou insultar
camundongos porque pobres almas podem estar habitando neles. Na literatura
chinesa existe um poema de um dos mais famosos poetas chineses, que, para mim,
descreve de uma forma muito bonita o que um rato significa (camundongos têm
significado análogos):
Rato no meu cérebro
Eu não posso dormir; dia e noite
Tu me corroes e removes de mim a vida.
Eu estou me apagando, lentamente,
Oh! rato no meu cérebro,
Oh! minha consciência má,
Tu não me darás a paz, novamente?
Apesar de o rato e o camundongo não
significarem, necessariamente, a consciência má, o poeta parece querer falar
sobre um pensamento qualquer, inquietante, que continuamente rói e corrói de
maneira autônoma, minando a atitude de uma pessoa. Provavelmente você já
passou por isso; são noites sem sono quando se está preocupado com algo e,
então, cada coisinha que surge no pensamento
torna-se uma montanha de dificuldades — não se consegue dormir e as coisas
giram na cabeça como um moinho. Isso é análogo ao fato de ser perturbado por
ratos. Essas criaturas danadas roem e mascam durante toda a noite: você bate na
parede e, por um tempo, parece haver paz, mas, aí, elas começam outra vez. Se,
alguma vez, já lhe aconteceu isso, você pode facilmente reconhecer a analogia
do camundongo com os pensamentos obsessivos — um complexo que não lhe dá paz. O
camundongo representa, então, estes pensamentos noturnos ou uma fantasia que
lhe mordem quando você quer dormir. No mais das vezes, o camundongo também tem
uma qualidade erótica — é o que se pode observar nos desenhos em quadrinhos em
que a mulher está em cima de uma mesa com a saia levantada, e em baixo um
ratinho correndo. Os freudianos, geralmente, interpretam os camundongos como
fantasias sexuais. Isso é verdadeiro quando o pensamento que corrói é uma fantasia
sexual, mas, na realidade, isso pode significar qualquer espécie de obsessão
que constantemente perturba a consciência de um indivíduo. A cenoura,
significando sexo, e os ratinhos, significando as preocupações noturnas e as
fantasias autônomas, trazem a anima para a luz; eles parecem ser a
subestrutura da anima.
Quando o Tolo traz a rãzinha juntamente com o
veículo, ela se torna uma linda jovem. Isso significaria, praticamente, que se
um homem tivesse a paciência e a coragem de aceitar trazer à tona, à luz, suas
fantasias sexuais noturnas, para ver o que elas carregam, deixando-as
prosseguir, desenvolvendo-as e, posteriormente, escrevendo-as, possibilitando,
assim, uma ampliação maior, então, toda sua anima viria à tona. Se,
quando estiver rabiscando um desenho, disser: "O que estou fazendo
aqui?" e desenvolver, então, a fantasia sexual que expressou em seu
desenho, toda a problemática da anima emerge, e muito provavelmente, a anima
será mais humana e menos semelhante a um animal de sangue frio. O mundo
feminino reprimido emerge com ela, mas o primeiro fator desencadeante é,
frequentemente, uma fantasia sexual, ou uma obsessão como olhar as curvas das
mulheres quando se está num ônibus, assistir a stripteases etc. Se o
homem deixar tais pensamentos aparecerem com todo os conteúdos paralelos, ele
poderá descobrir sua anima ou redescobri-la, se por um tempo ele a
reprimiu. Mas, se o homem negligenciar essa relação, ela submergirá de vez e, a
anima descendo para o inconsciente, de pronto torna-se obsessiva, uma
fantasia importuna, ela se transforma, por assim dizer, num camundongo.
Também o terceiro teste não convenceu nem o rei
nem os dois irmãos mais velhos — e aqui tem-se um tema clássico — ou seja, os
contos de fada apresentam sempre três etapas e mais um final. Pode-se observar
que o número três tem um papel importante nos contos de fada, mas quando eu conto
normalmente dá quatro. Aqui, por exemplo, existem três testes, é
verdade: o tapete, o anel e a dama. Mas existe o teste final que é pular através
do anel. Se se observa mais apuradamente, então, pode-se ver que esse é o ritmo
característico dos contos de fada. Existem três ritmos semelhantes e, então,
uma ação final: por exemplo, uma moça perde seu amado e tem que encontrá-lo nos
confins do mundo. Ela vai primeiro ao sol, que lhe mostra o caminho da lua, que
lhe mostra o caminho dos ventos da noite e, então, ela encontra, como quarto
estágio, o seu amor. Em outros casos, o herói encontra três eremitas, ou três
gigantes, ou tem que vencer três obstáculos. São sempre três unidades claras —
1,2,3 — com uma certa repetição semelhante, porque a quarta unidade, sendo
distinta, é ignorada. A quarta unidade não é um outro número adicional, não é
uma outra coisa da mesma espécie das três primeiras, mas algo completamente
diferente. É a mesma coisa que se contar 1, 2, 3 — já! O um, o dois e
o três levam ao verdadeiro desfecho que é representado pelo quatro. O
quarto é, em geral, um estado estático; não há mais o movimento dinâmico dos
três elementos anteriores, mas alguma coisa se estabiliza.
No simbolismo numérico, o número três é
considerado masculino (todos os números ímpares o são). Na realidade ele é o
primeiro número masculino, pois o número um não é considerado como
número, pois o um é a coisa única e consequentemente, não é uma unidade
contável. Logo, o três é o primeiro número ímpar — masculino — e representa o
dinamismo do número um. Jung trata do simbolismo dos números no seu artigo:
"A Psychological Approach to the Dogma of the Trinity" (Psychology
and Religion — West and East — C. W. 11[6].)
Sintetizando sua proposta, podemos dizer que o três, em geral, relaciona-se com
o curso do movimento, e, portanto, com o tempo, pois não há tempo sem
movimento. Há, por exemplo, as três parcas que representam o passado, o
presente e o futuro. Os demônios do tempo são, na maioria, formados em tríades.
O três têm sempre o simbolismo do movimento, porque para o movimento
necessita-se de dois pólos entre os quais circula a energia, como a corrente
elétrica que passa pelos pólos positivo e negativo tendendo a equalizar a
tensão.
Frequentemente, encontra-se na mitologia uma
figura que é acompanhada por dois acólitos ou dois acompanhantes: Mitras e
dadophores (portadores de tochas); Cristo entre os dois ladrões etc. Tais formações
mitológicas de tríades significavam a unidade e suas polaridades, o centro
unificador entre os dois pólos opostos. Uma certa diferença tem de ser feita
entre três elementos da mesma espécie, e um grupo de três onde existe um
elemento central e dois opostos. Neste último caso, os dois opostos aparecem
como ilustração do que está contido na totalidade, ou seja, há um dualismo que
um terceiro elemento unifica. Basicamente, não nos afastamos nunca da linha
central, se mantivermos em mente que o terceiro elemento relaciona-se com
movimento e tempo, e em particular, com o movimento inexorável e irreversível
da vida. Essa é a razão por que nos contos de fada, a história — toda a
peripécia — aparece quase sempre dividida em três fases para depois aparecer a
quarta como uma solução feliz ou catastrófica. A quarta fase conduz a uma nova
dimensão, que não é comparável com as três etapas anteriores.
6
"As três penas"
(conclusão)
O Tolo traz para casa sua noiva que ao
sentar-se na carruagem-de-cenoura tornou-se uma linda princesa. Mas, novamente,
quando chega à corte do rei os dois irmãos não aceitam a solução e pedem que
haja uma quarta e última prova. Um aro é suspenso no teto, no centro de uma
sala e as três noivas devem pular através dele. As mulheres camponesas que os
dois irmãos trouxeram pularam, mas caíram quebrando braços e pernas. Mas a
noiva do mais jovem (provavelmente por conta de sua vida anterior, como rã ou
sapo), saltou através do aro com grande elegância. Então não pode haver mais
protestos e o filho mais jovem ganhou a coroa e com sabedoria reinou por longo
tempo.
Nós encontramos no decorrer de nossa história o
anel como símbolo de união. Em seu aspecto positivo, ele significa uma
obrigação escolhida conscientemente através de algum poder divino, isto é,
através do SELF; em seu aspecto negativo, ele significa sentir-se
aprisionado ou estar fascinado; aqui, tem uma conotação negativa — por exemplo,
sentir-se aprisionado pelas próprias emoções ou complexos, sentir-se preso num
"círculo vicioso".
Tem-se, então, um outro tema — saltar através
do aro. Isso exige uma dupla ação, a saber, pular alto e ao mesmo tempo ser
capaz de atingir o centro do aro e passar por ele. No folclore menciona-se que,
nos antigos festivais da primavera dos países germânicos, um jovem montado num
cavalo tinha que atingir o centro de um aro com uma lança. Era o ritual de
fertilidade da primavera e ao mesmo tempo uma prova acrobática para os jovens
cavaleiros. Novamente, aparece o tema de atingir o centro de um aro numa
competição. Isso nos leva ao significado de atingir ou atravessar o centro de
um aro. Ainda que pareça bastante remota, pode-se fazer uma vinculação com a
arte de atirar com arco e flecha do zen-budismo, onde a ideia é atingir o centro,
não da forma exteriorizada como os ocidentais fazem, por habilidade física e
concentração mental, mas através de uma profunda meditação, através da qual o
arqueiro se coloca no seu próprio centro (o que poderíamos chamar de SELF) e,
consequentemente, podendo atingir o alvo externo. Então, nas execuções mais
difíceis, mais elevadas, os arqueiros zen-budistas podem acertar o alvo sem
grande esforço, estando com seus olhos tapados. Toda a prática envolve uma
ajuda técnica para encontrar o próprio caminho do centro interior sem ser
dispersado por pensamentos, ambições < impulsos do ego.
Por sua vez, pular através de um arco
incandescente não é uma arte comumente praticada — tanto quanto eu saiba — a
não ser nos circos, onde esse é um dos números mais populares. Tigres ou outros
animais selvagens são treinados para pularem através de círculos de fogo.
Quanto mais feroz for o animal, mais interessante e excitante é vê-lo pular
através do aro, tema esse que retomarei mais tarde.
Atravessar o centro do aro com precisão não é
um símbolo tão difícil de interpretar. Poderíamos dizer que, embora
exteriorizado por uma ação simbólica, esse é o segredo de se encontrar o centro
interior da personalidade e é análogo à arte de arco-e-flecha zen-budista. Mas
existe uma segunda dificuldade: a pessoa que salta tem que deixar a terra — a
realidade — e atingir o centro num movimento, atravessando o arco. Então a anima
na figura de princesa, quando atravessa o centro do anel fica suspensa no
ar e é enfatizado que ela consegue fazer isso de maneira boa e correta. As
camponesas, entretanto, eram tão pesadas e tão desajeitadas que não podiam
fazer isso sem cair e quebrar as pernas, visto que a força da gravidade da
terra era muito forte para elas.
Isso revela um ponto muito sutil no que se
refere à realização da anima. As pessoas que não sabem nada sobre
psicologia tendem simplesmente a projetar a anima sobre uma mulher real
e experienciam-na exteriormente. Mas através da introspecção psicológica, podem
perceber que a atração exercida sobre elas, pela anima, não é somente um
fator externo, mas é alguma coisa que carregam dentro de si mesmas, uma imagem
interior de um ser feminino verdadeiro ideal e guia da alma. Em seguida, então,
o ego levanta um novo problema, ou seja, o pseudoconflito entre o domínio
interior e o exterior. A pessoa diz: "Eu não sei se esta é a minha anima
interior, ou se é uma mulher real exterior. Eu deverei seguir a fascinação
da anima procurando-a no mundo externo, ou deverei introjetá-la e
entendê-la puramente como simbólica?" Quando alguém-diz isso, existe
subjacente uma atitude cética do tipo: "Isso não é nada mais que uma coisa
puramente simbólica." Com essa forte descrença na realidade da psique as
pessoas ainda acrescentam: "Eu devo percebê-la somente como uma realidade
interior? Ou devo procurá-la na realidade externa também?" Então, pode-se
ver que a consciência, com seus extravios e vieses, entra num conflito falso
entre a realização "exterior-concreta" e a
"interior-simbólica", dividindo, artificialmente, o fenômeno da anima
em dois.
Isso ocorre somente quando um homem não consegue
"levantar sua anima da terra", ou seja, se ela não for capaz
de pular como a princesa-rã, manifestando-se como uma camponesa idiota. Entrar
nesse conflito indica falta de realização afetiva; este é um conflito típico,
que emerge não pela função do sentimento, mas pela função do pensamento, que
cria uma contradição artificial entre interior e exterior e entre o sujeito e o
objeto. Na realidade, a resposta a esse dilema é que a anima não está
nem dentro, nem fora, pois ela está relacionada à realidade da psique em si
mesma e esta não é nem interior nem exterior: ela está em ambos e não está em
nenhuma. A anima precisa ser percebida como uma realidade em si mesma.
Se ela, a anima, gosta de vir do exterior, deve ser aceita aí. Se ela
gosta de vir de dentro, é aí que deve ser aceita. O erro está em fazer qualquer
diferença artificial e desajeitada entre esses dois domínios: a anima é
um fenômeno único, o fenômeno da vida. Ela representa o fluxo da vida na
psique masculina e ele deve seguir os seus caminhos tortuosos que se movem, de
maneira bem específica, entre as duas margens, a do "interior" e a do
"exterior".
Um outro aspecto desse pseudoconflito pode ser
observado quando a pessoa pergunta: "Eu preciso pensar na minha anima como
uma devoção espiritual? Por exemplo, rezar à Virgem Maria ao invés de olhar
para as pernas de uma mulher bonita desejando-a sexualmente?" Não existe
tal diferença! Tanto o mais alto como o mais baixo são uma e única coisa e,
como todos os conteúdos do inconsciente, abarcam todo um repertório do que
podemos chamar de manifestações instintivas e espirituais. Basicamente, na
forma arquetípica, esses dois fatores formam uma unidade e é a consciência que
os separa em duas partes. Se um homem, de fato, aprendeu a estar em contato com
sua anima, então, todos esses problemas caem por terra, pois a anima se
manifestará imediatamente, e ele estará sempre concentrado na realidade que
ela propõe, afastando tais pseudos conflitos que emergem em torno dela.
Colocando isso de maneira simples e com um vocabulário claro, ele tentará
constantemente seguir seus sentimentos, o seu aspecto do Eros, sem considerar
quaisquer outros elementos e, desta forma, caminhar através de mundos
aparentemente incompatíveis como sobre um fio de navalha. Saber se manter
dentro do que o Dr. Jung chamava de realidade da psique é comparável a
uma prova acrobática, pois nossa consciência tem a tendência natural de se
deixar levar por interpretações unilaterais, formulando sempre um programa ou
uma receita ao invés de, simplesmente, manter-se entre os opostos com o fluxo
da vida. Existe, em tudo isso, somente uma lealdade ou constância: a lealdade à
realidade interior da anima. Isso é expresso belamente no salto através
do aro: a anima suspensa no ar, nem muito alta nem muito baixa,
atravessa o obstáculo, passando exatamente no centro.
Um outro conflito típico da anima suscitado
pelo inconsciente para forçar o homem a diferenciar o seu Eros, é a situação
triangular no casamento. Quando ele entra nesse conflito, ele se coloca, muito
provavelmente, diante da seguinte questão: "Se eu terminar com a outra
mulher, eu estarei traindo meus próprios sentimentos, simplesmente pela
pressão social convencional. Se eu fugir da minha mulher e dos meus filhos para
ficar com outra mulher onde está a projeção da minha anima, então eu
estarei me comportando de maneira irresponsável e seguindo uma paixão que
entrará em colapso muito em breve, como todo mundo sabe. Eu não posso fazer
ambas as coisas e também não posso prolongar para sempre essa situação
impossível". Se a anima quer se impor à consciência de um homem,
ela frequentemente faz aparecer tal conflito. O animus de sua esposa
dirá: "Você precisa tomar uma decisão"! E o animus da outra
mulher dirá: "Eu não posso ficar pendente desse jeito". As duas, os
acontecimentos e tudo o mais empurram-no para decisões erradas.
Aqui, novamente, a lealdade à realidade da
psique é o único caminho que levará a uma possível solução e, geralmente, a anima
tende a manobrar o homem colocando-o numa situação que parece ser sem
saída. Jung disse que estar numa situação que não tem saída, ou estar num
conflito onde não há solução é o começo clássico do processo de individuação. A
situação parece ser sem solução: o inconsciente quer um conflito sem
esperanças a fim de colocar a consciência do ego contra a parede, de tal forma
que o indivíduo perceba que tudo o que ele fizer estará errado, e qualquer
caminho que tomar será falso. Isso significa quebrar a superioridade do ego,
que sempre age com a ilusão de que tem a responsabilidade da decisão.
Evidentemente, se um homem disser: "Está bem, então eu vou deixar tudo,
andar sozinho e não tomar nenhuma decisão, mas simplesmente me deixar enlevar e
prender por tudo", é igualmente falso, pois dessa forma também nada
acontece. Mas se ele for ético o suficiente para sofrer até o âmago de sua
personalidade, então, por haver a insolubilidade da situação consciente, o SELF
se manifesta. Em linguagem religiosa poder-se-ia dizer que a situação sem
saída é a que força o homem a contar com Deus. Em linguagem psicológica a
situação sem saída, que a anima arranja com grande habilidade na vida do
homem, significa levá-lo a uma condição na qual será capaz de experienciar o SELF.
Nessa condição ele estará aberto interiormente à interferência do tertium
quod non datur (o terceiro que não é dado, isto é, o desconhecido). Desta
forma, como Jung disse, a anima é o guia para a realização do SELF, mas
algumas vezes de uma maneira muito dolorosa. Ao pensarmos na anima como
um guia da alma, podemos pensar em Beatriz conduzindo Dante ao Paraíso; mas não
devemos esquecer que ele experienciou isso somente depois de ter passado pelo
Inferno. Normalmente, a anima não conduz o homem diretamente ao Paraíso;
ela o coloca primeiro num caldeirão quente onde ele é muito bem cozido por um
certo tempo.
Na nossa história a anima visa atingir o
centro, enquanto as mulheres camponesas representam uma atitude desajeitada,
muito imbuída de ideias da realidade concreta, uma atitude muito primitiva e
indiferenciada do ponto de vista afetivo, que faz com que não aguentem a prova
e se estatelem no chão.
Eu recomendaria para esse assunto a leitura da
conferência que Jung fez em 1939, intitulada "The Symbolic Life"
(Guild of Pastoral Psychology Pamphlets -nº 80). Jung tenta, então, explicar o
que significa a vida simbólica. Ele diz que nós nos encontramos, atualmente,
presos pelo racionalismo, e que nossa maneira de encarar a vida é racional e implica
ser "razoável", o que exclui todo simbolismo. Ele continua mostrando
quão rica é a vida para as pessoas que ainda estão impregnadas do simbolismo
vivo nas suas formas religiosas. Como o próprio Jung descobriu, é possível
encontrar o caminho de um simbolismo vivo, porém, não o simbolismo perdido, mas
a função ainda viva que o produz. Nós chegamos a isso através do inconsciente e
de nossos sonhos. Se se leva em consideração os próprios sonhos por um longo
período de tempo, o inconsciente do homem moderno pode reconstruir a vida
simbólica. Mas isso pressupõe que não se interprete os sonhos de maneira
puramente intelectual e que realmente se os incorpore à própria vida. Então,
deverá haver uma restauração da vida simbólica, não mais segundo o quadro de uma
forma ritualista coletiva, porém, mais colorida e moldada segundo a própria
individualidade. Isso significa não mais viver meramente segundo as decisões
"razoáveis" do ego, mas viver com o ego embebido no fluxo da vida da
psique que se expressa em forma simbólica e exige uma ação simbólica.
É necessário observar o que a própria psique
propõe como uma forma de vida simbólica, segundo a qual deve-se viver. Sobre
isso, Jung insiste em algo que ele fez na sua própria vida: quando um símbolo
onírico emerge numa forma dominante, deve-se ter o trabalho de reproduzi-lo,
seja em desenhos, ainda que não se saiba desenhar, seja em escultura, ainda que
não se saiba esculpir, ou de qualquer outra maneira, contanto que se estabeleça
uma relação concreta com ele. Não se deve sair de uma sessão analítica
esquecendo-se tudo sobre ela, deixando o ego organizar o resto do dia; ao
contrário, deve-se permanecer com os símbolos dos próprios sonhos durante todo
o dia, tentando descobrir por onde eles querem entrar na realidade da vida.
Isto é o que Jung quer dizer quando ele fala em viver a vida simbólica.
A anima é o guia, é a própria essência
desta realização da vida simbólica. Um homem que não compreendeu nem
assimilou o problema da anima é incapaz de viver este ritmo interior;
seu ego consciente e seu intelecto são incapazes de comunicar-lhe algo sobre
isso.
Naquela variação germânica que eu mencionei
anteriormente, o sapo não se transforma numa linda mulher que aparece na corte;
ao contrário, ela aparece sob a forma de sapo no mundo superior, enquanto no
mundo inferior ela é uma moça bonita. Também aí, existe um teste final; o sapo
pede: Umschiling Mich (abrace-me) e versenk dich (mergulhe). Versenken
implica uma ação de afundar alguma coisa na água ou na terra. E também
significa — especialmente quando é sich versenken — entrar em profunda
meditação, sendo uma expressão usada na linguagem mística. Naturalmente, isso
significa afundar na nossa água, terra, ou abismo interior, mergulhar nas
nossas profundezas interiores.
A anima-sapo faz esse apelo misterioso, e o
Tolo o compreende. Ele abraça a rã, e pula com ela dentro de uma lagoa e neste
momento ela se transforma numa linda mulher e eles saem dali juntos como um
casal humano.
Se analisarmos isso de maneira simples, podemos
dizer que o Tolo deve segui-la até o seu reino, aceitando o seu modo de vida.
Ela é uma rã que pula constantemente na água, que nada e que gosta disso. Se
ele a abraça e pula com ela na água, então ele aceita a sua vida de sapo.
Pode-se, pois, dizer que o noivo segue a noiva
até a casa desta, ao invés de ocorrer o contrário. Sendo aceita tal como é, ela
pode se transformar num ser humano. A aceitação da rã e de sua vida implica
saltar para o mundo interior, mergulhando na realidade interna e aqui voltamos
ao mesmo ponto e à mesma conclusão: a intenção da anima é converter a
consciência racional a fim de que essa aceite a vida simbólica, mergulhando
nessa vida sem quaisquer senões, críticas ou objeções racionais, mas com um
gesto de generosidade, dizendo: "Seja o que Deus quiser, mergulharei e a
vislumbrarei"! Para isso é necessário coragem e ingenuidade — significa o
sacrifício da atitude racional e intelectual, o que é difícil para as mulheres,
mas muito mais difícil para os homens, particularmente os ocidentais, pois
isso vai contra suas tendências conscientes.
A anima, tornando-se humana,
ocasiona o encontro dos opostos: ele vai ao encontro dela e ela vai ao encontro
dele. Pode-se observar sempre que, quando existe uma forte tensão entre a
situação consciente e o nível muito baixo dos conteúdos inconscientes, qualquer
gesto de um dos lados ajuda a melhorar o outro também. Por exemplo, ocorre,
muitas vezes, o homem sonhar com sua anima como uma prostituta, ou algo
equivalente. Ele dirá que ela é muito abjeta, e que ele não pode descer a tal
ponto, pois isso é contra seus princípios éticos. Ocorre, porém, que se ele
conseguir superar essa rigidez preconceituosa e tiver generosidade para com a
parte mais baixa de sua personalidade, com seus impulsos, haverá, de repente,
uma transformação e a anima se elevará a um nível mais alto. Não se pode
dizer entretanto essas coisas às pessoas, pois isso diminuiria o mérito do
sacrifício que tem que ser feito com coragem e absolutamente sem cálculo. Se a
pessoa tiver tal coragem e confiança, então o milagre pode acontecer, ou seja,
essa parte da personalidade chamada de "mais baixa" (que somente
chegou a esse estado pela atitude de desdém do consciente), ascende a um nível
humano.
Uma terceira versão de nossa história, que apresenta
um prolongamento e uma forma diferente de redenção da dama-rã, lança uma nova
luz sobre o que quero exprimir por vida simbólica. E a versão russa chamada A
filha-rã do czar (Die Mãrchen der Welt Literatur, vol. V, Russian Fairy Tales).
A filha-rã do czar
"Era uma vez um czar e sua esposa. Eles
tinham três filhos que eram como falcões, homens jovens e belos. Um dia, o czar
chamou os três filhos e disse: 'Meus filhos, meus falcões, chegou o tempo de
vocês encontrarem suas esposas'. Disse-lhes, então, que deveriam tomar seus
arcos de prata e suas flechas de cobre, devendo atirá-las em direção a terras
estrangeiras, e onde a flecha caísse, lá então eles encontrariam suas respectivas
noivas. Assim eles fizeram. Duas flechas caíram na corte do czar, e aqueles
filhos encontraram moças muito boas. Mas a flecha de Ivan Czarevitsch caiu
perto de um alagado, e indo até lá, ele encontrou uma rã com sua flecha. Ele
disse: 'Devolva a minha flecha', ao que ela respondeu: 'Eu só devolverei com
uma condição: se você casar comigo'. Ivan Czarevitsch voltou para a corte e,
chorando, contou o que lhe havia acontecido. O czar disse: 'Bem, esse azar é
seu, e você não pode escapar dessa. Você deverá casar-se com a rã'. O irmão
mais velho casou-se com a filha do czar, o segundo irmão casou-se com a filha
do príncipe, e Ivan casou-se com uma rã do pântano."
Nessa história muitas coisas são diferentes: há
a influência feminina na corte, portanto, o rei não é de todo hostil ao
casamento com a rã; não há tensão muito grande entre o masculino e o feminino,
ou entre a aceitação e não aceitação de se levar uma vida de sapo.
"Mas, apesar disso, Ivan ficou,
naturalmente, muito triste e infeliz. Então, um dia, o czar quis verificar a
capacidade de suas noivas de tecer uma bela toalha. Ivan vai para casa e chora
copiosamente, mas a rã, pulando atrás dele, diz-lhe que não se preocupasse e
pede que ele se deite e durma que tudo dará certo. Tão logo ele adormece, ela
tira sua pele de rã e vai até o quintal, assobia chamando as suas três
empregadas que logo aparecem e tecem as toalhas. Quando Ivan acorda, ele recebe
as toalhas de sua esposa, que retornara à forma de rã. Ivan nunca havia visto
toalhas tão lindas. Ele as levou para a corte e todos ficaram profundamente
impressionados.
Uma outra prova é proposta pelo rei. Ele pede o
melhor bolo. Novamente Ivan adormece e durante a noite o bolo é feito. O czar,
então, convida seus filhos e esposas para um jantar. Ivan novamente vai para
casa chorando, mas sua noiva-rã diz que ele não deve se preocupar e ir em
frente. Quando começar a chover ele deverá saber que sua esposa está se
lavando. Quando relampejar, ele deverá saber que sua esposa está se vestindo
para ir à corte. Quando trovoar, ela estará a caminho. O jantar na corte começa
e as esposas dos irmãos mais velhos estão lindamente vestidas. Ivan está muito
nervoso; então, uma terrível tempestade começa. Todos caçoam dele e
perguntam-lhe do paradeiro de sua esposa. Quando a chuva começa, ele diz:
'Agora ela está se lavando', e quando relampeja, diz: 'Agora ela está pondo seu
vestido real'. Ele mesmo não acredita nisso e está desesperado, mas quando
ouvem-se trovões, diz: 'Agora ela está vindo' e, nesse momento, uma linda
carruagem com seis cavalos se aproxima e dela desce a mais linda moça, tão
bonita que todos silenciaram e ficaram tímidos.
Na mesa do jantar, as duas cunhadas notaram que
ocorria algo muito estranho, pois a linda moça colocava parte da comida na
manga do seu vestido. Mesmo achando estranho, as duas pensaram ser isso nova
moda de boas maneiras e fizeram o mesmo. Quando o jantar terminou, começou o
baile. A moça linda dançou com Ivan e ela dançava tão suavemente e tão bem que
mal parecia tocar o chão. Enquanto ela dançava, balançou seu braço direito, de
onde caiu um pedaço de comida que imediatamente se transformou num jardim com
um pilar no centro; em volta deste um gato ficava rondando e em seguida subia
no pilar e começava a cantar canções folclóricas.
Quando ele descia, ele contava contos de fada.
A moça continuou dançando e aí balançou seu braço esquerdo e, então, apareceu
um lindo parque com um riozinho onde nadavam lindos cisnes. Todos estavam muito
admirados e boquiabertos com os milagres, como se fossem crianças. As outras
cunhadas começaram a dançar, mas quando elas balançaram os seus braços direitos
um pedaço de osso caiu e bateu na testa do czar, e quando elas estavam
balançando o braço esquerdo, saiu um jato de água que foi parar nos olhos do
czar.
Ivan olhava sua esposa com muito espanto e se
perguntava como de uma rã verde poderia surgir uma linda moça. Ele vai então
até o quarto onde ela dormia, e vê ali a pele de rã. Ele apanha a pele e
atira-a ao fogo. Então, ele volta à corte e continuam na festa até amanhecer,
quando Ivan volta para casa com sua esposa.
Quando chegou, a sua esposa-rã procura a sua
pele e não a encontrando chama Ivan e pergunta-lhe se ele a viu, ao que ele
responde: 'Eu a queimei'. 'Oh! Ivan', ela diz, 'por que você foi fazer isso? Se
você não a tivesse tocado, eu seria sua para sempre. Mas, agora, nós precisamos
nos separar — talvez para sempre'. Ela chora e chora e aos prantos lhe diz:
'Adeus! Procure-me no décimo terceiro Reino do czar, no décimo terceiro reino
estrangeiro, onde habita Baba-Yaga, a grande bruxa e seus ossos'. Ela bate palmas
e se transforma num cuco e sai voando pela janela.
Ivan sofre amargamente e, então, ele apanha seu
bornal de prata, enche-o com pão, pendura alguns cantis no ombro e parte em sua
longa busca. Ele caminha por anos. Um dia ele encontra um velho que lhe dá uma
bola de barbante e lhe diz que deve segui-lo até a Baba-Yaga. Em seguida, ele
salva a vida de um urso, um peixe e um pássaro. Ele encontra toda espécie de
dificuldades, mas o peixe, o falcão e o urso ajudam-no, até que, finalmente,
ele chega aos confins do mundo, ao décimo terceiro Reino. Aí ele encontra uma
ilha onde existe um bosque e um castelo de vidro. Ele vai até o palácio e abre
a porta de ferro, mas não há ninguém; então, ele abre a porta de prata, mas
também não encontra ninguém nessa sala; então, ele abre uma terceira porta, que
é de ouro e encontra sua esposa sentada fiando linho. Ela está tão arrasada
pela dor e tão maltratada pelos trabalhos, que é desolador vê-la. Mas quando
ela vê Ivan, enlaça-se ao seu pescoço e diz: 'Oh! meu querido, como eu tenho te
esperado! Tu chegaste na hora exata. Se chegasses um pouco mais tarde, talvez
não me visses nunca mais!' Embora Ivan não soubesse se ele estava neste mundo
ou em outro, eles se abraçaram e se beijaram. Então ela se transforma novamente
num cuco, põe Ivan debaixo de suas asas e voa de volta para casa. Quando eles
chegam, ela se transforma definitivamente na forma humana e conta a Ivan: 'Foi
meu pai que me castigou e que me deu como serva a um dragão para que eu o
servisse por três anos, mas agora eu já cumpri a pena'. Então eles viveram
felizes para sempre e oravam a Deus que sempre os ajudou muito."
Nessa versão russa, ao invés de pular através
do anel, a figura da anima realiza mágicas fantásticas com a comida que
ela coloca nas mangas. Primeiro aparece o jardim com o gato que entoa canções e
conta contos de fada. Depois, cria o paraíso com sua mão esquerda. Deste modo,
pode-se perceber ainda mais claramente que a anima cria a vida
simbólica, pois ela transforma o alimento comum, que é para o corpo, em
alimento espiritual, através da arte criativa e dos contos mitológicos; ela
restaura o paraíso, uma espécie de mundo arquetípico da fantasia. O gato
representa o espírito da natureza que é o criador de canções folclóricas e
contos de fada. Fica clara, também, a relação da anima com a capacidade
do homem para o trabalho artístico e para o mundo imaginário. Um homem que
reprime sua anima geralmente reprime sua imaginação criativa. Dançar e
criar uma espécie de fata morgana, um mundo de fantasia, é um tema
paralelo ao de saltar através do anel. É, ainda, um outro aspecto da criação da
vida simbólica, que se vive ao seguir os próprios sonhos, as fantasias diurnas
e os impulsos que vêm do inconsciente, pois a fantasia dá à vida um brilho e
uma coloração que o olhar muito racional destrói. Fantasia não é um capricho do
ego, algo sem sentido, mas emerge realmente das profundezas; constela
situações simbólicas que dá à vida uma significação e uma realização das mais
profundas. Aqui, novamente, as duas outras mulheres compreendem as coisas de
uma maneira muito concreta. Da mesma forma que aconteceu com as camponesas que
não conseguiram pular através do círculo, as duas esposas dos irmãos mais
velhos, nessa história, colocam alimentos nas mangas por motivos errados, como,
por exemplo, por ambição e, como as outras, se dão mal.
Na história russa, porém, algo mais acontece:
Ivan comete um erro muito grande ao queimar a pele de sua esposa-rã. Este é um
tema mais difundido, encontrado em contextos completamente diferentes e em
muitos outros contos de fada. A anima aparece primeiramente em pele de
animal, seja como peixe, seja como sereia, ou, mais frequentemente, como um
passarinho, e só depois é que ela se transforma num ser humano. Geralmente o
seu amado guarda sua antiga pele de animal ou de pássaro numa gaveta. A mulher
tem filhos e tudo parece estar muito bem, quando acontece de o marido insultar
sua mulher, chamando-a de gansa ou sereia, ou de qualquer outra coisa que ela
havia sido anteriormente. Ela, então, apanha sua antiga vestimenta e
desaparece. E agora ele tem que procurá-la por um bom tempo até encontrá-la ou,
em algumas versões, ela desaparece e ele morre. Em tais histórias, pode-se até
achar que seria preferível o homem ter queimado a antiga pele da esposa, pois
assim ela não fugiria. Mas aqui é exatamente o oposto que ocorre. Ivan queima a
pele, o que poderia parecer bom, mas não é. Em outros contos de fada, como, por
exemplo, no conto de Grimm chamado "Hans, o ouriço", a pele do animal
é queimada. Um príncipe foi castigado e tornou-se um ouriço e os servos da
noiva queimam a pele do ouriço libertando o príncipe, que dá graças por ter
sido redimido. Então, queimar a pele do animal não é necessariamente
destrutivo, dependendo do contexto.
Em nossa história não se compreende por que o
fato de queimar a pele da esposa faz com que ela desapareça voando. Pode-se
imaginar que seu pai a castigou e que ela deve permanecer dentro da noite e da
obscuridade pagando os seus pecados e, pelo fato de ter sido interrompido o
processo, a sua punição se torna ainda mais severa. Mas isso são conjecturas; a
história não dá maiores explicações. Os contos de fada onde a pele queimada de
animal constitui-se em algo construtivo, fazem parte dos inúmeros rituais de
transformação pelo fogo. Na maioria dos textos mitológicos, o fogo tem a
qualidade de purificação e de transformação, sendo por isso usado em muitos
rituais religiosos. Na alquimia o fogo é usado (como aparece literalmente em
alguns textos) para "queimar tudo o que é supérfluo", de tal modo que
somente o núcleo indestrutível permaneça. Consequentemente, os alquimistas
começam por calcinar a maior parte das substâncias que utilizam, destruindo o
que precisa ser destruído. Aquilo que resistiu ao fogo, o resíduo sólido que
sobrevive à calcinação, tem o símbolo de imortalidade. O fogo é, portanto, o
grande agente de transformação. Em certos textos gnósticos, o fogo é também
chamado de "O Grande Juiz", porque ele julga, por assim dizer,
determinando o que tem valor para sobreviver e o que deve ser destruído. Tudo
isso se aplica, também, ao significado psicológico, pois por fogo entende-se o
calor das reações emocionais e dos afetos. Sem o fogo da emoção nenhum
desenvolvimento ocorre e nenhuma conscientização maior pode ser alcançada. E
por isso que Deus diz: "Oxalá fosses frio ou quente, mas porque és morno e
não és quente nem frio, estou para te vomitar da minha boca" (Apocalipse
3,16). Se na análise terapêutica aparecer alguém que é indiferente a ela, se for
desapaixonado, se não sofrer, se não houver o fogo do desespero, nem ira, nem
conflito, nem fúria, nem aborrecimento, nem nada dessa espécie, pode-se estar
certo de que quase nada será constelado e que será uma análise chocha,
insípida, um eterno "bla-bla-bla". Então o fogo, ainda que seja uma
forma destrutiva de fogo (conflito, ódio, ciúmes, ou qualquer outra emoção),
acelera o processo de amadurecimento, sendo realmente um "juiz" que
esclarece as coisas. As pessoas que têm fogo entram em problemas, mas ao menos
elas tentam alguma coisa, mesmo que caiam em desespero. Quanto mais fogo, mais
existem os perigos dos efeitos destrutivos, de explosões emocionais e de toda
espécie de erros e diabruras, mas, ao mesmo tempo, é isso que mantém o processo
caminhando. Se o fogo for extinto, está tudo perdido. Esta é a razão pela qual
os alquimistas sempre dizem que não se deve deixar apagar o fogo. O trabalhador
preguiçoso, que deixa seu fogo apagar, está perdido: esse é o tipo de pessoa
que somente esbarra no tratamento analítico, mas nunca entra de cabeça, ou
melhor, de coração aberto. Ele não tem fogo e por isso nada acontece. Então, o
fogo é o grande juiz que determina a diferença entre o corruptível e o
incorruptível, entre o que é e o que não é relevante. Consequentemente, todos
os fogos mágicos e de rituais religiosos têm a qualidade sagrada de
transformação. Em vários mitos, entretanto, o fogo é o grande destruidor.
Algumas vezes, o mito revela a destruição do mundo pelo fogo. Os sonhos nos
quais cidades inteiras são queimadas, ou que a nossa própria casa é destruída
pelo fogo indicam, em regra geral, um afeto já existente que se tornou
completamente fora de controle. Sempre que uma emoção ultrapassa o controle do
indivíduo, aparece o fogo destrutivo como tema. Alguma vez você já se sentiu
em tal estado de espírito que fez coisas horríveis, irremediáveis? Alguma vez
você escreveu uma carta e daria tudo para não tê-la escrito? Ou disse alguma
coisa que era melhor não ter dito e mordido a língua? Talvez você tenha agido
destrutivamente através de emoções — tenha feito coisas para as quais não há
mais conserto, arruinado algo para sempre, destruído um relacionamento humano.
E, só para citar de passagem, isso lembra as declarações de guerra,
frequentemente feitas sob estados emocionais fortes e, então, a destruição com
certeza leva a uma conflagração mundial. Os estados emocionais destrutivos
são muito contagiosos, como se pode depreender dos fenômenos de massa. Quando
alguém solta as rédeas liberando as emoções destrutivas, geralmente tem o poder
de arrastar consigo outras pessoas, gerando aqueles horríveis movimentos de
massa onde pessoas são linchadas, assassinadas — tudo devido ao fogo de emoção
que foi repentinamente liberado. Constata-se, literalmente, o caráter
destrutivo e atemorizante da emoção fogosa. Esse fenômeno encontra-se, também,
nas constelações psicóticas, em que, sob uma camada de rigidez, emoções
terríveis são acumuladas. Essas explosões emocionais são frequentemente
representadas como uma enorme conflagração na qual tudo é destruído; nesses
casos o indivíduo entra em tal estado de excitação, tornando-se tão perigoso
para si como para os outros, que é necessário interná-lo.
Queimar a pele da rã refere-se ao efeito
destrutivo do fogo; mas precisa-se também levar em consideração o fato de que a
rã é um animal de sangue frio e aquático — sendo a água o oposto do fogo — e,
portanto, ela é uma criatura que vive na umidade. Provavelmente, esta é uma
outra razão por que o fogo, aqui, é tão destrutivo, retirando a qualidade
aquosa da princesa. O que significa, em termos psicológicos, se um homem aplica
o fogo destrutivo à sua anima úmida e criativa? Vimos que a anima, neste
contexto como na vida prática, representa o dom da imaginação poética, a
possibilidade de criar formas simbólicas de vida. Se, então, o herói ateia
fogo na pele úmida, isso significaria submeter a fantasia criativa a um espírito
muito analítico, muito impulsivo e apaixonado. Muitas pessoas destroem o
segredo de sua vida interior por quererem agarrar as próprias fantasias e
trazê-las à luz da consciência de uma maneira muito voraz e, ainda, por
quererem interpretá-las intensa e imediatamente.
A criatividade muitas vezes necessita da
proteção da sombra, de ser ignorada. Isso é bastante evidente na tendência
natural de muitos artistas e escritores que não mostram suas obras antes de
vê-las terminadas. Até então, eles não podem suportar sequer as reações positivas
dos outros diante da obra. As reações apaixonadas das pessoas diante de uma
pintura, exclamando por exemplo: "Oh! é maravilhoso!", ainda que haja
boas intenções, podem destruir inteiramente o claro-escuro, a onda da fantasia
mística e escondida que o artista necessita. Somente quando ele tem seu produto
acabado ele pode expô-lo à luz da consciência e às reações emocionais das
pessoas. Então se você notar uma fantasia inconsciente aparecendo dentro de si,
você precisa ser sábio o suficiente para não interpretá-la imediatamente. Não
diga que já sabe o que é, forçando-a para o consciente; deixe somente que ela
viva lá dentro, na penumbra e carregue-a consigo observando para onde ela vai,
ou para o que ela o dirige. Mais tarde, então, você poderá olhar para trás e
ver o que você esteve fazendo durante todo o tempo em que cultivava essa
fantasia estranha, que o levou a algum objetivo inesperado. Se você estiver
fazendo um desenho e tiver a ideia de juntar mais isso ou aquilo, não pense:
"Eu li o que isso significa!" Se isso ocorrer, empurre então seu
pensamento para longe e se dê mais e mais ao desenho, de tal modo que toda a
rede de símbolos possa se expandir em muitas e todas as ramificações antes que
você busque o seu sentido essencial.
Quando as pessoas têm imaginação ativa na análise,
em geral somente as ouço, e só quando existir um pedido especial do analisado,
ou quando as fantasias estiverem muito transbordantes que necessitem uma
parada, um corte, ou ainda, se a pessoa já encontrou um certo caminho, só então
é que eu posso analisá-las como um sonho. E muito melhor não analisá-las
enquanto estiverem acontecendo, pois o autor das fantasias toma consciência do
que elas podem significar e o que podem ser, e isso inibe o trabalho da
fantasia.
Se uma fantasia inconsciente, ou outro conteúdo
for especialmente fogoso, bastante carregado de afeto, certamente será
empurrado para o consciente, não importa qual seja. Mas certas fantasias são
mais do tipo "rã", isto é, elas aparecem durante o dia como uma
espécie de pensamento brincalhão; num momento desavisado você acende um cigarro
e uma estranha fantasia aparece, mas sem muita carga energética. Se você se
joga nesses pensamentos de uma maneira muito feroz, você os destrói. Tais como
as pequenas criaturas — os anõezinhos, por exemplo — eles não podem ser
observados, precisa-se deixar que eles fiquem por perto, mas sem olhar para
eles, para que possam executar seu trabalho secreto, sem perturbações. A nossa
mulher rã pertence a essa última categoria de criaturas, pois o seu espírito
canta canções folclóricas (como vemos a partir do gato) e conta contos de fada,
e esse é um espírito artístico, brincalhão, que pode ser destruído no momento
em que for tomado a sério, com muita paixão. Provavelmente essa é a grande
razão por que Ivan foi queimar a pele da rã e, por causa disso, teve que
retardar a redenção definitiva de sua anima.
O fato de ele ter que encontrá-la no fim do
mundo é algo que ocorre em muitos contos de fada. Um homem encontra a noiva
predestinada e por algum erro a perde; então ele tem que partir para uma longa
viagem até os confins do mundo, através dos sete céus, até encontrá-la
novamente. Esse ritmo duplo corresponde ao que se pode chamar tecnicamente de
"primeiro desabrochar", que ocorre no início da análise. Isso
acontece, frequentemente, com pessoas que estão presas a uma atitude consciente
neurótica por longo tempo e que, consequentemente, perderam o contato com o
fluxo da vida e a esperança de sair do estado neurótico. Quando essas pessoas
chegam para a análise e recebem o calor humano do terapeuta ou, ainda, através
de sonhos têm um contato repentino com possibilidades irracionais ou se um
sonho prospectivo mostra que apesar da vida sem esperanças, do consciente,
existe uma possibilidade positiva irracional, então, depois das primeiras
horas de análise, elas chegam a um despertar e desabrochar impressionantes: os
sintomas desaparecem e a pessoa experiência uma cura miraculosa. Não caia
nessa, porém! Somente em 5% dos casos isso dura. Em todos os outros casos,
depois de um tempo, toda a problemática aflui novamente e os sintomas voltam.
Tal fenômeno ocorre, normalmente, quando a atitude neurótica do consciente
está muito distante das tendências da vida inconsciente, tornando impossível a
união dos dois lados. Primeiro tenta-se uni-los e as coisas parecem estar bem,
mas de repente os opostos se endurecem e se afastam novamente e tudo volta a
ser como antes. A cura ocorre de fato somente quando existe um estado constante
de relacionamento entre o consciente e o inconsciente, e não quando surge uma
centelha de luz através de um relacionamento. Portanto, só acontece a cura
quando existe uma condição de relacionamento contínuo dos dois lados. A
constituição disso leva tempo, muito tempo e é somente então que se pode dizer
que a cura está solidificada e salva de alarmes falsos. O primeiro desabrochar,
entretanto, é um evento arquetípico.
Eu sempre me perguntei por que o inconsciente
ou a natureza — ou que nome for — faz essa brincadeira tão cruel com as
pessoas, ou seja, primeiro cura e, depois, faz com que elas caiam novamente.
Por que alguém esfrega uma salsicha no nariz do cachorro, e depois a esconde?
Isso não é bom. Mas eu já observei que existe um significado profundo e,
provavelmente, existe uma intenção final nisso tudo. Se algumas pessoas nunca
tiveram sequer uma pequena experiência de como seriam as coisas se tudo fosse
bem, elas nunca poderiam aguentar o peso da análise e as misérias do processo
analítico. É somente uma lembrança daquela centelha do paraíso que faz com que
as pessoas continuem na jornada sombria. Esta é a razão, provavelmente, por que
algumas vezes no começo da análise o inconsciente oferece a possibilidade
maravilhosa da cura, da forma boa de viver e da felicidade para, em seguida,
levar isso tudo embora. É como se ele dissesse: "Isso é o que você vai
obter mais tarde, mas antes você tem que perceber e compreender isso e mais
aquilo e muito mais até chegar lá".
Eu descobri isso quando as pessoas que tinham
experienciado o primeiro desabrochar disseram: "Bem, apesar de tudo, eu
não apresentei os sintomas em tais e tais ocasiões; então é possível, não
é"? Sim, deve ser possível. E isso lhes dá coragem para se manterem em
situações desesperadoras. Em nosso conto de fada, se Ivan não tivesse visto sua
noiva em seu estado bonito e não tivesse tido aquele relacionamento com ela, certamente
não teria caminhado até o décimo terceiro reino do czar, até o fim do mundo.
Nesta história há um outro tema interessante. A
dama-rã foi castigada pelo seu pai por algum pecado que ela cometeu. Não se
sabe ao certo qual era o pecado. Provavelmente era um pecado somente aos olhos
do pai — porém, certo é que ela deve ter feito algo que o aborreceu e, por
isso, foi castigada a viver na forma de rã, ficando à mercê de um dragão e Ivan
tem que resgatá-la dali.
Se considerarmos isso tudo em termos psicológicos,
é bastante complicado, pois, na história das "Três penas", assumimos
que a anima estava na forma inferior de rã porque a consciência não
tinha nenhum relacionamento com o lado feminino. Na situação consciente existia
somente um rei e seus três filhos e nenhum princípio feminino, de tal forma que
todo o mundo feminino estava reprimido sob uma forma degenerada. Nesse outro
caso, o equilíbrio da história é completamente diferente, pois no início o czar
tem uma esposa, existe o princípio da mãe; o princípio feminino não está, pois,
ausente no contexto consciente e, portanto, não se pode simplesmente falar em
repressão da anima. Há, ainda, uma outra dificuldade: a dama-rã
aborreceu seu pai, sobre o qual pouco sabemos e ele castigou-a e trouxe-a para
uma condição inferior. O esquema seguinte esclarece melhor, como se vê:
Czar_____________Czarina
O O O Três filhos
_________________________limiar da consciência
Processo normal de integração
Princesa-rã Descida ao inconsciente
Seu pai por um castigo
No topo existem cinco pessoas ao invés de
quatro, então é um contexto completamente diferente. Pode-se dizer que é uma
família naturalmente equilibrada; existem mais elementos masculinos do que
femininos, mas nada do que é vital está faltando. Abaixo do limiar da
consciência existe a dama-rã e seu pai.
O pai, que é mencionado somente no final da
história, por sua vez castiga sua filha, o que a faz sair da consciência e
adentrar as profundezas do inconsciente. Então, o pai barra seu caminho,
impedindo-a de ascender e ser integrada, o que seria o processo normal da vida.
O porquê de o pai da dama-rã ser tão mal humorado não se sabe, mas certamente
parece que ele não quer que ela case no nível consciente. A única coisa que se
pode afirmar, de fato, é que ele, por alguma razão, é contrário à filha
tornar-se consciente. Ele talvez queira, como a maioria dos pais, guardá-la
para si, mas isso não fica claro e não é bom especular sobre tais problemas
familiares no inconsciente. (No inconsciente os problemas familiares são bem
terríveis.) Traduzindo numa linguagem psicológica, significa que os complexos
arquetípicos lutam um contra o outro no nível inconsciente. Em minha experiência
tenho verificado que tais conflitos são, em geral, efeitos ricocheteados de
alguma perturbação entre os dois mundos da esfera consciente e da esfera
inconsciente. Eu acredito, pois poderia dar outros exemplos onde isso aparece
com maior clareza, que nesse caso o pai (de baixo) tem uma tensão conflitual
com o czar (de cima). Os dois pais lutam e, ao invés de atacar o czar, o pai
leva sua filha embora.
Quem é este pai da princesa-rã? Quem é o pai da
animal Em muitas histórias europeias, onde existe uma influência cristã,
o pai da anima é chamado de diabo. Em países europeus com menor
influência cristã, o pai da anima é caracterizado como uma velha imagem
de Deus. Assim, em países germânicos, o pai da anima aparece como um
velho com os traços próprios de Wotan; nas lendas judaicas ele é um velho Deus
do deserto ou um demônio; nos contos de fada islâmicos, eles são grandes
djinns, que são os demônios pagãos do período pré-islâmico. Então, poder-se-ia
dizer que, em geral, o pai da princesa-rã representa a imagem mais antiga de
Deus que, estando em contraste com a nova imagem dominante da divindade, é por
essa reprimida. A nova imagem dominante da consciência, normalmente, se
superpõe a uma velha imagem da mesma espécie, acontecendo frequentemente uma
tensão secreta entre esses dois fatores, fazendo com que a anima dirija
dessa maneira.
Isto é importante também na vida prática? Por
exemplo, muitas vezes pode-se observar que a anima de um homem é um ser
"antiquado". Ela, normalmente, está ligada ao passado histórico e
isto explica por que os homens que na vida consciente são inovadores,
corajosos, inclinados a mudanças e reformas, tornam-se sentimentalmente
conservadores tão logo caiam no humor da anima. Eles podem ser
surpreendentemente sentimentais; por exemplo, um homem de negócios, rude, que
não pensa senão em passar por cima dos outros, pode ser encontrado cantando
canções infantis junto à árvore de natal, como se fosse uma pessoa que não
fizesse mal a uma mosca. É que sua anima permaneceu no mundo infantil
tradicional. Pode-se observar a mesma coisa na área de Eros. A crença de alguns
homens nas instituições que professam é um exemplo do efeito da anima. Estas
crenças e convicções fazem desses homens prisioneiros do passado. As mulheres,
que ainda são vistas como mais conservadoras na sua vida consciente (a tal
ponto que, segundo alguns, ainda estariam tomando sopa de palitinho, se o
homem não tivesse inventado a colher), frequentemente têm um animus com
o olho no futuro e um talento especial para mudanças efetivas; daí, poder se
observar o interesse das mulheres nos movimentos de vanguarda. Na Grécia
antiga, por exemplo, o culto de Dionísio foi em grande parte promovido pelas
mulheres, que também foram as responsáveis por sua continuidade. Também nas
primeiras comunidades cristãs a força maior foi dada pelo entusiasmo das
mulheres e não dos homens.
Quando a imagem do velho Deus confina a anima
ao passado, então, uma luta se desencadeia entre a nova atitude consciente
e a antiga forma de onde vem a anima. Pode-se ver, pois, que existe uma
semente de verdade na afirmação dos Irmãos Grimm, qual seja: contar histórias
de fada pertence ao passado pagão. De acordo com a história russa, a
princesa-rã é a contadora de histórias e, de certa forma, não pode ascender ao
domínio do czar reinante. O verdadeiro conflito é, então, entre as duas figuras
de pai. Isso é uma coisa encontrada muitas vezes quando deparamos um conflito
no inconsciente: ou seja, um conteúdo inconsciente ataca um outro conteúdo
também inconsciente, e este, ao invés de rebater o ataque, atinge um terceiro
conteúdo, provocando um efeito indireto. Esse processo é claramente ilustrado
pelo conto da mulher que repreende a cozinheira, que grita com a copeira, que
chuta o cachorro, que morde o gato... e assim por diante. O conflito é passado
adiante de tal forma que, quando chega ao conhecimento, está completamente
diferente, não se podendo saber, de fato, onde se encontra o verdadeiro
conflito. Precisa-se, pois, sempre levar em consideração os paralelos e todo o
contexto para poder encontrar as relações mais essenciais. E essas, por sua
vez, nos levam a profundezas impenetráveis, tais como as que aqui aparecem
quanto à questão da imagem divina.
SEGUNDA PARTE
7
Sombra, anima e animus nos contos de fada
Embora praticamente todos os contos de fada
girem em torno do símbolo do SELF ou sejam regulados por ele,
encontramos sempre, em muitas histórias, temas que nos lembram os conceitos de
Jung sobre a sombra, o animus e a anima. Neste capítulo, eu darei
a interpretação de cada um desses temas. Porém, precisa estar bem claro
novamente que estamos lidando com a infraestrutura objetiva e impessoal da
psique humana, e não com os seus aspectos individuais e pessoais.
O afloramento da sombra
A figura da sombra em si mesma pertence em
parte ao inconsciente pessoal e em parte ao coletivo. Nos contos de fada,
somente o aspecto coletivo pode ocorrer. A sombra do herói, por exemplo, pode
aparecer como uma figura mais primitiva e mais instintiva do que o próprio
herói, porém, não necessariamente inferior em termos morais. Em alguns contos
de fada o herói (ou a heroína) não tem a companhia da sombra, mas possui em si
mesmo traços positivos e negativos e, algumas vezes, traços demoníacos.
Precisa-se, então, questionar em que circunstâncias a imagem do herói
se divide em uma figura de luz e quando em uma de sombra. Uma divisão dessa
espécie aparece normalmente em sonhos nos quais uma figura desconhecida surge
pela primeira vez, e a divisão indica que o conteúdo que se aproxima só é
aceito parcialmente pela consciência. Tornar-se mais consciente de algo pressupõe
uma escolha da parte do ego. Em geral, somente um aspecto do conteúdo
inconsciente pode ser aprendido de cada vez, passando os outros aspectos a ser
rejeitados. A sombra do herói é, pois, aquele aspecto do arquétipo que foi
rejeitado pela consciência coletiva.
Ainda que a figura da sombra seja arquetípica
nos contos de fada, a partir de seus comportamentos característicos pode-se
aprender muito sobre a assimilação da sombra no campo pessoal. Para ilustrar
isso, escolhi a história norueguesa "O príncipe Ring". (Esta versão
foi extraída de Die Neuislándichen Volksmãrchen de Adeline Ritterhaus,
Halle, A.S. 1902, p. 31, onde aparece sob o título "Snati-Snati".)
Este conto, embora sendo coletivo, oferece
analogias quanto a problemas individuais de integração da sombra e mostra tanto
os aspectos típicos como gerais desse processo.
O príncipe Ring
"Ring (anel), o filho de um rei, estava um
dia caçando quando foi surpreendido pela visão de uma corça muito veloz, que
tinha um anel de ouro encaixado nos seus chifres. Ele passou a persegui-la
avidamente e acabou por se separar de seus companheiros, entrando num nevoeiro
muito espesso, onde perdeu a corça de vista. Aos poucos, foi conseguindo achar
uma saída do bosque, e quando se viu fora, estava numa praia, onde encontrou
uma mulher curvada sobre um barril. Aproximando-se, ele viu um anel de ouro no
fundo do tal barril e a mulher, adivinhando-lhe os desejos, sugeriu que ele
entrasse e pegasse o anel. Assim que entrou, ele percebeu que o barril tinha um
fundo falso, e quanto mais ele afundava, mais fundo parecia estar o anel.
Quando estava assim mergulhado, a mulher fechou o barril bem fechado e rolou-o
até as ondas do mar, que o levaram embora.
Depois de um longo tempo, o barril foi jogado
numa praia e Ring conseguiu safar-se dele. Percebeu estar numa ilha estranha.
Antes mesmo que tivesse tempo de investigá-la, um enorme gigante apanhou-o, e,
cuidadosamente, levou-o para sua esposa para que Ring lhe fizesse companhia.
Esses velhos gigantes eram muito amáveis e faziam todas as vontades de Ring. O
gigante, por vontade própria, mostrou ao jovem seus tesouros e tudo o que
possuía, mas proibiu-o terminantemente de entrar na cozinha. O príncipe Ring
sentiu uma curiosidade enorme de saber o que existia na cozinha e, por duas
vezes, esteve no limiar da porta, mas estancou e não entrou. Na terceira vez,
porém, teve coragem e deu uma olhadinha, e um cachorro que havia lá começou a
suplicar, repetindo várias vezes: 'Escolha-me, príncipe Ring! Escolha-me'!
Depois de algum tempo, os gigantes, sabendo
estarem no fim da vida, chamaram Ring e disseram-lhe que estavam velhos e,
portanto, prestes a morrer, e que gostariam de oferecer-lhe alguma coisa, e que
escolhesse, então, o que quisesse. Ring lembrou-se das súplicas do cachorro e
pediu aos gigantes que lhe dessem o que estava na cozinha. O gigante não ficou
muito contente com o pedido, mas aceitou-o. O cachorro — que se chamava
Snati-Snati—pulava e lambia tantas vezes o príncipe e era tanta a sua alegria,
que Ring ficou um pouco amedrontado.
Ring e o cachorro partiram para um reino muito
distante dali. Snati-Snati falou, então, ao príncipe, que pedisse ao rei
daquele local um pequeno quarto no palácio para que se abrigassem durante o
inverno. O rei os recebeu muito bem, mas Rauder, seu ministro, franziu o testa
enciumado quando os viu. Rauder sugeriu ao rei que fizesse uma competição entre
ele e o novo hóspede. Eles teriam que cortar árvores numa floresta, e quem
abrisse a maior clareira seria o vencedor. Snati-Snati disse a Ring que pedisse
dois machados — e ambos foram para a tarefa. A tardezinha, Snati-Snati tinha
cortado muito mais árvores que o ministro e este perdeu a prova. Então, Rauder
sugeriu ao rei que pedisse a Ring que matasse dois búfalos selvagens trazendo
as peles e os chifres dos animais. Lá foi Ring para a caçada e durante a luta
Snati-Snati ajudou-o a matar os búfalos, cujas peles e chifres foram levados ao
rei. Ring foi muito elogiado por sua façanha, mas uma outra prova foi proposta.
Ring deveria recobrar os três objetos mais preciosos
do reino que estavam em posse de uma família de gigantes, que morava numa
montanha nas redondezas. Estes objetos eram um conjunto de roupas de ouro, um
tabuleiro de xadrez também de ouro e uma barra de ouro puro. Se ele conseguisse
isso, poderia casar com a filha do rei.
Carregando um grande saco de sal, o homem e o
cachorro escalaram a montanha — Ring segurando o rabo de Snati-Snati — e
conseguiram chegar ao topo. Lá, encontraram uma caverna e, olhando através da
abertura, viram quatro gigantes adormecidos em volta de uma fogueira, sobre a
qual fervia, num enorme caldeirão, uma sopa de cereais. Vagarosamente, jogaram
o sal na sopa e esperaram. Quando os gigantes acordaram estavam famintos, mas
logo depois das primeiras colheradas, a mãe gigante, que era horrível de se
olhar, estava morta de sede e pediu à filha que fosse buscar água. A filha
concordou com uma condição: que levasse consigo a barra de ouro. Depois de uma
cena furiosa, a mãe cedeu. Como a filha não voltasse mais, a mãe ordenou, então,
ao filho, que fosse buscar água. Esse concordou, porém com a condição de levar
consigo as roupas de ouro. A mãe, novamente, ficou furiosa, mas consentiu. O
filho foi afogado da mesma maneira que a sua irmã por Snati-Snati e Ring. Em
seguida, o filho não voltando, foi o marido com o tabuleiro de ouro. A única
diferença é que o marido assumiu primeiramente a forma de fantasma antes de ser
finalmente abatido pelos dois heróis. O príncipe e Snati-Snati olharam, então,
a terrível bruxa gigante; o cachorro lembrou que nenhuma arma poderia penetrar
o seu corpo: ela só poderia ser morta com o cereal cozido e um pedaço de ferro
em brasa. Quando a bruxa viu o cachorro espreitando na entrada da caverna, ela
gritou: Ah! então foram vocês, você e o príncipe Ring que mataram a minha
família'! E avançou para matá-los, ao que se seguiu uma luta desesperada e ela
acabou morrendo. Depois de cremarem os cadáveres, Ring e Snati-Snati voltaram
com os tesouros e foi anunciado o noivado do príncipe com a filha do rei.
Na noite anterior ao casamento, o cachorro
pediu a Ring que trocassem de lugares: ele dormiu na cama de Ring e este no
chão. Durante a noite, Rauder entrou no quarto para matar Ring, e com uma
espada aproximou-se da cama, mas assim que ele levantou o braço, Snati-Snati
pulou e numa mordida arrancou-lhe a mão direita. Na manhã seguinte, Rauder,
perante o rei, acusou Ring de tê-lo atacado. Porém Ring mostrou ao rei a mão do
ministro que ainda segurava a espada, e o rei, vendo isso, mandou que o
ministro fosse enforcado.
Ring casou-se com a princesa permitindo que na
noite de núpcias Snati-Snati fosse dormir aos pés da cama dos noivos. Durante a
noite ele voltou à sua verdadeira forma que era a do filho de um rei, também
chamado Ring. Sua madrasta o tinha transformado num cachorro e ele só poderia
ser redimido se dormisse aos pés da cama de um filho de rei. A corça com o aro
dourado, a mulher na praia e a bruxa gigante eram na realidade sua madrasta
disfarçada de várias maneiras, tentando impedir a qualquer custo a sua redenção."
Este conto se abre com a imagem de um príncipe
caçando. Muitos contos de fada — mais da metade, de fato — têm a ver com os
membros de uma família real. Nos outros, os heróis são pessoas comuns, tais
como pobres camponeses, moleiros, desertores etc.
Mas em nossa história a figura principal
representa um futuro rei, ou seja, o elemento ainda inconsciente, que é capaz
de se tornar um elemento coletivo dominante e que deverá possibilitar uma
compreensão mais profunda do SELF.
O príncipe persegue a corça que tem um anel de
ouro em seus chifres. Um paralelo grego é a cerva Cerenita, consagrada a
Artemis, que tem seus cornos dourados e que Hércules perseguiu durante um ano,
não lhe sendo permitido matá-la. (Outros paralelos são encontrados em Die
Sage von der Verfolgoten Hinde de Carl Pschmadt, Diss. Greifswald, 1911.)
Numa das versões do mito, ele finalmente encontra-a no jardim das Hespérides,
sob as macieiras, cujas maçãs davam a juventude eterna. Artemis, a famosa
caçadora, é frequentemente transformada numa corça, o que ressalta a secreta
identidade que une o caçador e a caça.
A corça normalmente indica o melhor caminho e
encontra o ponto mais seguro para cruzar o rio. Por outro lado, ela muitas
vezes conduz o herói a um desastre, ou até mesmo à morte, guiando-o para um
precipício, para o mar, ou para um pântano. Ela pode tanto nutrir uma criança
órfã, como abandoná-la. O macho sempre carrega um anel ou uma cruz preciosa
entre os chifres, podendo mesmo ter chifres de ouro. O fato de nossa história
ter uma corça com chifres indica que o animal é fêmea — (uma imagem da anima)
— ao mesmo tempo que os chifres nela significam um traço masculino. Isso
nos leva a pensar que esse é um ser hermafrodita, que une os elementos da anima
e da sombra. Um texto medieval explica que quando o cervo se sente velho,
ele primeiro come uma cobra e em seguida engole muita água para afogá-la; por
sua vez, a cobra o envenena e o cervo deve perder os chifres para livrar-se do
veneno.
Uma vez que o veneno saiu, novos chifres podem
crescer. E a respeito disso declara um dos Padres da Igreja primitiva: "O
cervo sabe o segredo da auto-renovação; ele se livra dos chifres e com ele
devemos aprender a nos livrar do nosso orgulho". O desprendimento dos
chifres do cervo é provavelmente a base natural de todos os poderes de
transformação que a mitologia atribui a este animal. Na medicina medieval, o
"osso do coração do veado" era considerado um remédio para doenças
cardíacas.
Resumindo, o cervo simboliza um fator
inconsciente que mostra o caminho que conduz ao evento crucial; seja ao
rejuvenescimento — (à mudança na personalidade, ao reencontro do bem amado),
seja ao Além (as Hespérides) — ou mesmo à morte. Além disso, o veado é o
portador da luz e dos símbolos do mandala (o círculo e a cruz). Como Mercúrio
ou Hermes, ele aparece como psicopompo, um guia para o inconsciente.
Funcionando como ponte para as regiões mais profundas da psique, ele é o
conteúdo inconsciente que atrai a consciência e a conduz para novos
conhecimentos e novas descobertas. Como uma sabedoria instintiva que reside na
natureza do ornem, o veado exerce um forte fascínio representando aquele fator
psíquico desconhecido que fornece significado ao sonho.
O aspecto de morte que ele pode tomar aparece
quando a consciência tem uma atitude negativa em relação a ele; tal atitude
leva o inconsciente a desenvolver um papel destrutivo.
Em nosso conto, o veado carrega um anel (ring)
nos chifres, e o filho do rei chama-se Ring (anel); isso revela que o veado
carrega o componente essencial da própria natureza do príncipe — ou seja, o seu
lado instintivo, não-domesticado. Juntos, eles são as faces complementares da
entidade psíquica, da qual o príncipe é o aspecto antropomórfico. No princípio
do conto ele é um caçador sem destino, não tendo ainda descoberto suas formas
individuais de realização. Sendo incompleto, ele representa meramente a
possibilidade de se tornar consciente e, consequentemente, tem que encontrar o
seu próprio oposto, da mesma forma que o veado, na alegoria medieval, engole e
integra sua forma oposta (que em algumas versões aparece sob a forma de cobra,
em outras, sob a forma de rã). Portanto é compreensível que o veado possua o
segredo da renovação e complementação do príncipe, simbolizado no anel de ouro.
O príncipe continua a caçada nos bosques, ou
seja, no inconsciente, e se perde num nevoeiro, tornando-se obscura a visão e
nebulosos todos os limites. A perda dos companheiros significa o isolamento e a
solidão típica do caminho para o inconsciente. O centro de interesse mudou do
mundo exterior para o interior, mas o mundo interior se apresenta completamente
ininteligível. Neste estágio, o inconsciente parece sem sentido e confuso.
A corça conduz o príncipe à praia, onde uma
mulher maldosa está debruçada sobre um barril. O objeto da fascinação, o anel,
aparentemente havia sido jogado dentro do barril pelo animal. 0 anel, símbolo
do SELF, representa em particular o fator que cria a relação e a totalidade
interior e essencial. Isso é o que o príncipe está procurando. Perseguindo o
anel de ouro e atraído pela corça, o príncipe cai nas mãos de uma bruxa que,
mais tarde, fica sabendo ser a madrasta de Snati-Snati. Na psicologia
masculina, a madrasta simboliza o inconsciente no seu papel destrutivo, no seu
caráter perturbador e devorador.
Ele mergulha na barrica atrás do anel. A
madrasta fecha o barril e rola-o para dentro do mar, um azar aparente, pois o
príncipe acaba chegando a uma ilha, onde encontra Snati-Snati, seu sósia mágico
e companheiro de lutas. Então, a madrasta tem um caráter ambíguo: com uma das
mãos ela destrói e com a outra leva ao bom êxito. Sendo mãe temível, ela
representa uma resistência natural que bloqueia o desenvolvimento mais elevado
da consciência, uma resistência que exige do herói suas melhores qualidades. Em
outras palavras, perseguindo-o, ela o ajuda. Como a segunda esposa do rei a
madrasta é, de certa forma, a esposa falsa, e pertencendo ao sistema antigo que
o rei representa, ela significa a inconsciência insípida e pesada que acompanha
as instituições sociais antigas e que trabalha contra a tendência de desenvolvimento
para um novo estado de consciência. Esta inconsciência negativa e teimosa
mantém a sombra do príncipe na escravidão.
Quando o herói é colocado no barril, este é
como um barco que o sustém sobre as águas, e sob este aspecto ele é maternal e
protetor; e ainda mais, ele o conduz para o lugar certo. Olhando de uma forma
negativa, pode-se observar aí uma regressão para o útero que o aprisiona e
isola. Nesta imagem, a confusão e o sentimento de estar perdido e incapaz de
encontrar uma saída é sugerido pelo nevoeiro intenso. No plano da realidade
psicológica isto pode ser interpretado como o estado de possessão arquetípica
— neste caso, sob o domínio do arquétipo da mãe. Pode-se dizer que o príncipe
Ring está, agora, sob o poder da mãe negativa, que procura cortá-lo da vida e
engoli-lo.
A barrica corresponde à baleia da história de
Jonas, e a navegação do príncipe em seu interior é um exemplo típico da
"viagem pelo mar noturno". Em outras palavras, um estado de transição
onde o herói é enclausurado na imagem da mãe como um navio. Mas o barril não só
aprisiona o herói; ele também o protege do afogamento. Isso pode ser comparado
à neurose que tende a isolar o indivíduo de forma a protegê-lo. A condição da
solidão neurótica é positiva quando ela, protegendo, permite o crescimento de
uma nova possibilidade de vida. Ela pode ser um estágio de incubação que clama
por uma personalidade mais real e mais definidamente formada. Este é o
significado do barril na história do príncipe Ring.
Como o barril, a ilha é um símbolo de
isolamento. Geralmente é um domínio mágico habitado por figuras de outro mundo
— e nessa ilha existem gigantes.
Às ilhas normalmente aportam projeções de
esferas psíquicas inconscientes; por exemplo, existem as ilhas dos mortos e na
"Odisseia", Calipso, a ninfa cativa, "a envolta em véus", e
a feiticeira Circe viviam em ilhas e são, de certa forma, deusas da morte. Em
nossa história a ilha não é a meta do herói, mas um outro estado de transição.
No mar do inconsciente, a ilha representa a parte destacada da psique
consciente (como se sabe, sob o mar a ilha continua e está ligada ao
continente). Aqui a ilha representa um complexo autônomo, destacado do ego, com
uma espécie de inteligência própria. Ela é um pedaço do consciente, fascinante
e impreciso, que pode ter um efeito sutil e insidioso sobre o indivíduo.
Pessoas pouco evoluídas psiquicamente
frequentemente têm complexos bastante incongruentes e isolados, que quase
complementam um ao outro, tais como os conceitos incompatíveis do cristianismo
e do paganismo, que não se reconhecem como contraditórios. O complexo constrói
seu próprio campo "consciente" separado do campo original onde os
velhos pontos de vista ainda prevalecem, e é como se cada um fosse uma ilha do
consciente, independente, com seus próprios portos e tráfegos.
Nesta ilha moram gigantes. Os gigantes são
caracterizados somente pelo tamanho e por terem uma relação próxima com os
fenômenos naturais. Nas crenças folclóricas, por exemplo, o trovão é visto
como gigantes jogando bola, ou como gigantes martelando; as formações irregulares
de pedras são vistas como compostas por gigantes que estavam brincando, e a
neblina aparece quando a mãe gigante estende roupas para secar. Existem
diferentes famílias de gigantes, como os gigantes da tempestade e os da terra.
Mitologicamente, os gigantes aparecem como "pessoas mais velhas", uma
raça ancestral da época da criação que se extinguiu. "Havia gigantes na terra
nesses tempos" (Gênesis, 6,4). Em algumas cosmogonias eles são
caracterizados como os predecessores dos seres humanos que não evoluíram;
assim, por exemplo, em "A Edda", Stur, o gigante, é descrito
como uma espada que separa os pólos opostos — fogo e gelo — e a criação do
gigante Ymir surge a partir da mistura desses opostos. (Quando Ymir foi
abatido, os anões saíram como vermes de suas entranhas.) Os gigantes gregos são
os Titãs que se rebelaram contra Zeus e que foram exterminados pelos raios do
deus do Olimpo. Na tradição órfica, os homens teriam se originado da fumaça que
saiu da cremação dos gigantes mortos. Em outras tradições, os gigantes, ébrios
de orgulho de si mesmos, eram destruídos pelos deuses e então os homens
herdavam suas terras. Portanto, os gigantes formam uma raça sobrenatural
antiga, sendo apenas semi-humanos. Eles representam fatores emocionais de força
bruta que não emergiram ainda ao nível da consciência humana. Os gigantes
possuem uma força enorme e são famosos pela estupidez mental. Eles são fáceis
de persuadir, são presas de seus próprios sentimentos e, portanto,
desamparados, apesar de todo poder. Os poderosos impulsos emocionais que
representam estão enraizados no subsolo dos arquétipos; assim, quando alguém é
vítima de tais impulsos ilimitados, acaba sendo dominado por eles, ficando fora
de si, usando de força bruta e tornando-se tão selvagem e estúpido como um
gigante. A pessoa pode mesmo dispor por um tempo de uma força gigantesca e
depois ter um colapso. Em circunstâncias mais felizes, a pessoa pode ser
inspirada e transportada pelos gigantes, como nas histórias dos santos que eram
auxiliados pelos gigantes na construção de uma igreja, erigida numa só noite.
Esse é o aspecto positivo dessas emoções semiconscientes e não domesticadas.
Então, em momentos como esse, o ser humano pode executar tarefas de grande
porte.
Na ilha morava um casal de gigantes. No começo
da história, os pais do príncipe não foram mencionados — ou seja, foi omitida a
imagem dos pais — uma lacuna bastante incomum nos contos de fada e, muito
provavelmente, os gigantes são o equivalente energético e a forma arcaica dos
pais. Considerando a ausência do rei e da rainha, ou seja, dos pais, os
gigantes assumiram esses papéis. Aqui não aparece o princípio regulador da consciência
e este, consequentemente, deve ter regressado à sua forma arcaica. Existe
sempre algum tipo de força dominante e se o princípio regulador vacila, existe,
então, uma recaída às formas primitivas. Por exemplo, na Suíça o ideal de
liberdade — o ideal de relacionamento sem restrições — era reverenciado como
uma noiva mística, e cada vez que surgia uma pressão de fora, este ideal era
estimulado novamente. Mas em tempos pacíficos, as pessoas perdem contato com
esse ideal e revivem a ideia de confrarias e sociedades protetoras. Um estado
semelhante prevalece, atualmente, no mundo inteiro, onde os gigantes — forças
emocionais incontroladas e coletivas — comandam toda a terra. A sociedade é
conduzida inconscientemente por um princípio primitivo e arcaico.
Na cozinha do casal de gigantes encontrava-se
um cachorro chamado Snati-Snati, que é o lado complementar do herói.
Historicamente, a cozinha é o centro da casa e, consequentemente, o local para
os cultos domésticos. Os deuses do lar eram colocados sobre o fogão e o forno,
e nos tempos pré-históricos os mortos eram enterrados sob eles. Como a cozinha
é o local onde a comida é quimicamente transformada, ela é análoga ao estômago.
É o centro da emoção no seu aspecto dessecante e consumidor e, considerando
suas funções de iluminar e aquecer, demonstra que a luz da sabedoria sai do
fogo da paixão. O fato de o cachorro estar na cozinha significa que ele
representa um complexo cuja atividade está na esfera emocional.
Snati-Snati está guardado pelos gigantes tanto
como uma espécie de segredo como uma espécie de filho. O cômodo proibido com o
seu terrível segredo é um tema bastante amplo. Em tal cômodo, alguma coisa
estranha e importante está guardada e isso significa que um complexo está
reprimido e trancado — pois é algo incompatível com a atitude consciente. Por
isso mesmo o príncipe fica relutante ao aproximar-se do cômodo proibido, mas ao
mesmo tempo está fascinado e quer entrar.
Normalmente, quando se entra nesse local, quem
está aí escondido fica furioso—ou seja, o complexo se opõe à abertura da porta.
A incompatibilidade coloca uma resistência de ambos os lados, a fim de o
complexo não se tornar consciente, e os lados se repelem como duas partículas
negativas de eletricidade. Pode-se dizer, então, que a repressão é um processo
energético recíproco. (Muitos fenômenos psicológicos são mais bem explicados
quando se assume que a vida psíquica tem características análogas aos fenômenos
físicos. Jung examinou esta analogia em detalhes nos seus ensaios "On the
Nature of Dreams" e "On Psychic Energy", ambos em The
Estructure and Dynamics of the Psyche.)
Em nosso conto, o cachorro responde imediatamente
à aproximação de Ring. Ele não é nem um monstro nem um deus, mas parece manter
uma boa relação com o herói, apesar de estar distante dele. O fato de os
gigantes não fazerem objeções ao pedido de Ring (isto é, de levar o cachorro, o
que significa assimilar facilmente os conteúdos representados pelo cachorro),
demonstra que não há resistência da parte do inconsciente e, ainda, de que não
há grande tensão entre a consciência humana e o mundo dos instintos. Isso dá
uma certa ideia da época desse conto — a saber, logo após a conversão dos povos
pagãos ao cristianismo — entre os séculos 11 e 14.
O herói e o cachorro viajam para o continente
onde há o palácio de um rei e Snati-Snati diz ao príncipe que peça um quarto no
palácio a fim de abrigá-los no inverno. Neste castelo moram o rei, sua filha e
o pérfido Rauder (ou Raut). Pode-se notar que este rei não é o verdadeiro pai
de Ring, mas o pai da anima e, ainda, nota-se a ausência da mãe — uma
ausência que pode se relacionar com o fato de que tanto Ring como o cachorro
estão sob a influência da mãe negativa. E mais, os tesouros preciosos que
pertenciam a esse rei não estão mais com ele, mas com uma cruel mãe gigante
que vive com sua família numa montanha.
O ministro Rauder (também chamado de Rot ou
Rothut — ou Red ou Red-hat — nomes que significam "vermelho" e
"chapéu vermelho" e revelam a violência de suas emoções) é uma figura
frequentemente encontrada nos contos de fada nórdicos (verificar os contos de
Grimm: "Fernando, o Fiel", e "Fernando, o Infiel", onde a
figura da sombra avisa o rei do que o herói, seu sósia, deveria fazer). Essa
figura caluniadora na corte do rei é o aspecto destrutivo da sombra do
herói—uma função perturbadora que semeia inimizade e discórdia. Sendo o
príncipe Ring muito passivo e muito bom, Rauder representa suas emoções e
impulsos obscuros ainda não assimilados — emoções como ciúmes, ódio e paixão
assassina. Mas esse ministro diabólico tem uma função essencial, pois cria
circunstâncias problemáticas nas quais Ring é capaz de sobressair-se; ele
incita o príncipe a agir heroicamente. É desta forma que a sombra maligna tem
um valor positivo e uma qualidade portadora de uma luz luciferina. Ela é a
força que o dirige para o inconsciente, e que será maligna somente se a sua
função não for compreendida, e que se apaga tão logo o príncipe ganha a
princesa e o reino. O fato de a sombra perder seu poder assim que o herói
triunfa é um dénouement (desfecho) típico. Ela seria supérflua se o
herói fosse enérgico e comum ao realizar suas tarefas. Como Mefistófeles,
Rauder é, acidentalmente, um instrumento de crescimento.
Neste ponto tocamos no problema do mal, agora
visto sob o ângulo da natureza. Este conto, como tantos outros, demonstra que
os incitamentos do mal oferecem-nos a oportunidade de desenvolvermos nossa
consciência. É como se a natureza tomasse essa perspectiva, representando-a
dessa maneira. Quando formos capazes de enxergar nossas próprias
mesquinharias, ciúmes, ódios, rancores etc., então isso poderá se reverter num
bem positivo, pois em tais emoções tão destrutivas está armazenada muita
energia vital, e quando se tem tal energia à disposição, ela poderá ser encaminhada
para fins positivos.
A característica dominante deste falso e
asqueroso ministro é a inveja. E a inveja é uma compulsão mal compreendida
através da qual se atinge algum aspecto interior que fora negligenciado. Ela
nasce da vaga percepção de uma deficiência do próprio caráter, uma deficiência
que necessita ser remediada; ela aponta para uma falta que precisa ser suprida.
O objeto da inveja incorpora o que poderia ter sido criado ou conseguido pelo
indivíduo, e que não o foi, sendo então uma carência que pode ser superada.
A figura de Rauder apresenta pouco daquilo que
é animal e instintivo e muito do que é sinistro e sagaz — qualidades da sombra
que poderiam e deveriam ficar conscientes para o herói, ou seja, o conteúdo que
deverá se fundir e integrar ao arquétipo do herói. Isso levanta a seguinte
questão: até que ponto tais fatores negativos apoiam a posição do rei? Algumas
vezes eles são incorporados ao rei, o que faz com que em certos momentos ele
mesmo imponha ao herói tarefas impossíveis. Isso significa que o novo sistema,
personificado pelo herói, precisa demonstrar que é melhor e mais forte do que o
antigo; em outras palavras, que ele criará um estado melhor de saúde psíquica
coletiva e propiciará uma vida cultural mais abundante. Esta é, pois, a
justificativa secreta do velho rei ao impor tarefas difíceis a quem aspira
herdar o reino. Pode-se observar essa luta de forças no início da era cristã,
entre o cristianismo e os velhos deuses pagãos. Os primeiros cristãos se
sentiam mais vivos, possuindo maior vitalidade, entusiasmo, uma atitude cheia
de esperanças e eram ainda socialmente muito ativos; enquanto os pagãos estavam
desiludidos e o seu espírito enfraquecido. E essas foram as razões para a
propagação do cristianismo. As pessoas procuram sinais de vitalidade e
juntam-se ao movimento que parece fazê-las sentir um bem-estar interior e
exterior. É assim que um novo sistema demonstra sua superioridade e ganha a anima
(a filha do rei) — em outras palavras, a alma do homem.
Servir na corte de um rei estrangeiro é uma
imagem recorrente e o herói que faz isso é quase sempre o herdeiro do trono.
Este tema aparece quando o princípio regulador da consciência coletiva torna-se
opressivo e chega a hora em que deveria abdicar.
Olhando as tarefas que o herói recebeu, logo se
percebe que elas são trabalhos civilizadores: domar ou abater animais
selvagens, trabalhar na agricultura, construir uma igreja da noite para o dia
etc. Uma das tarefas dessa história é o desmatamento, ou seja, abrir uma
clareira que a luz da consciência alcance, penetre no inconsciente coletivo e
suavize uma parte dele. Uma floresta é uma região onde a visibilidade é
limitada, onde as pessoas se perdem, onde animais selvagens e perigos
inesperados podem aparecer; assim como o mar, a floresta é um símbolo do
inconsciente. Os homens primitivos viviam soltos pelas florestas e fazer uma
clareira era um passo cultural. O inconsciente é uma natureza selvagem, que
engole qualquer tentativa humana, como uma floresta com a qual o homem primitivo
precisa estar sempre atento.
Além disso, a floresta, o mundo vegetal, é uma
forma orgânica que extrai a vida diretamente da terra e transforma o solo.
Através das plantas a matéria inorgânica se torna viva. As plantas tiram sua
alimentação em parte dos minerais contidos na terra e isso significa que esta
forma de vida está intimamente relacionada com a matéria inorgânica; pode-se,
então, traçar um paralelo em relação à vida do corpo e sua íntima conexão com o
inconsciente.
A fim de cumprir tarefas tão difíceis, o
príncipe Ring teve que pedir ajuda ao seu outro lado-sombra, o cachorro, que
toma as iniciativas. Os dois tornam-se fortemente aliados e o herói adquire a
ajuda dos instintos na forma da sombra positiva. Por outro lado, o instinto
auxiliar dá ao herói o senso de realidade que ele precisa, ou seja, as raízes
neste mundo.
A segunda prova de Ring é vencer touros
selvagens. A imolação do touro era de importância primordial nos ritos de
mistérios "mítricos", vestígios que ainda existem na Espanha e no
México. Matar o touro é uma demonstração da ascendência da consciência humana
sobre as forças emocionais selvagens e animalescas. Hoje em dia, o touro não é
dominante na psique inconsciente; ao contrário, nossa dificuldade reside em
encontrar um caminho de volta à vida animal instintiva, e nesta história o
herói precisa afirmar seu autocontrole e suas qualidades viris antes que possa
ocorrer a redenção do cachorro.
A etapa seguinte trata dos gigantes de quem o
herói tem que reaver os tesouros que haviam roubado, sendo importante a ação
ocorrer numa montanha. Nas religiões índias, a montanha relaciona-se com a
Deusa-Mãe. Estando perto dos céus, ela é sempre um local para revelações,
como a transfiguração de Cristo. Em muitos mitos da criação significa um local
de orientação, como por exemplo, a aparição inicial de quatro montanhas nos
quatro pontos cardeais. Os apóstolos e os líderes espirituais da Igreja eram
cognominados "montanhas" pelos Padres da Igreja primitiva. Ricardo de
São Vitor interpreta a montanha de Cristo como um símbolo de autoconhecimento
que conduz à sabedoria inspirada dos profetas. Frequentemente a montanha é a
meta de uma longa busca, ou o local de transição para a eternidade. O tema da
montanha também denota o SELF.
Resumindo os aspectos do simbolismo da montanha
que estão ligados a esta história, notamos que a montanha neste conto tem a ver
com a deusa da lua na pessoa da mãe-gigante. A montanha também marca o lugar —
o ponto na vida — onde o herói, depois de um esforço árduo (a escalada),
orienta-se e ganha firmeza e autoconhecimento, valores que desenvolve através
do esforço de se tornar consciente no processo de individuação. Na realidade,
o aspecto relativo à mãe é o dominante, e com relação ao problema apresentado
por ela, o herói precisa fazer um tremendo esforço de se tornar consciente no
processo de individuação, e precisa ser capaz de contar com seu instinto. Essa
é a razão por que Ring deixa o cachorro guiá-lo.
O autoconhecimento é simbolizado pelos objetos
de ouro, objetos preciosos que Ring encontra na montanha; este conhecimento é
simbolizado também pelo sal que o príncipe derrama na sopa de cereais,
induzindo uma sede terrível nos gigantes, a saída de cada um deles, um a um e a
morte de todos.
O sal é uma parte do mar e tem em si o amargor
inerente ao mar. A ideia de amargor é também associada com lágrimas, com
tristeza, desapontamento e perda. Em latim "sal" também significa
"espírito" ou "gracejo". O sal na alquimia é chamado de
"sal da sabedoria", pois fornece ao indivíduo um poder espiritual
penetrante e é um princípio místico do mundo, como o enxofre e o mercúrio.
Então, tanto a sabedoria, como uma tristeza pungente, uma opinião cética, ou a
ironia, todas podem ser simbolizadas pelo sal. Alguns alquimistas receitam o
sal como sendo o único meio de combater o demônio. Por outro lado, na alquimia
o sal é considerado como o princípio de Eros, e é chamado de "aquele que
abre e une". A partir dessas considerações pode-se concluir que o sal
simboliza a sabedoria de Eros, sua amargura junto ao seu poder de vida — a
sabedoria adquirida pelas experiências dos sentimentos.
No presente conto o princípio de Eros conduz o
herói na sua busca e o sal serve para isolar os gigantes e torná-los
vulneráveis. O herói tem uma atitude espiritual que é uma fonte mais rica do
que os espíritos vagarosos dos gigantes.
Se resumimos os aspectos de sombra desse conto,
vemos que existem duas figuras de sombra — o cachorro e o Rauder — um sósia
animal e um sósia humano malicioso — uma sombra positiva e outra negativa. O
cachorro está intimamente ligado ao herói, enquanto Rauder está separado e é
transitório. Os dois desempenham seus respectivos papéis até o momento em que
o herói se une com sua anima.
Não podemos negligenciar o fato de que o cachorro
é uma parte desconhecida da psique humana, uma parte que se expressa melhor
através da imagem de um cachorro (como todos os símbolos, ele é a sua melhor
expressão). Se nós quisermos circunscrever seu significado, devemos embrar que
na Antiguidade o cachorro era visto como o guardião da vida eterna. Por
exemplo, Cérbero de Hades e as imagens de cachorro nos antigos túmulos romanos.
Na mitologia egípcia, o deus Anúbis com sua cabeça de chacal é um guia para o
mundo inferior; diz-se também que ele juntou o corpo desmembrado de Osíris. Os
sacerdotes que faziam os rituais da mumificação se vestiam à semelhança de
Anúbis. Na Grécia, o cachorro pertencia ao deus da cura, Esculápio, porque ele
sabe se curar sozinho comendo grama. O cachorro, via de regra, tem uma relação
muito positiva com o homem: ele é um amigo, um guardião e um guia. Mas ele era
também muito temido nos tempos antigos, pois, sendo portador da raiva e da
loucura (hidrofobia), viam-no como aquele que traz doenças e pestes. De todos
os animais, o cachorro é o que melhor se adapta ao homem, que mais corresponde
aos seus sentimentos, imita-o e compreende o que é esperado dele. É a essência
do relacionamento.
Snati-Snati, na verdade, não é um cachorro. No
final da história ficamos sabendo que ele é um príncipe, também chamado Ring, e
que também esteve sob o poder da mulher-gigante aniquilada por eles.
Snati-Snati, por sua vez, não podia ser liberto até que dormisse aos pés da
cama do príncipe que tinha seu nome. Então, pode-se dizer que este cachorro
representa um impulso instintivo que mais tarde se torna uma qualidade humana.
Pode-se também supor que este impulso animal, que necessita e quer ser
integrado, contém um traço oculto do herói. O cachorro é o lado complementar
instintivo do herói, cuja assimilação traz a própria realização na vida
tridimensional.
Em outros contos a sombra, retratada na figura
de Rauder, aparece, às vezes, como os dois irmãos caluniadores do herói; esses
irmãos representam tendências de um desenvolvimento unilateral muito
"espiritual" ou muito "instintivo". Rauder tem uma natureza
ciumenta com a consequente tendência perigosa do estreitamento unilateral. Ele
simboliza a possessividade apaixonada, mas tem uma função positiva enquanto
impõe tarefas impossíveis ao herói, e, quando a anima chega, ele
precisa sair.
Rauder tenta matar o herói como última
tentativa e então é atacado pelo cachorro — por uma reação instintiva, que o
desarma e derrota seus propósitos. Na tentativa de assassinar Ring, Rauder
expõe sua mão — e o cachorro morde, arrancando-a. Quando se lida com forças
malignas, a tolerância é de grande valia. Aquele que consegue se manter sem
perder as estribeiras é o que vence. Existem contos que falam do duelo entre o
herói e o espírito do mal, e o primeiro que perder o controle de suas emoções
perde a sua vida. Descontrolar-se significa sempre um rebaixar da consciência,
um lapso que leva às reações primitivas ou mesmo animais.
Rauder é terrível enquanto representa a astúcia
humana contra Ring, e, então, sua paixão animal pela destruição pura
sobrepujou-o: esta é a razão pela qual ele foi aniquilado pelo animal. Ele
representa, de certa forma, o mal não assimilado na psique que resiste à sublimação
e que precisa ser eliminado. Um alquimista observou que na prima-matéria existe
uma certa quantidade de terra damnata (terra danada) que impede todos os
esforços para a transformação e precisa ser retirada. Nem todos os impulsos
obscuros se deixam levar pela redenção; alguns, embebidos do mal, não podem ser
suavizados e precisam ser severamente reprimidos. O que é contra a natureza e
contra os instintos precisa ser estancado por uma força essencial e erradicado.
A expressão "assimilação da sombra" tem significado quando aplicada
aos aspectos infantis, primitivos e subdesenvolvidos da natureza do ser
humano, sombra essa retratada na imagem de uma criança, de um cachorro ou de um
estranho. Mas existem sementes mortais que podem destruir o ser humano e que
necessitam de resistência. E a presença delas significa que a pessoa precisa
ser dura de tempos em tempos, não aceitando tudo que vem do inconsciente.
Snati-Snati se tornou um príncipe e pode-se
indagar por que ele havia sido transformado em cachorro. Isso tem sentido se se
considerar a natureza dupla do instinto, que é um fenômeno ambíguo. Os biólogos
entendem-no como uma forma de comportamento animal, significativo mas não
reflexivo, e, ainda, como um padrão inato do comportamento que somente os
animais superiores são capazes de modificar. Esse padrão consiste em dois fatores:
a atividade física e a representação ou imagem desta atividade, sendo esta
última necessária para a atualização da primeira. A imagem trabalha como um
agente catalisador da ação física e ao mesmo tempo revela o significado da
ação. Normalmente, os dois fatores coexistem e trabalham em conjunto, mas eles
podem se encontrar separados. Se uma outra imagem substituir a original, o
comportamento instintivo pode se atar à nova imagem. As galinhas, por exemplo,
chocadas em incubadeiras, fazem sua encenação amorosa aos tamancos de madeira
usados pelas pessoas que cuidam delas, porque os tamancos foram
"gravados" com a imagem de mãe. Essas imagens ou quadros são o que
nós chamamos de arquétipos.
Snati-Snati, portanto, é a representação
psíquica na qual o caminho da auto-realização aparece primeiramente como um
instinto, mas que contém em si o lado humano complementar. O fato de esse
impulso tomar a forma de cachorro deriva de um falso conceito de individuação,
uma interpretação coletiva errônea mantida pelo consciente; é por isso também
que aparecem os castigos e a maldição da madrasta.
Toda época histórica apresenta convicções
coletivas generalizadas acerca do processo de individuação. Por exemplo, para
as pessoas da Idade Média, o modelo para toda sua vida e para suas condutas
interiores deveria estar pautado na vida de Cristo, sendo isso o que se chama
de individuação. Hoje em dia, o pensamento corrente é que as pessoas são
sadias, satisfeitas e completas quando os instintos físicos são normais, especialmente
o instinto sexual. De acordo com os freudianos, a raiz de todo mal é a
repressão sexual — se as funções eróticas tomam seu curso natural, então todas
as coisas são resolvidas. Os devotos dessa crença colocam toda sua energia em
função desse propósito, mas frequentemente acabam percebendo que eles não podem
se livrar das próprias inibições através desse caminho. Exatamente por ser
superestimada, a espontaneidade não pode acontecer naturalmente. As pessoas
carregam o instinto com expectativas psicológicas e colocam a ideia mística da
redenção num fato biológico. Então, algo que não pertence à esfera animal é
projetado nela. Dentre outros exemplos desta espécie de confusão está a ideia
que certas pessoas têm de que o significado pleno de suas vidas é conquistado
quando o comunismo ou qualquer outra ordem social se instale no seu país,
realizando seus desejos e ideais mais elevados. Outro exemplo, ainda, é o ideal
guerreiro de algumas culturas, como foi revivido pelo nazismo. Os nazistas
puseram o ideal da individuação em seus programas políticos, mas as falsas
interpretações coletivas perverteram-no, retirando-lhe toda a alma. A
juventude nazista deu ao país devoção, força intensa e vontade de se sacrificar
porque, na verdade, ela estava identificada com o que chamamos de individuação.
Idealismo e desejo de sacrificar-se são qualidades admiráveis em si mesmos,
porém lhes foi dada uma falsa direção. Porque o millenium é
originalmente um símbolo do SELF, ele se apossou da imaginação dos
nazistas. Tomemos, por exemplo, a ideia incrível das mulheres tendo filhos para
o Führer. A ideia subjacente era que a produtividade feminina deveria
estar subordinada a um princípio espiritual e, portanto, as mulheres não
deveriam produzir filhos como animais, mas sob a égide de um princípio
regulador de vida. Mas isso foi falseado pela concepção errônea do desenvolvimento
espiritual que, colocando muito peso no materialismo, levou as mulheres à
própria degradação.
Quando os fatores simbólicos são reprimidos
eles encobrem os instintos e por isso precisam ser separados, de modo que os
instintos genuínos possam funcionar sem ser carregados de elementos que lhes
pertencem. Como eu já disse, quando as pessoas enfatizam por demais a
sexualidade, colocam algo na esfera animal que não pertence a ela e um
verdadeiro esforço precisa ser feito para integrar a sombra a fim de permitir
que os instintos funcionem de um modo harmonioso.
Se demarcarmos o caminho do príncipe numa espécie
de mapa, observa-se que sua rota é circular — como um anel — pois a quarta
estação é secretamente idêntica à primeira, pois ambas são regidas pela
madrasta.
O herói, em última análise, termina no ponto em
que ele partiu, mas no seu circuito ele ligou-se ao cachorro (2º Ring), à
princesa e ao rei. Todo o processo é um contínuo somar, um processo de
complementação crescente, ordenado como um mandala. Esse é o modelo típico dos
contos de fada.
O caminho dessas quatro estações conduz a um
aprofundamento cada vez maior no inconsciente. Entre os estágios 2 e 3, o herói
é quem mostra o caminho, mas entre os estágios 3 e 4 é o cachorro quem guia o
herói. Na quarta estação, todos os elementos diabólicos desaparecem: o casal de
gigantes da ilha morrem de velhice, os outros gigantes, inclusive a
gigante-bruxa, são mortos e Rauder enforcado. Os estágios um e quatro têm uma
identidade secreta, pois tratam do mesmo complexo psíquico em diferentes
níveis. A corça, a bruxa da praia e a mulher-gigante são, no fundo, uma única e
mesma figura — ou seja, aquela que persegue os dois Rings.
O quarto estágio também preenche o que estava
latente: casamento com a anima e a emancipação da sombra sob a forma de
cachorro (depois de ter sido liberto da cozinha proibida). Somente depois de
atingir o SELF é que a sombra e a anima SELF realmente se integram,
pois é só então que a situação torna-se estável. A estrutura do quarto estágio
aparece com frequência nos contos de fada que tratam de personagens da realeza
e esses contos; geralmente, concluem com um grupo formado de 4 pessoas.
Este conto de fada na sua totalidade representa
um processo energético de transformação interior do SELF, e pode-se
comparar isso às transformações que acontecem num átomo ou no seu núcleo.
O desafio da anima
A princesa enfeitiçada
"Um homem tinha um filho chamado Pedro que
não queria mais permanecer em casa. Então, pedindo sua parte da herança que
consistia em vinte xelins, partiu. No seu caminho pelos campos, encontrou um
homem morto no chão, que não havia sido enterrado por ser pobre. Pedro, sendo
um rapaz de bom coração, gastou os seus vinte xelins providenciando um enterro
decente para o pobre homem.
Continuando seu caminho, Pedro encontrou um
estranho com o qual decidiu prosseguir a viagem. Eles chegaram a uma cidade
onde tudo estava coberto de preto, como um sinal de luto pela princesa que
havia sido enfeitiçada por um espírito da montanha que era muito mau. Ela
costumava propor três enigmas para seus pretendentes, e se eles errassem
qualquer um deles, ela os matava. Nenhum homem, até então, havia conseguido
redimi-la, respondendo suas questões e, então, muitos haviam perdido suas
vidas. Pedro decidiu tentar. Seu companheiro, que na verdade era o espírito do
homem morto encontrado e enterrado por Pedro, ofereceu-lhe ajuda. Ele colocou
asas nas costas de Pedro, deu-lhe uma barra de ferro e disse-lhe que ele
deveria voar atrás da princesa naquela noite, segui-la para onde fosse,
batendo-lhe com o vergalhão. E, ainda, o mais importante, que Pedro deveria
memorizar tudo da conversa entre a princesa e o espírito da montanha, do qual
era cativa.
Depois de anoitecer, Pedro voou até o beirai da
janela do quarto da princesa e quando ela saiu voando através da janela, ele a
seguiu, atingindo-a com o vergalhão. Eles chegaram a uma montanha bem alta que
se abriu, e ambos entraram. Havia um grande pátio de entrada onde Pedro avistou
algumas estrelas esparsas na escuridão acima e ainda um altar próximo à
entrada. A princesa logo correu para os braços do espírito da montanha que
tinha uma barba branca como a neve e os olhos vermelhos como dois pedaços de
carvão incandescente. Ela, então, contou-lhe que um outro pretendente se
apresentaria no dia seguinte e que ela precisaria de um enigma para
confundi-lo. O espírito da montanha praguejou dizendo que ela precisava matar
esse homem. 'Quanto mais sangue humano você beber, mais você se tornará minha',
disse ele, 'e mais pura você se torna diante dos meus olhos. Pense no cavalo
branco de seu pai e peça ao seu pretendente que lhe diga o que você está
pensando.' Depois disso ela voltou para seu castelo e foi dormir.
Na manhã seguinte Pedro se apresentou e
encontrou-a sentada no seu sofá, bastante melancólica, mas com uma aparência
doce e bela. Quem a visse assim, sequer poderia imaginar que ela já havia
mandado matar nove homens. Ela, então, perguntou a Pedro: 'No que eu estou
pensando?', e ele, sem hesitar, respondeu: 'No cavalo branco de seu pai'. Ela,
empalidecendo, ordenou-lhe que voltasse no dia seguinte para a próxima
adivinhação.
Naquela noite, novamente, Pedro seguiu-a, mas
logo após eles terem entrado na montanha, ele reparou que no altar havia um
peixe espinhoso e que a lua brilhava acima dele. Desta vez a princesa estava
pensando na espada de seu pai, e Pedro, novamente, deu a resposta sem hesitar.
Na terceira noite o companheiro de Pedro
equipou-o com uma espada e dois vergalhões. Ele, ao entrar na montanha, viu que
sobre o altar havia uma roda de fogo além do peixe espinhoso e acima o sol
brilhava tanto que ele teve que se esconder atrás do altar para não ser visto. Ele
ouviu, então, o espírito da montanha decidir que a adivinhação teria a ver com
a cabeça do espírito: 'Pois nenhum mortal poderá ser capaz de pensar isso',
assegurou ele à princesa. Mas, quando ela saiu, Pedro rapidamente decapitou o
espírito da montanha com sua espada, levando a cabeça consigo. Então, ele
seguiu a princesa atingindo-a com os dois vergalhões.
Na manhã seguinte, quando ela lhe perguntou no
que estava pensando, Pedro rolou a cabeça do espírito da montanha até seus pés,
dizendo: 'E nisto que você está pensando'. A princesa, perplexa, num misto de
terror e alegria, desmaiou e quando recobrou os sentidos consentiu em casar-se
com esse seu pretendente.
No dia do casamento o companheiro de Pedro
advertiu-o, dizendo que ele deveria preparar uma grande tina cheia de água, e
levá-la para o quarto naquela noite. — 'E quando a noiva acordar, mergulhe-a
dentro da tina', disse o companheiro, 'e então ela tornar-se-á um corvo.
Coloque o corvo novamente na água, e ela se tornará uma pomba. Mergulhe a pomba
na água, e, então, sua noiva sairá na sua forma verdadeira, tão suave quanto um
anjo.' Em seguida, o companheiro desapareceu.
Pedro agiu como lhe foi dito, redimindo a
princesa e mais tarde tornou-se rei."
(Deutsche Márchen
seit Grimm, p. 237.)
Numa variação norueguesa (Norweigische
Màrchen) ocorrem substituições do seguinte tipo: o homem cujo enterro é
providenciado pelo herói é um mercador de vinho que tinha por hábito vender seu
vinho diluído em água. O espírito da montanha é um troll (espécie de
gnomo ou duende dos países escandinavos), e a princesa vai até ele toda noite
montada num bode. Ao invés de adivinhar, o herói precisa produzir os objetos
que ela pensa, que são uma tesoura, um carretei de ouro e a cabeça do troll.
Antes de chegarem ao reino da princesa, o herói e seu companheiro têm que
vencer três bruxas, e então cruzar um rio. O companheiro-fantasma faz possível
a travessia do rio, jogando o carretei de ouro para a outra margem, que volta
por si mesmo. Neste caminho fios dourados vão sendo deixados, até formar uma
ponte, forte o suficiente para que se possa atravessar. Finalmente, depois de
conseguir a princesa, o herói precisa banhá-la no leite e surrá-la até que ela
perca sua pele de troll; se ele assim não o fizer ela o assassina. O
herói, por sua vez, faz um trato com seu companheiro pela ajuda que este
prestou, prometendo que ele dividiria meio a meio seus ganhos. Então, após
cinco anos seu companheiro retorna para ajustar as contas e pede ao herói que
divida seu filho ao meio. Mas quando ele vê que o herói está pronto para
realizar o sacrifício, ele perdoa a dívida, dizendo ao herói que ele deve
voltar aos céus. O cadáver que o herói encontra é em geral de algum pobre que
morreu endividado, de um criminoso ou suicida. No conto paralelo a sombra é
humana ou espiritual e não aparece na forma de animal como na história do
príncipe Ring — ou seja — ela é um pessoa moralmente inferior, um trapaceiro
que diluía o vinho em água.
Na versão principal, a sombra não tinha energia
vital — dinheiro é energia — e por isso é pobre e precisa se reencontrar. Ela
representa uma parte não vivida do herói, qualidades potenciais que não
entraram ainda no seu caráter e nas suas ações. Complexos autônomos geralmente
se desenvolvem sem que o ego suspeite de sua existência e, mais cedo ou mais
tarde, eles são constelados e aparecem, a princípio, de uma forma bastante
desagradável.
Se alguém fosse o Pedro da história poderia
considerar que ele não era o responsável pelo cadáver, mas isso não é verdade
em se tratando da própria sombra. Somente uma atitude consciente e responsável
transforma a sombra num amigo. Dar o dinheiro para o enterro significa que
houve uma preocupação com a sombra e, também, que se desprendeu energia a seu
favor. Para aqueles que se recusam a fazer isso a sombra é enganosa e vive
fazendo trapaças — como misturar água no vinho. A natureza desta sombra é
desonesta: ela coloca simples água no lugar de algo mais valioso e mais caro
que é o vinho, procurando obter mais por menos. O seu crime está em minimizar o
esforço.
Na antiguidade beber vinho não diluído em água
era considerado um ato de arrogância, exceto nos rituais dionisíacos, onde
significava uma exaltação espiritual. Mas essa prática estava dentro de um
cerimonial e era exceção, não se aplicando ao consumo diário. No simbolismo
cristão da missa o vinho representa o sangue de Cristo, ou mais
especificamente, a natureza divina do Cristo, a água a sua natureza humana e o
pão o seu corpo. Eu menciono isso somente para mostrar que, historicamente, o
vinho era considerado como algo espiritual e a água algo de natureza comum.
A falha da sombra é que ela confunde o divino e
o humano no dia-a-dia, misturando o que deveria ser discriminado. O ato de
misturar pode ser perdoado, mas a desonestidade consiste em querer passar esse
vinho como genuíno e inalterado. As pessoas que se deixam levar pela própria
sombra enganam a si próprias pensando que seus motivos são altamente morais,
enquanto que, de fato, dissimulam os seus fortes desejos de poder. A sombra
mistura as coisas de uma maneira imprópria, como, por exemplo, fatos e
opiniões. As pessoas chegam mesmo a se enganar pensando que fantasias sexuais
são experiências místicas. Pode-se chamar uma coisa do nome que se quer, mas
não se pode pretender que um elemento físico seja espiritual. Se uma pessoa
resolve unir água e vinho, deveria fazê-lo conscientemente e não de uma maneira
hipócrita. A sombra se aproveita de uma boa ideia e concretiza-a num nível
arcaico e falso. Quando alguém ignora a própria sombra, ela falsifica sua
personalidade.
Obter mais com menos tem suas implicações psicológicas,
como evitar o difícil caminho individual. Os homens, frequentemente, têm em si
mesmos um canto sombrio no qual eles arranjam seus negócios de uma maneira
fácil, e as mulheres apaixonadas ou ciumentas sabem fazer cenas para obterem o
que querem. Tais comportamentos são falhas humanas comuns, pois a sombra é um
companheiro inferior e age desta maneira; ela não vai mesmo se esforçar. Ser
capaz de não trilhar o caminho mais fácil é um sinal de autodisciplina e nível
cultural elevado.
Na situação inicial desse conto há também falta
de energia psíquica e isto cria espécie de avidez que leva as pessoas a se
enganarem. Quando alguém está realmente fascinado pela vida interior, não tem
tempo nem energia para arquitetar manobras fraudulentas ou ser calculista. Por
outro lado, enquanto a anima não for redimida, a vida não flui, e isto
enclausura a energia dentro de tendências mesquinhas e malévolas.
Sendo a sombra uma parte rejeitada e não compreendida
da psique, ela se mata. Se alguém vai muito longe na sua repressão da sombra e
se ainda for muito severo e intransigente por um longo período de tempo, o
complexo não vivido morrerá. Este é o objetivo da ascese. Quando o herói enterra
o cadáver — isto é — coloca-o no nível da realidade, a sombra desaparece como
cadáver e reaparece como um fantasma. Ela retorna com o aspecto de um espírito;
permanece ainda o problema da sombra, porém num nível melhor.
A natureza do herói, também, revela a natureza
da sombra. Pedro não é um filho do rei, mas um rapaz comum, um anônimo.
(Frequentemente este tipo de herói não tem nem mesmo um nome.) Ele representa o
homem mediano que também é um aspecto do SELF—o Antropos — o ser humano
na forma comum, ainda que eterna. (Compare com Cristo, que também é chamado de Knecht
na Alemanha, o que significa "Servo".) A figura da sombra tem uma
função compensatória que é a complementação do herói. O caminho desse homem
comum, Pedro, o conduz da forma comum para uma forma especial e nobre, cujo
significado já foi acima discutido.
A realização do SELF pode ser
experienciada através de classes de heróis marcadamente diferentes, como o
príncipe ou o rapazola comum. Pode-se observar, por exemplo, que os jovens
frequentemente se identificam interiormente com um "príncipe" ou com
uma criatura sobrenatural. Muitos outros querem ser comuns, antes de mais nada,
e ser como todo mundo é. Cada nível deseja secretamente o outro e as duas
formas na verdade são dois lados do Antropos, do Homem. O inconsciente insiste
em ambos os lados, pois, paradoxalmente, individuação significa tornar-se mais
individual e, ao mesmo tempo, mais humano.
O herói aparece, quase sempre, no papel de um
desertor. Ele deixa a ordem coletiva e se envereda num destino especial. Em
nossa história a sombra se transforma num espírito do outro mundo. Ela é a
companheira-serviçal e através de suas habilidades e conhecimento contorna a
ingenuidade de menino do herói. Sendo o herói dessa história de nível muito
baixo, a sombra é espiritual; Ring, sendo um príncipe e, portanto, de nível
mais alto, possui uma sombra instintiva.
O herói dá toda sua herança para o enterro.
Isso está muito além do que se pode esperar de uma pessoa e também muito além
das possibilidades do próprio herói, constituindo, portanto, uma atitude
tipicamente heroica. Foi dado à sombra um enterro e a partir daí ela cessa de
fazer exigências sobre a vida humana. Depois disso ela volta mais à vida, mas é
transformada em espírito no Reino onde existe o descanso.
Prover o enterro para a sombra tem duplo
aspecto: o herói dá dinheiro (isto é, energia) e livra-se da perturbação da
sombra. Para reconhecer a sombra é preciso estar preparado para colocá-la no
seu lugar. Neste conto é permitido à sombra manter seus propósitos, advindo
disto sua espiritualização. Quando se tem somente meia consciência da sombra,
ela é perturbadora e indeterminada (ou seja, não é peixe nem pássaro). A
espiritualização ocorre porque a sombra companheira, recém-adquirida, é
instrumental, realizando as tarefas, tornando-se aquela que arruma a sorte, o
destino. Esse papel aparece claramente em Fausto. Somente quando a
sombra é projetada, o indivíduo torna-se real. A sombra coloca o homem em
situações imediatas do aqui e agora, e isto cria a biografia real do ser
humano, que está sempre inclinado a acreditar que ele é somente o que ele pensa
que é. E a biografia criada pela sombra que realmente é válida.
Somente mais tarde, quando a sombra foi de alguma
maneira assimilada, o ego pode contribuir para a complementação do seu próprio
destino. Então um outro conteúdo do inconsciente, o SELF, tem a função
principal de arrumar o destino e é por isso que posteriormente em nossa
história a sombra companheira desaparece.
Este herói está completamente sem destino. Ele
não tem compromissos em casa e nenhum destino específico fora dela. Esta é uma
boa pré-condição para uma ação heroica—um ponto que é frequentemente
enfatizado. Ele está cansado de casa, pega sua herança e sai pelo mundo — tudo
isso indica que a energia já deixou o consciente e reforçou o inconsciente. Só
se pode descobrir o mistério do inconsciente como uma realidade quando se é
despretensiosamente curioso, e não quando se quer atrelar força e poder em
algum planejamento prévio do consciente.
Tão logo o primeiro passo é dado com relação ao
problema da sombra, a anima é ativada. Na versão norueguesa ela tem uma
pele de troll, ou seja, ela representa um nível de vida mais primitivo
e mais antigo e tem um caráter pagão. Frequentemente, no mito nórdico, a anima
aparece como troll e sobrenatural, representando então um desafio à
vida moral cristã, tradicional e segura. A fim de ampliar um pouco mais este
aspecto da anima, vamos deixar de lado, por ora, essa nossa história e
considerar dois contos escandinavos. A próxima história refere-se a um homem
que se sai mal por recusar relacionar-se com sua anima pagã.
A
igreja secreta
"Um mestre-escola de Etnedal gostava de
passar seus dias de folga, suas férias, sozinho numa cabana nas montanhas. Uma
vez, lá estava ele quando ouviu sinos de igreja, não havendo nenhuma igreja por
perto. Ele estava admirado quando viu um grupo de pessoas endomingadas
passando pela frente de sua cabana por um caminho que ele nunca tinha estado
anteriormente. Ele os seguiu e chegou à pequena igrejinha de madeira, que
também era nova para ele. Ficou muito impressionado com o sermão do velho
pastor, mas notou que o nome de Jesus Cristo não fora mencionado e, ainda, que
não houve a bênção final.
Depois da cerimônia o mestre-escola foi
convidado a ir à casa do pastor. Entre a conversa e uma xícara de chá, a filha
do pastor disse-lhe que, estando seu pai bastante velho, perguntava-lhe se ele
aceitaria ser seu sucessor quando ele morresse.
O mestre-escola, então, pediu que lhe dessem
tempo para pensar no assunto. A moça respondeu que ela lhe daria um ano inteiro
para isso. Tão logo ela assim falou tudo desapareceu e ele se encontrou
novamente no bosque e na cabana que conhecia. Ficou perplexo e pensativo por
alguns dias e, então, simplesmente, o assunto sumiu de sua cabeça.
No ano seguinte lá estava ele na sua cabana da
montanha, quando notou que do seu telhado estava vazando água. Subiu com seu
machado para consertá-lo. De repente, lá de cima, percebeu que alguém se
aproximava pelo caminho em frente à cabana. Era a filha do pastor. Vendo-o ela
lhe perguntou se ele aceitaria ser pastor; ao que ele respondeu: 'Eu não posso
aceitar isso por Deus e por minha consciência, então preciso recusar'. Neste
exato momento a moça desapareceu e ele inadvertidamente deixou o machado cair
no seu próprio joelho, tornando-se coxo para o resto de sua vida."
(Nordische
Mãrchen, vol. II. Jena
Diederichs, 1915, p. 22.)
Este conto mostra que a repressão da anima por
razões convencionais resultam numa real automutilação psíquica. Se se sobe
muito alto (no telhado) perde-se o contato natural com a terra (a perna). Por
outro lado, a figura da anima é, nessa história, a de um demônio pagão.
Um outro exemplo que ilustra as consequências
desastrosas resultantes de um modo desapropriado de se lidar com o mesmo
problema é o que se segue:
A
mulher do bosque
"Uma vez um lenhador viu no bosque uma
bela mulher que estava costurando, quando seu carretei rolou sobre seus pés.
Ela pediu que ele apanhasse e lhe entregasse o carretei e ele assim o fez,
embora soubesse que isso significava submeter-se aos seus encantos. Na noite
seguinte, embora ele tivesse tomado o cuidado de dormir entre seus
companheiros, ela veio e levou-o cativo. Eles foram para as montanhas onde tudo
era calmo e bonito.
Então, ele foi tomado de loucura. Um dia,
quando a "mulher-troll" trouxe-lhe algo para comer, ele reparou que a
mulher tinha um rabo de vaca; ele deu um jeito para que ela prendesse sua cauda
na fenda de um tronco de árvore — e escreveu o nome de Cristo na madeira. Ela
fugiu num piscar de olhos e seu rabo ficou no tronco e ele, então, viu que sua
comida era simplesmente ração de vaca.
Tempos depois ele deparou com uma cabana no
bosque e lá viu uma mulher e uma criança, ambas com rabo de vaca. A mulher
falou à criança — 'Vai e traga para seu pai um copo de cerveja.' O homem ao
ouvir isso fugiu em disparada, horrorizado. Ele retornou são e salvo para sua
cidadezinha, mas ficou um pouco esquisito pelo resto de seus dias."
(Ibid, p. 194.)
Este conto mostra o perigoso feitiço que a anima
exerce sobre o homem, cujo ego e força de vontade são fracos. Segui-la
significa perder o contato humano e voltar ao estado selvagem e reprimi-la
significa uma perda do espírito e da energia.
O mesmo tipo de figura perigosa da anima aparece
na história dos índios sul-americanos da tribo Cherente.
A estrela
"Um jovem que vivia na cabana dos
solteiros toda noite olhava para uma estrela brilhante e suspirava dizendo:
'Que pena eu não poder colocá-la na minha botija e assim poder admirá-la o dia
inteiro'. Uma noite ele acordou de um sono profundo em que sonhava com a
estrela e viu, ao lado de sua cama, uma linda moça de olhos magníficos, com
olhar profundo e penetrante. Ela, então, contou-lhe que era a estrela que o
encantara, atraindo-o todas as noites. Disse, também, que possuía o dom de se
tornar pequenina o suficiente para caber na sua botija, assim eles poderiam
ficar sempre juntos.
Eles passaram a noite juntos, mas, de manhã,
enquanto ele tentava colocá-la no seu frasco, os olhos da moça brilharam como
os de um gato selvagem. O moço entristeceu-se muito e seus temores foram
concretizados quando um dia ela lhe disse que teria de partir. Ela tocou uma
árvore com uma varinha mágica e esta cresceu bem para o alto, até as nuvens. Em
seguida a moça começou a subir para o céu. Contra a sua própria vontade, o moço
seguiu-a. Embora ela suplicasse que ele não fizesse isso, ele lá foi e, bem no
alto da árvore, descobriu uma grande festa com muita dança. Ele ficou
estupefato ao observar esqueletos dançando em círculos e, confuso, zarpou,
fugindo. A moça novamente apareceu e disse-lhe para tomar um banho de
purificação, mas foi em vão. Quando ele tocou o chão, teve uma dor de cabeça
violenta e logo depois morreu."
(S. Am.
Indianische Marchen, Cherente,
p. 206.)
Uma história deste tipo permitiu a estes índios
se dar conta do terrível perigo de fascinação que podem apresentar as imagens
arquetípicas do inconsciente coletivo, pois elas têm o poder de tirar o indivíduo
do contato com a realidade. Eles descobriram que apesar das estrelas parecerem
prometer a felicidade aos homens, não se deve procurá-las no céu.
A anima é retratada tanto como um
espírito miraculoso, como um animal feroz. Ela frequentemente aparece como
horrível e mortal, e quando isso acontece é preciso manter o consciente longe
do inconsciente. É por isso que, a título de advertência, o inconsciente se
manifesta como um perigo mortal. Este é um tema comum nos contos primitivos.
Então o herói precisa se guardar e não se expor a conteúdos venenosos e nem se
entregar a qualquer coisa que exerça uma fascinação estranha sobre ele, nem às
fantasias interiores, nem a qualquer perigo ou fascínio que lhe venha de fora.
Então, por vezes, especialmente nos primórdios das culturas, a anima tem
de ser reprimida, seus poderes reduzidos e confinados. Isso corresponde à
repressão e à desvalorização de um complexo; e por isso a anima aparece
como um animal malicioso, de olhos reluzentes. Sua reação é evocada pela
atitude consciente do herói, retornando à noite sua forma divina.
A religião cristã também se utiliza da ideia do
frasco para aprisionar a anima, para limitá-la e conter suas forças
explosivas. Isso ocorre especificamente no culto da virgem, onde existe uma
"nave" para a imagem da anima e da mãe do Homem. Se por um
lado esta restrição consciente é bastante necessária, por outro há perigo em
prolongá-la além do necessário. É uma questão de sentir e de perceber quando se
deve diminuir essa resistência, pois de outra forma o inconsciente fica com uma
super-reserva de poderes explosivos.
No conto da "Princesa enfeitiçada" o
herói precisou investir e fazer algumas tentativas antes de atingir a anima,
e na versão alternativa o herói e seu companheiro são perseguidos por três
bruxas. Normalmente as bruxas são as manifestações iniciais da anima e,
frequentemente, lembram a imagem da mãe, como a madrasta do príncipe Ring. O
companheiro de Pedro lança um carretei de linha dourada através do rio para
formar uma ponte. Depois, os dois têm que atravessar correndo e desmanchar a
ponte para impedir que as bruxas os alcancem. As bruxas, ao tentarem atravessar
a ponte, caem na água e morrem afogadas. Esta linha dourada é o elo secreto com
aquilo que é significativo no inconsciente. Ela é o fio invisível que une as
coisas; é a linha do destino tecida por nossas projeções inconscientes.
Nesta história o companheiro é um ser
sobrenatural — guia do destino, e é ele quem tem a linha e quem a joga. O
carretel indo e voltando, como uma lançadeira de tear, balança num estágio
perigoso entre o presente incerto e o futuro imediato, até que a ponte aparece
como suficientemente forte. Desta forma pode-se fazer projeções à vontade, o
que possibilita ao indivíduo superar sua desconexão. Ocorre, normalmente, uma
oscilação entre opostos até que a estabilidade seja alcançada, e quando esta se
dá pode-se atravessar o rio, ou seja, pode-se mudar uma atitude interior.
O herói chega na cidade que está de luto por
causa da princesa enfeitiçada e cativa; fica sabendo que diversos príncipes já
acorreram tentando salvá-la. A anima está sob o domínio de um feitiço e
presa nesta cilada, porque um processo do inconsciente não havia sido
compreendido. Essa é a razão dos seus enigmas aos quais é preciso imediatamente
responder. Os enigmas da anima significam que ela mesma não consegue se
entender e que ainda não encontrou o seu lugar apropriado dentro de todo o
sistema psíquico. Significa, também, que ela não pode resolver esse problema
por si mesma e que necessita da ajuda da consciência. Por outro lado, o herói
se encontra no mesmo estágio pois ele também não encontrou ainda o seu lugar e
também não se conhece. Então o enigma é algo que diz respeito a ambos, alguma
coisa que eles têm que resolver juntos. Este é o enigma do relacionamento
correto. O enigma nos faz lembrar a Esfinge, que é meio humana e meio animal,
como é a moça da versão norueguesa que possui a pele de troll. A questão
clássica da Esfinge no mito de Édipo trata da existência do homem, que é um
grande mistério até hoje não desvendado por nós.
Quando o problema da anima não é
compreendido, a anima, como a princesa, é uma criatura temperamental,
que fica amuada tornando-se meio quieta e rabugenta, ou feroz, tornando-se
raivosa e histérica. A anima possui um problema moral, embora ela mesma
seja amoral. Pode-se contar com ela para os problemas mais confusos e
intrincados, mas ela só é liberada quando o herói satisfaz seus objetivos e,
então, ela o guia para um nível de consciência ainda maior.
O companheiro-sombra equipa o herói com asas,
de tal forma que ele possa voar no mundo da anima. Isso significa uma
nova atitude consciente, uma certa espiritualização, pois as asas pertencem
mais a um ente da fantasia do que a um ente terreno. A habilidade para se
embrenhar no reino da fantasia é essencial para o encontro da anima. A
pessoa deve libertar-se da realidade mundana, ao menos enquanto estiver
tentando fantasiar. É necessário também um certo distanciamento, a observação
objetiva com olhos abertos e a vontade de observar sem interferir ou julgar.
O companheiro também dá ao herói uma vara, que
significa um senso crítico capaz de amenizar o efeito poderoso da anima. A
vara significa a atitude implacável que é necessária a fim de punir a anima por
seu comportamento criminoso e demoníaco. O herói deve segui-la, ficar com ela
e ainda criticar o seu lado negativo. Embora ele bata nela com a vara, ele não
pode ser muito violento senão ela cai na terra.
A princesa, como o inconsciente, faz parte da
natureza e, portanto, não há discriminação. O consciente supera-a quanto à
habilidade de se adaptar a situações, pois é normalmente mais frio e com mais
recursos — tem paciência e aprecia as distinções. Mas como um elemento da
natureza, o inconsciente não tem limites, é turbulento e poderoso num nível
elementar. Os impulsos do inconsciente ainda não humanizados aparecem, no mais
das vezes, como gigantes que representam as irrupções da energia instintiva.
Apesar da força que têm são facilmente enganados e, por isso, é necessário
haver sabedoria para dar direção a essa energia.
A montanha para onde Pedro e seu companheiro
voam significa o autoconhecimento e o esforço necessário para se adentrar nele.
É quando o herói precisa aprender o segredo da anima.
O espírito da montanha pertence ao arquétipo do
velho sábio que, frequentemente, mantém uma pseudo-filha cativa numa espécie de
relacionamento incestuoso. O altar sugere cerimônias religiosas secretas e isso
leva a pensar que o espírito da montanha fosse uma espécie de padre. Ao mesmo
tempo existe um aspecto ctônico pertencente ao mundo subterrâneo com respeito
a este "pai" da anima. Ele é análogo ao dragão da versão russa
do conto "As três penas" — um deus pagão e sombrio.
Frequentemente, ele impõe tarefas intransponíveis
ao herói que deseja conquistar sua "filha" e nesse conto a anima apresenta
enigmas que ele tem de desvendar. O espírito da montanha por trás da anima representa
um plano secreto, significativo, uma intenção de governá-la — o que significa que
por trás da anima está a possibilidade de um desenvolvimento interior
do herói. O "pai" da anima é a sabedoria suprema que está em
contato com a leis do inconsciente. O espírito da montanha é uma força
sobrenatural, e isso é indicado pelo altar e pelo peixe que está sendo
venerado. Ele denota uma parte do espírito e da sabedoria que foi negligenciada
no desenvolvimento da civilização. Na versão norueguesa, este espírito está
personificado por um troll que é o amante da princesa, e o troll tem
um bode, frequentemente uma forma "teriomórfica" do demônio. O troll
teme o herói, porque é somente um espírito da natureza.
A ideia de um espírito está originariamente
intimamente ligada à ideia de que a alma vagueia depois da morte. A ideia do
espírito move-se entre seus aspectos subjetivos e objetivos. Os primitivos
experíenciam o espírito como um outro ser total, uma ocorrência puramente
objetiva, enquanto nós cremos que a experiência espiritual seja subjetiva. Mas,
originalmente o espírito era — e ainda é em grande parte—um fator arquetípico
autônomo.
Nos contos de fada, o velho é comumente uma
figura auxiliar, que aparece quando o herói está em dificuldades e precisa de
conselho e direção. Ele representa a concentração do poder mental e a reflexão
dos propósitos e, ainda mais importante, introduz um pensamento genuinamente
objetivo. O símbolo do espírito tem, pois, aspectos neutros, positivos ou
negativos. Se o velho, no conto, fosse somente positivo ou negativo,
representaria metade da natureza do arquétipo do velho homem; esta conexão nos
leva a pensar no duplo aspecto de Merlin. No presente conto o velho é o animus
da anima, por assim dizer, e isso significa um espírito objetivo
atrás da anima.
Tais figuras da montanha são temas folclóricos,
como, por exemplo, Barba-roxa (Handwórterbuch des Aberglaubens — em
Berg) ou Mercúrio na alquimia (C. G. Jung, Psychology and Alchemy em
Alchemical Studies — C.W. 12,13). É uma figura que em um momento é um
menino, noutro é um velho, ora destrutiva, ora inspiradora e cujo caráter
depende da atitude do alquimista. Nos textos de alquimia o estudante sempre
procura encontrar a verdade nas entranhas das montanhas, onde ele encontra um
velho, uma figura de Hermes — Mercúrio. Este espírito é a meta e ao mesmo tempo
a inspiração para chegar até lá. Ele é chamado de "o amigo de Deus" e
tem a chave ou o livro onde guarda todos os segredos. Nos tempos antigos, os
alquimistas se perguntavam como esta figura de Mercúrio estava relacionada com
o Deus cristão e acabaram por descobrir que ele era a reflexão ctônica da
imagem de Deus.
O templo no centro de uma montanha é, também,
um tema frequente nos contos de fada europeus. Um edifício feito pelo homem na
montanha significa uma forma estruturada no inconsciente, ou seja, um desenvolvimento
cultural que foi bruscamente erigido ou tombado, sem que tenha havido uma
transição que seguisse o veio principal da cultura. Tais edificações
simbolizam uma quebra cultural violenta, uma interrupção do desenvolvimento
cultural como o corte repentino da alquimia e da visão qualitativa da natureza
(em favor de uma visão exclusivamente quantitativa), ocorrida no século XVII. Isso
deixa o desenvolvimento anterior intacto, porém como um objeto da tradição,
enquanto seu efeito se perdeu.
A anima está às voltas com o espírito da
montanha porque ele tem o segredo que pode deixá-la viver. Nossa consciência
moderna não tem deixado espaço ou vida suficiente à alma e, ainda, tenta
excluí-la. Em consequência, a anima se agarra ao espírito da montanha,
porque ela sente que ele lhe promete uma vida mais rica; e isto tem relação com
o fato de ele ser pagão e de que a cosmovisão, de certa forma, dava à anima do
homem uma chance muito maior e mais abundante de viver.
O indício de que o espírito da montanha é uma figura
não-cristã está, talvez, na época da origem desse conto. Contos de fada, como
os sonhos arquetípicos, correspondem a um processo lento, profundo e
progressivo do consciente coletivo. O significado dessas coisas leva muito
tempo para criar raízes e penetrar na consciência das pessoas, portanto pode-se
datá-las somente dentro de uma margem de mais ou menos 300 anos. Este conto
deve pertencer à era do Iluminismo, um período que mostra a aplicação dos
princípios cristãos às coisas terrenas; por exemplo, Johann Kepler deu ao mundo
a configuração da Trindade; para ele, as três dimensões do espaço eram a imagem
da Trindade, sendo a Divindade uma esfera onde o Pai era o Centro, o Filho a
superfície ou o lado exterior, e o Espírito Santo os raios. De acordo com
Kepler, todas as criaturas desejam ser esferas, ou seja, imagens de Deus. Todo
o Iluminismo pode ser descrito como baseado numa forma trinitária de pensar,
uma perspectiva incompleta, pois excluía o problema do mal e dos elementos
irracionais na natureza. Desenvolveu-se, então, uma oposição entre este novo
estilo de pensar e o estilo anterior. O novo pensar, por causa da sua
alienação do irracional e da alma foi e é tão unilateral como a forma anterior.
A fim de contrabalançar a nova tendência, os herdeiros do modo tradicional
defendiam seus dogmas ainda com maior veemência. Os dois lados se afirmaram em
campos separados e nenhum dos dois pode complementar as distorções do outro.
O primeiro enigma que o espírito da montanha
propôs à princesa a fim de blefar o herói foi pensar no cavalo branco de seu
pai. Aqui aparece uma nova figura, um rei; o pai real da anima foi
introduzido indiretamente. Como eu sugeri anteriormente, o rei, algumas vezes,
simboliza um sistema moribundo de ordem espiritual e mundana. Possivelmente, o
pai da anima pode significar uma filosofia de vida (cosmovisão) cristã e
gasta, contrastando com o Espírito renegado da montanha que desempenha um papel
paralelo como um pai. O último é uma fonte exuberante da libido que instiga o
inconsciente — o arquétipo vivo que está ameaçando porque foi reprimido. O
herói precisa ficar de guarda contra os opostos representados pelas duas
figuras de rei, que como todos os extremos opostos, são misteriosamente iguais.
O cavalo do rei é um símbolo dos poderes do inconsciente à disposição do consciente.
(Para melhor compreensão do símbolo do cavalo veja Symbols of Transformation
— C. W. 5 — de Jung.)
O segundo objeto em que a princesa precisa
pensar é a espada que representa a justiça, a autoridade, a decisão (considere
a passagem de Alexandre cortando o nó górdio), e a discriminação, tanto no
domínio da inteligência como no domínio da vontade. O tema da espada tem um
papel importante na alquimia (veja "Transformation Symbolism in the
Mass"[7]
em Psychology of Religion — C. W. 11). O dragão, por exemplo, é
transpassado pela espada, significando isto a tentativa de discriminar os
instintos de tal forma que os conteúdos inconscientes indefinidos se tornem
mais definidos. O indivíduo precisa cortar sua prima matéria com
"sua própria espada": é necessária uma decisão consciente para poder
assimilar a libido livre vinda do inconsciente. Em outras palavras, a decisão
quanto ao caminho a seguir tem que ser feita pela personalidade consciente e
esta é uma condição prévia e essencial para o desenvolvimento inconsciente
prosseguir. "Tome a espada! Trespasse o dragão!" — então alguma
coisa se desenvolverá. Na cerimônia da Missa a espada simboliza o Logos e no
Apocalipse é o Logos, particularmente, como a Palavra decisiva de Deus, julgando
o mundo. A espada flamejante (de fogo) diante do jardim do Éden é explicada na
alquimia como a cólera de Deus do Antigo Testamento. No sistema gnóstico de
Simão Mago a espada flamejante era interpretada como a paixão que separa a terra
do Paraíso. A espada tem também um sentido negativo, a saber, ser destrutiva e
eliminar as possibilidades de vida. Como o cavalo, a espada significa a libido
do inconsciente, uma parte do poder psíquico. O cavalo e a espada estão, desse
modo, interligados; porém, a espada é um instrumento feito pelo homem, enquanto
o cavalo é a libido instintiva.
O terceiro objeto é a cabeça do espírito da
montanha, algo que nenhum mortal poderia conceber. Os alquimistas gregos
afirmavam que o grande segredo estava no cérebro. Em Timon Platão
ressalta o fato de que a cabeça repete a forma circular do universo, ou de
Deus, e de maneira semelhante ela carrega os segredos divinos do homem. Esta é,
provavelmente, uma das razões que leva os primitivos a cultuarem a cabeça. Os
sabinos, por exemplo, mergulhavam um homem de "cabeça dourada"
(loiro) no óleo, e então cortavam sua cabeça e usavam-na como oráculo. Os
alquimistas denominam-se "filhos da cabeça dourada" e o alquimista
Zósimo ensinava que o Ômega (Q) é o grande segredo. Na alquimia a cabeça é
também um símbolo do SELF. Com a ajuda da cabeça temos a chave para a
solução dos problemas interiores. A cabeça foi, mais tarde, interpretada como a
essência ou o significado. Sobre a cabeça já foi dito:
"ninguém pode pensar sobre ela", significando que está além da capacidade
humana compreender seu mistério oculto. Em nossa história é a cabeça que propõe
os enigmas e, consequentemente, constitui a base de todos os enigmas da anima.
Então, a aquisição da cabeça pelo herói é a solução de seu problema, pois
possuindo-a ele é capaz de compreender seus processos psíquicos internos.
Os três objetos do pensamento — o cavalo, a
espada e a cabeça — expressam o fato de que o velho sistema consciente tem uma
certa vontade e energia, embora seu dinamismo e significado tenham retornado
para o inconsciente. Há, consequentemente, a cisão entre a energia consciente
e o significado inconsciente, que é um problema primário nos dias de hoje.
Vamos, agora, considerar os símbolos
encontrados no templo do espírito da montanha. Na primeira visita do herói há
somente estrelas e o átrio está escuro e o altar vazio. As estrelas dispersas,
ao acaso, são as sementes latentes e indefinidas da consciência.
Na segunda visita a lua está brilhando e sobre
o altar há um peixe espinhoso. A lua, um símbolo do princípio feminino,
significa a atitude feminina frente ao mundo interior e exterior, atitude de
aceitação, registrando receptivamente o que se passa. Em alguns poemas
chineses, a lua traz o repouso e a calma depois de uma luta.
O filósofo grego Anaximandro sugeriu que o
homem descendia de um peixe espinhoso. O peixe é também famoso como um símbolo
cristão; os apóstolos eram chamados de "pescadores de homens" e o
próprio Cristo (ichthys) é simbolizado pelo peixe e, assim, é celebrado na
refeição eucarística. Ambos, Cristo e o peixe, são símbolos do SELF. Concentrando
este símbolo sobre sua pessoa, Cristo o tira da natureza, aliviando-o do seu
fardo. O peixe tem também um papel importante na astrologia, pois é o signo
zodiacal que governa os primeiros 2.000 anos da era cristã. Porém, neste signo
existem dois peixes, um na vertical e um na horizontal, um sendo Cristo, e o
outro o Anticristo. Neste conto o peixe espinhoso parece representar o
Anticristo, um conteúdo inconsciente central, porém, diabólico. Esse conteúdo
do inconsciente espinhoso e escorregadio é perigoso e difícil de se abordar. Na
Idade Média pensava-se ser o peixe o símbolo do prazer terreno "por serem
tão ávidos e vorazes", ou talvez porque Leviatã era um monstro com forma
de peixe. A tradição judaica prega que o indivíduo piedoso poderá comer Leviatã
na refeição eucarística do dia do juízo final. Sendo Leviatã comida pura ele
significa a imortalidade. Note a ambivalência quanto ao peixe que, por um lado,
significa a imortalidade, como acima exposto, é também considerado como um
símbolo da lascividade e dos instintos mais básicos. Na índia também o peixe é
relacionado com o símbolo do salvador.
O deus Manu se transformou num peixe e salvou
os livros sagrados da inundação. Um "peixe redondo no meio do mar",
sem ossos e extremamente gordo é mencionado, muitas vezes, na alquimia, sendo
mais tarde este peixe relacionado com o peixe reluzente cujo contato causa
febre. A urtiga ardente — fogo no mar — foi interpretado pelos alquimistas como
sendo um símbolo do amor divino ou o fogo infernal. Estes aspectos variados
aparecem, geralmente, combinados no simbolismo alquimista. Enquanto o
cristianismo não permite qualquer casamento entre o céu e o inferno, a alquimia
fornece um pensamento paradoxal.
Psicologicamente, o peixe é um conteúdo do
inconsciente distante e inacessível, uma somatória da energia potencial
repleta de possibilidades, porém obscura. E um símbolo da libido para certa
quantidade de energia psíquica pouco específica e relativamente
descaracterizada, a direção e o desenvolvimento daquilo que não foi ainda
delineado. A ambivalência do peixe se deve ao fato de ser um conteúdo abaixo do
limiar da consciência.
Na terceira viagem o herói encontra o átrio
brilhantemente iluminado pelos raios do sol. A mudança de objetos vistos pelo
herói sugere a iluminação gradual do inconsciente até atingir o claro
discernimento. O sol da meia-noite dentro da montanha nos faz lembrar o sol da
meia-noite visto por Apuleio no reino dos mortos (Apuleius, The Golden Ass, London,
Penguin, 1950, p. 286). Não é somente o ego que traz a luz, mas o próprio
inconsciente possui uma "consciência latente". Este sol da meia-noite
é provavelmente a forma original da consciência — uma consciência mais
coletiva do que individual. As crianças e os primitivos têm a experiência
"daquilo que é conhecido" e não "daquilo que eu conheço".
A luz no inconsciente é primeiramente desfocada e difusa. Os mitos da criação
frequentemente dividem a criação em dois estágios: primeiro, o nascimento da
luz em geral e, então, o surgimento do sol. No Gênesis, por exemplo, Deus criou
a luz no primeiro dia e somente no quarto dia é que ele criou o sol e a lua.
No altar está uma roda flamejante. Na índia, a
roda é um símbolo de poder e vitória, um guia para encontrar o caminho e o
poder (Mrs. Rhys David, "Zur Geschichte des Rad Symbols em Eranos
Jahrbuch, Zurich, Rascher, 1934). É a roda da redenção que se move no
caminho certo e na linha certa, simbolizando intensificações graduais da
consciência religiosa. Nos últimos tempos a roda assume um aspecto mais
sinistro como a Roda do Renascimento, a repetição circular e absurda dos
processos vitais, da qual a pessoa tenta escapar. Em quaisquer casos, a roda simboliza
a ação autônoma do inconsciente, ou seja, do SELF. Na índia, o hindu
procura agir em harmonia de ritmo com o movimento da psique, a roda; ele deseja
manter contato com a corrente de vida que vem do SELF. Mas este pode se
tornar um fator negativo e torturador se suas intenções forem mal
interpretadas; é como se seus enigmas ficassem sem respostas. Nos tempos da
Babilônia, a roda astrológica, ou o horóscopo do nascimento, marcava o
aparecimento do círculo fatal que colocava cada homem na roda do seu próprio
destino. Homenagem seja feita a Cristo, que foi o único que pôde destruir a
roda do nascimento, oferecendo a seus fiéis um renascimento espiritual.
Novamente, na Idade Média, a Fortuna tinha uma roda, uma espécie de roleta que
expressava o trabalho indiferente do destino cego sobre os homens, que eram
prisioneiros de sua própria inconsciência. Os alquimistas diziam sempre que seu
trabalho podia ser comparado a um processo circular de contínua purificação. O
movimento circular na roda alquímica cria a unificação dos opostos: o céu
torna-se mais terreno e a terra mais celestial. Os alquimistas denominaram esta
roda cósmica, símbolo positivo, de "rotação do mundo". Até mesmo Deus
já foi simbolizado como uma roda. Wiklaus von der Flüe, o místico e santo suíço,
teve uma visão terrível de Deus, que depois representou como estando coberto
por uma roda. Desta maneira ele procurou amenizar o Deus terrível que ele tinha
experienciado, tornando-o mais aceitável e compreensível. Num dos contos do
Cáucaso Deus mata o herói numa raiva incontrolada, enviando atrás dele uma roda
incandescente que o esmaga e queima; a roda, aqui, expressa a face ameaçadora e
vingativa da divindade. Nos festivais de verão, em toda a Alemanha, as pessoas
rolam rodas incandescentes pelas montanhas abaixo. Por um lado, isso pode ser
explicado como um vestígio de um ritual que tentava manter e fortalecer o sol,
mas pode também se relacionar com o sol como símbolo da fonte do consciente e
do inconsciente.
Uma crença popular na tradição germânica fala
de almas penadas que erram como rodas incandescentes.
A roda de fogo refere-se ao movimento
espontâneo da psique que se manifesta como uma paixão ou um impulso emocional —
um brotar espontâneo do inconsciente que nos inflama. Quando isso acontece,
pode-se dizer que "as ideias giram na minha cabeça como uma roda". De
forma semelhante, a roda girando também ilustra o movimento circular e
desprovido de significado da consciência neurótica. Isto acontece quando o
indivíduo perdeu a conexão com sua vida interior e está separado do significado
pessoal de sua vida.
Em nosso conto a roda, com sua circularidade, é
análoga à cabeça do espírito da montanha — um símbolo do SELF no seu
aspecto sombrio. Um conto dos índios da América do Sul mostra bem a ideia de
como a cabeça pode ter um aspecto bastante destrutivo. Um crânio começa a rolar
de uma maneira misteriosa e estranha, adquire asas e garras e se torna
demoníaco, assassino, tomando homens como presas e devorando tudo. Isto
relaciona-se com a separação da cabeça do corpo e a autonomia da cabeça. O
deslocamento violento da cabeça, separando-a do corpo, é psicologicamente
fatal.
Em muitos contos de fada aparece o rei que necessita
da "água da vida". Isso significa que a vida perdeu seu sabor. Porém,
aqui, é a anima que perdeu o sentido da vida e em tal grau, que o
espírito da montanha aparece desesperado. O comportamento desequilibrado da
anima mostra que a relação entre o consciente e o inconsciente é falsa.
Como os vampiros, a anima e o espírito
da montanha apreciam o sangue de suas vítimas. O tema do vampiro aparece em
todo o mundo. Os vampiros são os espíritos dos mortos do Hades para quem
Ulisses precisa apresentar o sacrifício de sangue. A avidez que eles têm por
sangue é o impulso ou desejo ardente que os conteúdos do inconsciente têm de
invadir o consciente. Se esses impulsos ou desejos forem renegados eles
começam a drenar a energia do consciente, deixando o indivíduo fatigado e
apático. Esta história denota a tentativa feita por parte dos conteúdos
inconscientes de atrair a atenção da consciência a fim de obter reconhecimento
da própria realidade e das próprias necessidades e se comunicar com o
consciente.
Ao obter a cabeça, o herói integra seu
conhecimento e sua sabedoria. De posse disso, ele quebra o feitiço que foi
feito com a princesa. Embora ela esteja livre do feitiço, não foi ainda
redimida por causa da cabeça simbólica, ou seja, porque a cabeça simbólica foi
tomada somente na sua forma negativa. Cortar fora a cabeça significa separar
este conteúdo especial de seu passado coletivo inconsciente através de um
reconhecimento intuitivo de seu caráter específico. Desta maneira, o herói
integra uma parte do significado, mas não o obtém na sua totalidade nem obtém a
ligação desse significado com o inconsciente coletivo. Em outras palavras, se
por um lado ele é capaz de discriminar o fator essencial e perturbador à paz da
anima e pôr um fim nele, por outro não é capaz de perceber completamente
as raízes deste fator; ele provavelmente nunca suspeitou da presença do deus
entre os primeiros germânicos, do deus Wotan.
O aspecto positivo da cabeça, a compreensão
mais profunda possuída por ela, pode somente se tornar manifesta através de um
processo de transformação, tal como o que acontece aqui, com a anima.
A compreensão, que se pode obter
através de muitos contos de fada europeus, é grandemente aumentada e ampliada
se se leva em consideração o fundo simbólico e rico dos textos de alquimia.
Como material comparativo eles são muito úteis, porque as especulações
alquimistas foram uma tentativa de combinar a força natural pagã com a força
cristã na consciência coletiva. A espiritualização unilateral do cristianismo
trouxe, para certas classes, um desvinculamento estranho com o instinto. Como
Jung observa na Psychology and Alchemy nós somos convertidos ao
cristianismo no nível mais alto da psique, mas abaixo somos ainda completamente
pagãos. Se, por um lado, os contos de fada são, na sua maior parte,
inteiramente pagãos, alguns deles, especialmente aqueles dos últimos tempos
(como este que nós analisamos), contêm símbolos que podem ser compreendidos
como sendo uma tentativa do inconsciente para unir a tradição pagã abafada com
o campo cristão da consciência.
A grande diferença entre os escritos da
alquimia e os contos de fada é que os alquimistas não somente produziram
símbolos projetando seu inconsciente nos materiais físicos, como também
teorizaram sobre suas descobertas. Seus textos mais interessantes abordam tanto
os símbolos como também as associações semi-psicológicas ligadas a eles.
Pode-se usar as imagens da alquimia como conexões intermediárias entre as
imagens distantes dos contos de fada e o nosso mundo consciente.
Na alquimia, alguns dos estágios mais comuns
descritos no modelo de desenvolvimento — que corresponde ao refinamento da prima-matéria
para o ouro — são: o nigredo, que significa negrume do material,
quando ele é submetido ao fogo; o albedo, substância branca que, quando
lavada, torna-se prata; e o rubedo (o vermelho) que, através do esquentamento
posterior, torna-se ouro.
O albedo significa a primeira percepção
clara do indivíduo do seu inconsciente, com a possibilidade de obter uma
atitude objetiva, e o rebaixamento da consciência, necessário para se obter
tais estágios. O albedo significa algo frio, uma atitude fria e
destacada, um estágio onde as coisas parecem remotas e vagas como a luz do
luar. Consequentemente, diz-se que o feminino e a lua são os governantes do
estágio albedo. Também significa uma atitude receptiva para o
inconsciente. A limpeza é uma forma de se chegar a bons termos com a sombra,
enquanto no estágio anterior, o nigredo, há a confrontação terrível com
a sombra, que é uma tortura e que deve ser seguido trabalhando-se na
diferenciação da parte inferior da psique. Os alquimistas chamam isso de
"trabalho duro". Com o progresso do albedo a força principal é
aliviada. Então, um simples esquentar muda o albedo para rubedo, que
é governado, por sua vez, pelo sol e que anuncia um novo estado de consciência.
O sol e a lua, o escravo vermelho e a mulher branca, são opostos e
frequentemente se casam, significando a união da consciência objetiva com a anima,
do logos masculino com o princípio feminino interior. Graças a esta união,
mais e mais a energia é gradualmente depurada para a consciência, trazendo uma
conexão positiva com o mundo, a possibilidade de uma atividade criativa e a
capacidade de amar.
A imagem do espírito da montanha sugere
Saturno, que simboliza na alquimia um contexto sombrio, baixo, não pensado, que
precisa ser trazido até a consciência, a cabeça separada. Saturno é a cabeça, a
coisa que gira ou "a água destrutiva". (Zósimo chama Saturno de ômega
ou cabeça.) Este espírito dinâmico da montanha não parece ser um deus, mas um
sacerdote ou um acólito devoto de um deus. Ele se assemelha à roda. Atrás dele
deve estar a figura não antropomórfica do SELF. A devoção no templo da
montanha é perigosa porque ela é governada pelo inconsciente coletivo.
Como mencionei anteriormente, nos países nórdicos
Mercúrio era parcialmente identificado com Wotan, como pode ser verificado nos
contos de fada. Com a supressão da alquimia e o declínio do folclore, as
pessoas se desvincularam das conexões com os deuses pagãos dentro dos seus
inconscientes. Antes disso acontecer era na alquimia, no folclore e na
astrologia que os deuses pagãos tinham espaços onde podiam viver; esses eram
seus últimos redutos.
O espírito da montanha não é redimido, somente
a anima. Então, o problema mais profundo permanece não resolvido; desde
o século XVII constata-se a presença contínua de Wotan, esperando ser revivido
na psique germânica.
Em nosso conto, apesar de o herói ter decifrado
os enigmas e cortado a cabeça do espírito da montanha, o perigo não foi ainda
superado. Na noite do casamento, o herói precisava mergulhar a princesa três
vezes na água até que ela restaurasse sua própria forma. Na versão norueguesa,
ela tem que se livrar de sua pele troll mergulhando no leite. Nos
mistérios da antiguidade, o leite tinha um papel proeminente como a nutrição
para os iniciados, "os nascidos novamente". Nas orgias da montanha
de Dionísio, os Manadas bebiam leite e mel, soltando-se livremente da terra.
Leite e mel eram também a comida para os renascidos nos primeiros batismos
cristãos. Num salmo de Salomão, o leite é exaltado como um sinal de amizade e
de bondade de Deus. São Paulo dizia que os novos cristãos eram crianças bebendo
o leite da nova doutrina. O leite é sinal do renascimento divino no homem. Nos
sacrifícios gregos antigos, o leite era oferecido para os deuses ctônicos e
para os mortos recentes. Nestes casos, o leite é catártico. Muitas superstições
alemãs falam de demônios obstrutivos que enfeitiçam o leite tornando-o azul, e
muitas delas chegam mesmo a prescrever receitas contra tais feitiços. Portanto,
lavar a anima no leite significa livrá-la dos elementos demoníacos tanto
quanto livrá-la de sua ligação com a morte.
Peles de animais e de trolls são
evidências de uma natureza não redimida. A anima pode vestir roupas
sujas e na linguagem da alquimia ser "uma pomba escondida no chumbo".
Então, novamente, lavar ou limpar nem sempre é feito na hora certa. Isso
significa que os conteúdos psicológicos que se desenvolvem incompletamente
aparecem como coisas desagradáveis quando lavados ou eliminados, como, por
exemplo, o animus no seu estado negativo. Então os impulsos positivos
contidos no inconsciente continuam não realizados, não percebidos e não
somente se disfarçam como também poluem os instintos, materializando-se em
impulsos desagradáveis, como, por exemplo, as aspirações espirituais de um
homem que podem se expressar no desejo pela bebida. De fato, os sintomas mais
neuróticos são como peles de trolls e escondem conteúdos positivos
importantes do inconsciente.
Na versão alemã, a anima emergia do
primeiro mergulho como um corvo e do segundo como uma pomba, de forma que
demonstra um elemento volátil em si mesma. Ela frequentemente aparece como um
pássaro nos contos de fada, porque representa um conteúdo incontrolável,
caprichoso e evasivo.
No mundo cristão, o corvo é visto como uma
representação do pecado e do demônio (veja Handwõrterbuch des deutschen
Aberglaubens). Na antiguidade, por outro lado, o corvo pertencia a Apoio,
deus do sol; na alquimia simboliza o nigredo (negrume) e os pensamentos
melancólicos. O velho na montanha com um corvo é personagem frequente nos
contos de fada.
A pomba, por outro lado, é o pássaro de Vênus.
No Evangelho de João ela representa o Espírito Santo e na alquimia é o albedo.
Os dois aspectos da anima precisam ser distinguidos, sua
natureza-de-pássaro pertencente ao outro mundo e o lado da mulher relacionado
com esse mundo. A natureza de pássaro, volátil, evasiva, precisa ser liberada
ou separada pela ablação do banho. Compare isso com a ordem dada ao herói de
que ele deveria vender seu próprio filho, ou seja, que ele precisaria estar
pronto, apto e desejoso de separar seu consciente do inconsciente.
O banho é uma espécie de batismo, uma transformação
através do intermediário do inconsciente. Isso acontece quando o herói empurra
a anima para o inconsciente, o que significa uma atitude crítica diante
do que é emergente e está alerta no consciente. Tal atitude é necessária porque
a anima e as reações que ela induz num homem, embora aparentemente
humanas, são frequentemente enganosas. Por esta razão, o homem deve sempre
questionar uma inspiração da anima: "Este sentimento é de fato
meu?", pois o sentimento de um homem pode ser lírico e pode voar como uma
cotovia ou ser sanguinário como um falcão — uma atmosfera ou um humor não relacionados
com o estado humano. O banho no leite do conto norueguês tem este propósito, ou
seja, de purificar a anima da maldição que pesa sobre ela, sendo este um
ato de discriminação.
O último ato do companheiro espiritual
refere-se ao processo de purificação da anima. Quando o casamento do
herói com ela é consumado, o espírito da montanha se esvai e torna-se
inteiramente espiritual. Ele é mais do que uma figura de sombra: é um espírito
criativo e inspirador, mas que só se torna eficaz quando a anima perde
suas qualidades demoníacas; é somente então que ele pode se tornar ele-mesmo.
Com a consumação do casamento do herói com sua anima
a tarefa da sombra se completou, como ocorreu também no Príncipe Ring. Lidar
com a sombra, portanto, não é aqui, um fim essencial; mais do que isso, é
descobrir a finalidade interior autêntica, que faz com que a oposição entre o
bem e o mal não ocupe mais o centro do palco.
A sombra feminina
Não são muitos os contos de fada que tratam da
heroína e de sua sombra. O modelo comum é o tipo de conto que fala das irmãs
boas e más, as primeiras altas e regiamente recompensadas, enquanto as outras
severamente punidas. Uma das alternativas que surgem é a da menina que é
maltratada por sua madrasta que a castiga e rejeita dando-lhe todos os serviços
mais grosseiros da casa. Estas duas figuras conduzem igualmente à interpretação
da anima em dois aspectos, do ponto de vista masculino. A sombra
feminina raramente aparece nos contos de fada, porque as mulheres não são tão
agudamente separadas de suas sombras. Tal separação na mulher é comumente um
efeito do animus, estando a natureza e o instinto mais próximos do que
nos homens. A psique feminina, como um pêndulo, tem a tendência de ir do ego
para a sombra e voltar novamente, como a lua se move de lua nova para lua cheia
e volta para a lua nova. Há um conto que parece ser representativo do problema
da sombra feminina. Aqui, como ocorre com frequência nos contos de fada, o
problema da sombra é interligado com o do animus.
A
cabeluda
"Era uma vez um rei e uma rainha, que não
podendo ter filhos adotaram uma menininha. Um dia, quando ela estava brincando
com sua bola de ouro, apareceram uma mendiga e sua mãe. O rei e a rainha
quiseram afastá-las, porém a menina pobre disse que sua mãe sabia como tornar a
rainha fértil. Depois de muito vinho, a mulher mendiga foi persuadida a dizer o
que a rainha tinha que fazer. Disse então a mulher que a rainha precisava
banhar-se em duas tinas antes de se deitar e jogar a água das tinas debaixo da
cama; na manhã seguinte, ela encontraria duas flores sob a cama, uma bela e uma
feia e ela tinha que comer somente a bela.
Na manhã seguinte, quando a rainha comeu a flor
mais bonita e brilhante, essa era tão gostosa que ela não resistiu experimentar
a flor preta e feia. Quando chegou a hora de dar à luz, sua filhinha era cinza
e feia e chegou montada num bode, trazendo na mão uma grande colher de madeira
e podendo falar desde o primeiro momento. Seguiu-a uma filha mais nova
estranhamente bela. A feia foi chamada de "cabeluda", pois sua cabeça
e parte de seu rosto eram cobertos de tufos de cabelos. E ela se tornou muito
amiga de sua irmã mais nova.
Numa noite de Natal, o barulho da festa que
faziam as mulheres troll chegou até elas e a cabeluda saiu com sua
colher para espantar as mulheres. A princesa bonita entreabriu a porta e foi
olhar o que ocorria, quando uma mulher troll tirou sua cabeça fora e pôs
no lugar uma cabeça de bezerro.
A cabeluda, imediatamente, pegou sua irmã e
foram para um navio que as levou para a terra das mulheres troll. Encontrando
a cabeça da irmã sob uma janela, ela a apanhou e correu para o navio, com as
esposas troll correndo atrás dela. Chegando ao navio, ela trocou a
cabeça da irmã novamente.
Aí, as duas aportaram numa terra onde moravam
um rei viúvo e seu filho único. O rei logo quis casar com a princesa bonita,
mas a cabeluda propôs uma condição: isso só aconteceria se o príncipe se
casasse com ela. O rei, apesar dos protestos do príncipe, que não queria casar
com a cabeluda, fez todos os arranjos para o casamento dos dois.
No dia do casamento, a cabeluda falou ao
príncipe que lhe perguntasse por que ela montava num bode tão desajeitado.
Quando ele assim o fez, ela respondeu dizendo que aquele animal era, de fato,
um lindo cavalo e, então, o bode transformou-se num magnífico cavalo. Da mesma
forma sua colher de madeira transformou-se num leque de prata, seu topete cabeludo
transformou-se numa coroa de ouro e ela mesma assumiu uma forma linda, muito
mais bonita e radiante que sua irmã. A cerimônia do casamento acabou por ser um
evento muito feliz, além das expectativas de todos."
("Zottelhaube", da Nordische
Volksmãrchen, vol. II.)
A assimilação do mais "alto" e do
mais "baixo" é a mesma que no "Príncipe Ring". Novamente a
sombra foi redimida por ter-se tornado consciente, e parece possível concluir
que a sombra traz o mesmo problema tanto para o homem como para a mulher.
O tema do rei e da rainha sem filhos geralmente
é uma predição do nascimento miraculoso de uma criança muito especial. Em si
mesma a esterilidade demonstra que a conexão com a terra criativa da psique foi
quebrada, que um abismo existe entre os valores e ideias da consciência
coletiva e o limbo fértil, escuro e inconsciente dos processos arquetípicos de
transformação.
As duas figuras principais, a princesa e a
cabeluda, podem ser consideradas como paralelas a Ring e Snati-Snati. Nós
compreendemos Ring como sendo um impulso no inconsciente coletivo com
tendências a construir uma nova forma de consciência. A cabeluda, entretanto,
parece representar um impulso para restaurar a conexão afetiva com as
profundezas do inconsciente e com a natureza, pois a tarefa da mulher na vida é
renovar os valores afetivos.
Antes do nascimento dessas duas meninas a
rainha faz o máximo para remediar a situação, adotando uma menina. Esta decisão
muito positiva evoca—como mágica, por analogia — uma reação fertilizadora na
matriz do inconsciente. Através da bola de ouro, que pode ser tomada como o
símbolo do SELF, a criança adotada atrai uma criança pobre e sua mãe. A
função do símbolo do SELF é unir os aspectos sombrios e luminosos da
psique e, neste caso, a natureza materna está constelada: a mulher mendiga
personifica o conhecimento instintivo que pertence à natureza.
O conselho é bastante claro: a rainha teria que
jogar a água que se banhou debaixo da cama e comer uma das flores que ali
cresceria. Guardar a água suja dentro do quarto provavelmente significa que a
rainha não poderia rejeitar o seu aspecto obscuro, mas deveria aceitá-lo na sua
própria intimidade, pois na água suja — sua sombra — reside também sua própria
fertilidade. Este parece ser o segredo maternal da velha mulher, tão antigo
quanto o mundo.
A flor brilhante e a flor sombria antecipam as
naturezas opostas das duas filhas. Elas significam suas almas ainda não
nascidas e também simbolizam o sentimento. Ao comer as duas flores, ao invés de
só uma, a rainha revela a necessidade de integrar a totalidade e não unicamente
o aspecto mais sedutor do inconsciente e, fazendo isso, ela comete também o
pecado da desobediência —uma beata culpa (uma culpa afortunada,
abençoada) — que traz novos problemas, mas com eles uma realização superior.
Isso é semelhante ao tema onde Ring, abrindo a porta da cozinha proibida,
encontra Snati-Snati.
A cabeluda, como a sombra da nova forma de
vida, tem toda a exuberância e iniciativa. O fato de ela crescer tão
rapidamente mostra suas qualidades demoníacas e sua natureza próxima dos
espíritos; o bode que ela monta é um animal de Thor e sugere que a essência da
cabeluda pertence ao mundo pagão e ctônico de Dionísio. A colher caracteriza-a
como uma bruxa, que tem sempre algo para cozinhar, que levanta uma massa de
emoções a fim de cozê-las. A pele cabeluda que ela tem é um sinal dos traços
animais que existem nela e também um símbolo de possessão do animus. Em
certos contos, a heroína veste um capuz peludo quando é perseguida pelo seu
pai, indicando isto uma regressão ao nível animal devido a um problema do animus.
E como se uma inconsciência do tipo animal estivesse presa à cabeluda, o
que implica uma possessão de emoções e impulsos animais. Isto, entretanto, é
somente uma aparência exterior, exatamente como fora com Snati-Snati.
Nos países nórdicos, a camada pagã do
inconsciente está ainda muito viva e, consequentemente, representa-se as trolls
em seu festival de verão no Natal. Quando a princesa curiosa
inadvertidamente põe sua cabeça fora da porta, as trolls cortam-na e
colocam no lugar uma cabeça de bezerro. As próprias trolls, frequentemente,
aparecem com rabo de vaca nos contos folclóricos dos países nórdicos e podemos
concluir, a partir desse transplante, que a princesa é por elas assimilada;
ela, literalmente, perde a cabeça e torna-se possuída pelos conteúdos do
inconsciente coletivo. Ela sempre aparece como sendo completamente boba, gaúche
e incapaz de expressar-se. Isto acontece porque toda sua vida afetiva
caiu, sob o controle dos poderes obscuros do inconsciente, os eventos,
portanto, ocorrendo no seu mundo interior, o que não consegue exteriorizar.
A cabeluda é capaz de perseguir as trolls e
redimir sua irmã desse estado, porque, até certo ponto, ela compartilha da
natureza das trolls. Da mesma forma como Snati-Snati sabia melhor do que
Ring vencer os gigantes, a cabeluda é o adversário designado para as trolls.
Depois de a cabeluda redimir sua irmã, a
história dá uma virada inesperada — e ao invés de navegarem para casa, elas
continuam a viagem até um reino desconhecido onde não havia mulheres — somente
um rei viúvo e um príncipe. Na história, a primeira corte tinha muitas mulheres
e um rei estéril, enquanto no segundo reino encontramos os elementos que
faltavam no primeiro. Os dois reinos são como duas partes compensatórias da
psique, incompletas em si mesmas, que formam uma totalidade quando colocadas juntas.
Torna-se, então, natural, quando o rei propõe casar-se com a princesa, que a
cabeluda peça a mão do príncipe. O casamento duplo constitui-se no que Jung
chamou de "casamento quaternário", o símbolo dos quatro lados do SELF
(veja CG. Jung, The Psycology
ofthe Transference em "The Practice of Psychoterapy — C. W. 16).
A cabeluda redime-se não somente pelo casamento
da irmã (novamente como Snati-Snati), mas por certas questões que ela induz o
príncipe a fazer. Isto relembra a saga de Parsifal, na qual Parsifal
primeiramente se omite, não fazendo a pergunta redentora; a consciência sendo
muito jovem não está alerta para aquilo que cresce do inconsciente para a luz.
A cabeluda é o fator forte e dinâmico do inconsciente que compele a consciência
a perceber aquilo que se esforça em nascer. Tem-se, aqui, um exemplo muito
bonito da natureza do próprio inconsciente esforçando-se para equipar o ser
humano a fim de que esse possa alcançar um nível de consciência novo e mais
elevado.
O impulso tem seu ponto de partida na sombra e
é gradual e completamente humanizado.
A estrutura geral deste conto de fada é
interessante se considerarmos a questão dos sistemas quaternários. Nós temos
dois grupos de quatro pessoas. O primeiro é o rei, a rainha, a filha adotiva e
sua amiga pobre, e nesse sistema as relações não são harmoniosas. A intervenção
de ajuda da mulher mendiga traz o segundo par de meninas, a cabeluda e a
princesa bonita, que se colocam no lugar das duas anteriores. A interferência
das trolls indica que esse quarteto ainda é muito artificial e está
muito distante do inconsciente mais profundo. Quando a princesa e a cabeluda
casam com o rei e o príncipe, respectivamente, eles fazem emergir um novo
quarteto. Este novo grupo parece ser um modelo representativo do SELF, como
o grupo de quatro pessoas no final do Príncipe Ring. Aqui, novamente, o conto
de fada abre-se com um símbolo de SELF e culmina no símbolo do SELF, representando
então o processo eterno dos núcleos da psique coletiva.
Os poderes do animus
O animus talvez seja menos conhecido do
que a anima na literatura, mas no folclore nós encontramos muitas
representações bastante claras deste arquétipo. Os contos de fada, também,
apresentam modelos de como uma mulher pode lidar com esta figura interior,
contrastando com a maneira do homem lidar com a anima. E isso não é
simplesmente uma inversão. Cada passo no processo de conscientização do animus
é caracterizado de maneira bastante diferente. O próximo conto é um bom
exemplo disso.
O rei
Barba-de-tordo
"Era uma vez um rei cuja filha muito
bonita desprezava e caçoava de todos os seus pretendentes, não aceitando nenhum.
Um deles tinha um queixo muito pontudo e, caçoando, ela o apelidara de
'Barba-de-tordo'; ele ficou conhecido, desde então, como o rei 'Barba-de-tordo'.
Desesperado, o rei declarou que entregaria sua filha ao primeiro mendigo que
passasse. E ele assim o fez, dando a princesa a um pobre violinista que
apareceu na corte e atraiu o rei com sua música". (Numa outra versão dessa
história, o que atrai o rei é uma roca de ouro.)
"A princesa torna-se a esposa do
violinista, mas é incapaz de fazer qualquer trabalho doméstico e seu marido
fica muito descontente com ela. Ele é quem cozinha, lava a louça, costura,
enfim, faz todas as tarefas que ela não consegue fazer. Finalmente, ele a
envia ao mercado para vender louça. Certa manhã, um hussardo (soldado,
cavaleiro do século XV) bêbado foi com o cavalo em cima da louça, quebrando
muita. O marido, muito bravo, culpou-a pela perda; e disse que ela não servia
para nada mesmo, enviando-a para uma corte vizinha a ser empregada na cozinha.
Uma noite, furtivamente ela observava um baile
de casamento do príncipe daquela corte. Os empregados lhe jogam pedaços de
comida que ela esconde nos seus bolsos. De repente ela é vista pelo príncipe
que a convida para dançar; ela enrubesce e tenta fugir deixando cair a comida.
Ele a apanha e revela ser o rei 'Barba-de-tordo'. Conta, então, que se
disfarçou de marido mendigo e também de hussardo, para que ela se tornasse
mais humilde e quebrasse o orgulho que tinha."
(Contos de Grimm. London,
Routledge, 1948, p. 244.)
O nome "Barba-de-tordo" tem afinidade
com "Barba-azul", mas o "Barba-azul" não é mais que um
assassino; não pode transformar suas esposas e nem mesmo se transformar. Incorpora
aspectos ferozes e mortais do animus na sua forma mais diabólica; dele,
a única saída é a fuga. Essas espécies de animus são frequentemente
encontradas na mitologia. ("Fitcher's Bird" and "The Robber
Bridegroom" - Ibid.)
Esses contos ressaltam de maneira bastante
clara uma diferença importante entre a anima e o animus. O homem,
nas suas qualidades primitivas de caçador e guerreiro, é levado a matar, e é
como se o animus, sendo masculino, carregasse essa propensão. A mulher,
por outro lado, está a serviço da vida e a anima liga o homem à vida.
Nos contos onde existe a figura da anima, esta
raramente aparece sob um aspecto inteiramente mortal; pois ela é, acima de
tudo, o arquétipo da vida para o homem.
O animus na sua forma negativa parece
ser o oposto. Ele retira a mulher da existência e mata a vida que existe nela.
Está ligado a espectros e ao mundo da morte. De fato, ele pode mesmo aparecer
como a personificação da morte, como no conto francês da coleção de Diederich
que se segue:
'A esposa do Espírito da Morte'
"Uma mulher que rejeitava todos os
pretendentes aceita o Espírito da Morte quando ele aparece. Enquanto ele sai
para trabalhar, ela vive no castelo. Um dia, o seu irmão vai visitar os jardins
do castelo do Espírito da Morte e eles passeiam juntos. O irmão salva sua irmã
e trazendo-a de volta para a vida, ela descobre, então, que esteve ausente
durante 5.000 anos."
(Franzósische Volksmarchen, p.
141.)
Uma variação cigana com o mesmo título conta o
seguinte:
"Um viajante desconhecido chega a uma cabana
afastada onde vive uma moça solitária. Ele recebe comida e abrigo por alguns
dias e apaixona-se por ela. Eles se casam e, uma noite, ela sonha que ele
estava branco e gelado e que era o Rei dos Mortos. Ele, então, é obrigado a
deixá-la para cumprir sua missão macabra. Quando, finalmente, ele revela que de
fato é o Rei dos Mortos, ela morre de susto."
(Zigeunermàrchen, p.
117.)
Este é o efeito desastroso que o animus negativo
pode ter sobre uma mulher: ela se sente torturada, separada e tolhida de toda
participação da vida e incapaz de continuar a existir.
Em sua tentativa de prejudicar as conexões da
mulher com o mundo exterior o animus pode tomar o aspecto de um pai. No
conto de "O rei Barba-de-tordo" aparecem somente um rei e sua filha,
e a inacessibilidade da princesa, recusando todos os seus pretendentes, está,
evidentemente, relacionada com o fato de que ela vive só com seu pai. Sua
atitude crítica, jocosa e sarcástica em relação aos seus pretendentes é típica
de uma mulher governada por seu animus. Tal atitude desfaz em tiras todo
o relacionamento humano.
Aparentemente é a arrogância da filha que
provoca a exasperação do pai, mas, de fato, na maior parte das vezes, o pai
prende a filha a si mesmo, colocando obstáculos no caminho dos pretendentes. Pode-se
depreender esta atitude no conto e reconhecê-la na ambivalência típica dos pais
que não deixam seus filhos viver e que, ao mesmo tempo, não têm paciência com o
fato de eles serem incapazes de se lançarem para a vida. Frequentemente, as
mães agem com os filhos da mesma forma que os pais com suas filhas. Enfim, o
complexo-do-pai agindo sobre a filha procura injuriar o pai poderoso levando-a
a escolher sempre moços inferiores.
Em outro conto o animus aparece como um
velho que mais tarde se torna um jovem. Essa é uma maneira de dizer que o
homem-velho — a imagem de pai — é somente um aspecto temporário do animus, e
que atrás dessa máscara existe um homem jovem.
Um exemplo mais evidente do efeito de
isolamento do animus é encontrado num conto em que o pai tranca sua
linda filha num cofre de pedra. Então, um jovem pobre salva-a e eles fogem
juntos.
Num conto turquestão, Zauberross, o pai vende
sua filha a um espírito mau, Div, em troca de uma resposta a um enigma. Num
conto dos Bálcãs, "A moça e o vampiro" (Balknmárchen, ibid.), um
jovem, que é vampiro, atrai uma moça colocando-a numa cova de cemitério. Ela
foge sob a terra até chegar a um bosque e pede a Deus que lhe dê uma caixa onde
ela possa se esconder. Para se proteger contra o animus, a moça tem que
sofrer o aprisionamento.
A ação ameaçadora do animus e a reação
defensiva da mulher contra ele estão sempre juntas e evocam o duplo aspecto da
atividade do animus. O animus pode paralisar ou tornar a pessoa
muito agressiva. As mulheres tendem a se tornar masculinas e dominadoras ou,
ao contrário, tendem a ser distraídas como se não estivessem plenamente
presentes — talvez com maneiras charmosas e femininas, mas tudo como se
estivessem parcialmente adormecidas — ocorre, então, que tais mulheres fazem viagens
maravilhosas com seu animus-amante e vivem submersas nesse amor com o animus,
numa espécie de "sonhar-acordado", sem ter disso clara
consciência.
Voltando à história, um príncipe descobre a
caixa com a moça dentro, liberta-a e casam-se. A caixa e o cofre de pedra são
representações do estado de ruptura com a vida, que assim se mantém enquanto a
mulher for possuída pelo animus. Inversamente, se uma mulher tem um animus
agressivo e tenta agir espontaneamente, é sempre o animus que
aparece nas suas ações. Algumas mulheres, entretanto, recusam-se a ser
agressivas e difíceis e, assim fazendo, não deixam que ele se manifeste. Elas
não sabem como lidar com o animus e, a fim de mantê-lo controlado, são
rígidas, convencionalmente corretas e frias, prisioneiras de si próprias. Isto
é também uma passividade, mas que vem da reação da mulher contra o animus.
Num conto norueguês uma mulher é obrigada a
vestir um casaco de madeira. Um vestuário tão protetor, feito de tecido vivo,
duro, ilustra a rigidez em relação ao mundo, como uma armadura defensiva que se
torna um peso. O tema da queda numa armadilha, como ocorreu no episódio da
queda de Ring no barril atraído pela feiticeira na praia, é ao mesmo tempo um
ato de feitiço e de proteção. Do ponto de vista histórico, o animus, como
a anima tem uma forma pré-cristã. "Barba-de-tordo" —
(Drosselbart) é um nome para Wotan, como Rossbart — "Barba-de-cavalo"
— também o é.
Em "O rei Barba-de-tordo" o destino é
quebrado pela exasperação do pai que faz com que dê sua filha a um homem pobre.
Em contos paralelos a princesa é seduzida pela bela canção entoada pelo mendigo
e, numa versão nórdica, o mendigo a encanta com uma roca de ouro. Em outras
palavras, o animus exerce uma atração fascinante sobre ela.
A atividade de fiar tem relação com os
devaneios e desejos. Wotan é o senhor dos desejos e o espírito de tais
pensamentos mágicos. "O desejo faz girar as rodas do pensamento."
Tanto a roca como o ato de fiar são próprios de Wotan e em nossa história a
moça tem que fiar para ajudar seu marido. O animus, então, se apossou de
sua própria atividade feminina. O perigo implícito que existe quando o animus
esvazia uma atividade feminina é a perda da capacidade da mulher de
refletir por si mesma. Isso acarreta uma lassidão e, ao invés de pensar, ela
preguiçosamente fia seus sonhos acordada e desfia suas fantasias de desejos ou
ainda trama complôs e intrigas. A filha do rei no conto do
"Barba-de-tordo" caiu nesta atividade inconsciente.
Um outro papel que o animus desempenha é
o do servo pobre. Sua galanteria inesperada, sob esse disfarce, aparece num
conto siberiano:
"Uma mulher vivia só e não tinha senão um
empregado. O pai dessa jovem morreu e esse servo tornou-se intratável.
Entretanto, ele se dispôs a matar um urso e
fazer um casaco de pele para ela. Depois de ter feito isso ela lhe pediu para
fazer outras coisas, tarefas cada vez mais difíceis. E, em cada uma das vezes,
ele consegue fazê-las se mostrando à altura das tarefas solicitadas. E, ainda
que ele parecesse pobre, na verdade era um homem rico".
O animus parece ser pobre e geralmente
não revela os grandes tesouros do inconsciente que estão à sua disposição. No
papel de um homem pobre ou mendigo, ele induz a mulher a acreditar que ela não
tem nada dela mesma. Esse é o castigo pelo preconceito em relação ao
inconsciente — uma pobreza duradoura da vida consciente, resultando num
ceticismo e numa autocrítica sem fim.
Depois de o violinista casar com a princesa ele
lhe faz lembrar da riqueza do "Rei Barba-de-tordo" e ela se arrepende
amargamente de tê-lo recusado. É uma característica de mulher possuída pelo animus
de se remoer de remorso pelas falhas cometidas, por suas omissões.
Lamentar-se sobre o que podia ter sido feito é um falso sentimento de culpa e é
completamente estéril. Mergulha-se no sentimento desesperador de ter
destruído, em última análise, os próprios projetos e de ter perdido sua vida
por completo.
A princípio a princesa é incapaz de fazer os
serviços domésticos, e isto é um outro sintoma da presença do animus —
que se traduz em apatia, inércia e num olhar fixo e glacial. Isso pode muitas
vezes parecer passividade feminina, mas uma mulher neste estado não é
receptiva; está drogada pela inércia do animus e é prisioneira num cofre
de pedra.
Vivendo numa choupana, a princesa precisa fazer
os trabalhos domésticos e, ainda, vender louça, o que a humilha e aumenta seu
sentimento de inferioridade. Como uma forma de compensação para suas ambições
desmesuradas, o animus frequentemente obriga a mulher a viver de uma
maneira bem abaixo de sua real capacidade. Se ela é incapaz de se ajustar
àquilo que não coincide com seus nobres ideais, então ela se entrega aos
trabalhos mais baixos por puro desespero. Esta é uma forma de pensar por
extremos: "Se não posso casar com um deus, então eu caso com um mendigo
qualquer". Ao mesmo tempo persiste um orgulho ilimitado que se nutre de
uma vida imaginária secreta, na qual ela sonha de maneira apaixonada com fama e
glória imensas. Humilhação e arrogância se entrelaçam. Esta atividade inferior
também é uma espécie de compensação para persuadir a mulher a se tornar
feminina novamente.
O efeito da pressão do animus pode levar
a mulher a uma feminilidade mais profunda, fazendo com que ela aceite o fato de
que está possuída pelo animus e que empreenda algo a fim de trazer o seu
animus para a realidade. Se ela lhe fornece um campo de ação — ou seja,
se ela assume algum campo de estudo em especial ou faz algum trabalho masculino
— isto pode mantê-lo. Ao mesmo tempo seu sentimento será revivificado e ela se
voltará às atividades femininas. A pior condição é quando a mulher tem um animus
muito poderoso e sequer se permite vivê-lo; então, ela é levada por
opiniões preconcebidas do animus e quanto mais evita qualquer espécie
de trabalho que lhe pareça de alguma forma masculino, menos ela se torna
feminina.
A princesa falha em todas as suas tarefas e por
isso seu marido a envia para o mercado, como vendedora de potes de barro. Os
recipientes são símbolos femininos e ela é levada a vender sua feminilidade a
um preço baixo, muito barato e de maneira coletiva. Quanto mais a mulher for
possuída pelo animus, mais ela se sente estranha diante dos homens e
mais dolorosos são seus esforços para estabelecer um bom contato afetivo. Embora
ela possa compensar tomando a iniciativa nas relações eróticas, não pode haver
nenhum amor ou paixão genuína entre eles. Se ela realmente tem um bom
relacionamento com homens, ela não precisa ser tão reivindicativa. Ela age sob
a vaga impressão de que algo está errado e tenta desesperadamente compensar o
que foi perdido por causa da imposição do animus que a afasta dos
homens. Isso é como caminhar cegamente para uma nova catástrofe. Um novo ataque
do animus fatalmente ocorrerá; e na história ocorre: um soldado bêbado
quebra todos os seus vasos. Isto simboliza uma explosão emocional brutal. O animus
selvagem e desgovernado esmaga tudo, mostrando claramente que tal exibição
de sua natureza feminina não é válida.
A vida com o marido mendigo chega a uma humilhação
final, ocorrendo quando a moça espreita através da fresta da porta o esplendor
da corte e a festa de casamento do rei "Barba-de-tordo". Observar
através da fresta da porta é interpretado no I Ching como sendo uma
perspectiva muito estreita e muito subjetiva. Limitada por isso, a pessoa é
incapaz de ver o que realmente tem. A inferioridade de uma mulher que pensa que
precisa admirar os outros e que nutre um ciúme secreto em relação a eles
significa que ela é incapaz de assumir seu próprio valor.
Por ter fome, ela aceita migalhas que lhe são
dadas pelos empregados e, então, para sua grande vergonha, sua inferioridade e
avidez são expostas quando a comida cai no chão. Ela quer viver de qualquer
modo e assume que não pode obter o que é de seu direito. A filha de um rei
aceitar migalhas jogadas pelos empregados? É passar das medidas do desprezo por
si mesmo. Então ela sente-se envergonhada e tenta escapar, mas esta era a humilhação
necessária, pois, como pudemos ver na história, a heroína toma consciência de
que, afinal, ela é filha de um rei. E é somente então que ela entende que o rei
"Barba-de-tordo" é de fato o seu marido.
Nesta história o animus — o rei
"Barba-de-tordo", o soldado grosseiro e o marido mendigo — assume
três papéis que são conhecidos como os do deus Wotan. Conta-se que ele é o
homem que cavalga num cavalo branco conduzindo os selvagens cavaleiros da
noite, os quais, algumas vezes, carregam suas cabeças nos seus braços. Esta
lenda que ainda se ouve vem da ideia de que Wotan é o líder dos guerreiros
mortos e os conduz para Valhalla. Como são espíritos maus eles ainda caçam nos
bosques, e olhar para eles é fatal; depois de mortas fazem as pessoas entrarem
nas suas fileiras.
Frequentemente Wotan aparece como um mendigo,
um desconhecido errante da noite e sempre sua face é parcialmente escondida,
pois ele tem um só olho. Um estranho aproxima-se, entra, diz algumas palavras e
sai — depois percebe-se que ele era Wotan. Ele se nomeia o dono da terra e,
psiquicamente, isso é verdade: o proprietário desconhecido da terra (germânica)
é ainda o arquétipo de Wotan. (Veja
"Wotan", em Civilization in Transition, de Jung, C.W. 10.)
O nome de Wotan evoca um outro de seus
atributos: sua forma (teriomórfica) animal é o cavalo. É o Sleipnir, o
cavalo de oito patas, branco ou preto, veloz como o vento. Isso indica que, se
por um lado, o animus é uma espécie de espírito arcaico, ele está também
ligado à nossa natureza instintiva e animal. No inconsciente, espírito e
instinto não são opostos. Ao contrário, frequentemente ocorre que nossas
sementes espirituais se manifestam em primeiro lugar por um impulso da libido
sexual ou por impulsos instintivos e somente mais tarde desenvolvem seu outro
aspecto. Isso decorre do fato de elas serem geradas pelo espírito da natureza,
pelo sentido inerente de nossa estrutura instintiva. Nas mulheres o espírito
ainda não se tornou diferenciado e retém, portanto, suas características
emocionais arcaicas e instintivas, razão pela qual as mulheres ficam muito
eufóricas quando se dedicam a uma atividade intelectual genuína.
O aspecto animal do animus aparece
claramente em "A bela e a fera", mas esse tema é relativamente raro
nos contos de fada. Um exemplo menos conhecido é a história turquestã — Zauberross
(O cavalo mágico).
O
cavalo mágico
"Uma jovem foge de seu captor, Div, um
demônio do deserto, num esvaio mágico. Ela consegue escapar temporariamente,
mas é presa novamente pelo demônio. Finalmente o cavalo mergulha no mar com Div
e este sucumbe. O cavalo, então, ordena à moça que o mate. Assim que ela
executa a ordem o cavalo se transforma num palácio paradisíaco e suas quatro
pernas tornam-se as quatro pilastras de sustentação. E, por fim, ela encontra e
se une com o seu verdadeiro amor, um jovem príncipe."
O animus aqui aparece dividido, sendo de
um lado um espírito maligno e de outro um animal benigno. Quando o animus toma
a forma de um espírito inteiramente destrutivo e diabólico, é necessário que
os instintos venham auxiliar.
A única forma de a mulher se defrontar com o
problema do animus é simplesmente sofrê-lo até a última gota. De fato,
não existe solução que não inclua o sofrimento e o sofrer parece pertencer à
vida da mulher.
Nos casos onde a mulher tenta escapar da
possessão de algum fantasma ou vampiro muito pode ser ganho através de extrema
passividade em relação ao animus, e muitas vezes o conselho mais sábio a
ser seguido é não fazer nada. Existem épocas em que a única coisa que se pode
fazer é esperar e tentar fortificar-se tendo em mente os aspectos positivos do animus.
Superar a possessão de um conteúdo inconsciente escapando de suas garras é
uma vitória heroica e meritória.
Esse é o tema do "voo mágico", que
representa uma situação onde é melhor fugir do inconsciente do que tentar
enfrentá-lo, e assim evitando-se de ser devorada.
O tema do voo mágico é evidente num conto siberiano
chamado "A moça e o espírito do mal" (Márchen aus Sibirien, p.
81). Nesse conto, a heroína, que não conhece homem algum e nem sabe quem são
seus pais, é uma pastora de renas. E ela pastoreia, mantendo-as juntas,
cantando canções mágicas.
Aqui novamente aparece o tema da solidão como
um sintoma precursor de um desenvolvimento individual particular da
personalidade. E uma situação onde emergem muitas imagens interiores do
inconsciente que trazem reações inesperadas. Esta moça não está deserdada nem
faminta; ela sabe cozinhar, cuidar de si mesma, e pode manter suas renas
consigo pelo encanto mágico de suas canções. Em outras palavras, ela tem muitos
recursos e é mais dotada e mais normal do que a moça do conto anterior. Seus
dons mágicos significam que ela tem a habilidade de saber exprimir os conteúdos
do inconsciente. Em análise pode-se detectar uma situação como perigosa quando
o caminho que o paciente escolhe para conceber e expressar os conteúdos
turbulentos e ameaçadores do inconsciente é muito estreito e muito débil. Isto
pode provir de uma pobreza de coração e uma ausência de amor tanto quanto de
uma esterilidade do pensamento e do espírito: nesse caso os velhos barris são
incapazes de conter o novo vinho. As canções nos lábios da moça provavelmente
vêm das tradições do seu passado, e isto significaria que ela herdou uma
constelação ancestral afortunada. Mas ela não tem conexões humanas. Estar
separada da sociedade é um grande perigo para a mulher, pois sem o contato humano
ela facilmente torna-se inconsciente e se torna presa do animus negativo.
A história continua: de repente, desce do céu
uma mandíbula fantástica. Abre-se um abismo entre o céu e a terra. Esta boca
aberta e devoradora é o abismo da total inconsciência. A moça lança seu bastão
no solo, atrás de si.
O bastão é um sinal de poder e julgamento, duas
prerrogativas nobres, simbolizadas pelo cetro do rei. O bastão é também
associado com o caminho e é o princípio da direção do inconsciente. O bastão do
bispo, por exemplo, era interpretado pela Igreja como a autoridade da doutrina
que mostra o caminho e fornece as decisões. Então, na mulher o bastão é uma
forma do animus. Na antiguidade, o bastão de ouro ou a vara mágica
pertenciam a Mercúrio e representam a sua capacidade de ordenar os elementos
refratários do inconsciente. Se se tem um bastão não se é totalmente passivo,
tem-se uma direção.
A moça corre jogando o seu pente mágico e seu
lenço vermelho para trás. Marcar o próprio caminho com objetos é característica
da fuga mágica. O ato de jogar fora os objetos de valor é um ato de sacrifício.
Jogam-se coisas sobre o ombro para os mortos, para os espíritos ou para os
demônios, agradando-se aqueles que não se ousa olhar face a face. Pode parecer
um estado de pânico o fato de abandonar as posses valiosas na hora da fuga, mas
aquele que se mantém numa atitude defensiva facilmente é solapado por alguém
mais forte que ele, enquanto que despojar-se oferece mobilidade. Existem
situações em que a pessoa deve renunciar por completo a querer alguma coisa;
isso permite que ela se escape, como se saísse por baixo; não estando mais ali,
nada mais pode lhe acontecer de errado. Quando uma pessoa se confronta sem
esperanças com uma situação falsa, deve simplesmente saltar sem hesitações até
o fundo de uma atitude de simplicidade e passividade; isso lhe permite viver a
dificuldade e ultrapassá-la.
E o que é mais interessante é que os objetos
que foram sacrificados geralmente se transformam em obstáculos para o
perseguidor. O pente torna-se uma floresta e, portanto, uma parte da natureza —
o cabelo da Terra-Mãe. Essa transformação do pente para um objeto natural
sugere que, originalmente, ele era parte integrante da natureza, ou seja, da
psique inconsciente. Sacrifica-se ao inconsciente aquilo que um dia lhe foi
tirado.
Um pente é usado para ajeitar e arrumar o
cabelo. Cabelo é uma fonte de poder mágico ou mana. Anéis ou cachos de
cabelo guardados como lembranças são tidos como amuletos que ligam uma pessoa à
outra, não importando a distância. Cortar o cabelo e sacrificá-lo significa, frequentemente,
submissão a um novo estado coletivo, um renunciar e um renascer. A arte de
arrumar (coiffure), é uma expressão de uma cosmovisão cultural.
Contos folclóricos primitivos falam de demônios que, sendo capturados, são
penteados e seus piolhos catados, o que significa que a confusão no
inconsciente tem que ser ordenada e conscientizada. Por causa desse significado
é que no início da análise é frequente sonhar com cabelos selvagemente
desalinhados. O pente, consequentemente, representa a capacidade de a pessoa
ordenar seus pensamentos, clareá-los e torná-los conscientes.
O lenço vermelho que a moça deixa para trás
torna-se uma chama de fogo que sobe da terra para os céus. Abandonar o bastão e
o pente significava não fazer tentativas de se autogovernar ou arquitetar um
plano. Agora, a chama indica que ela coloca distância interior entre ela mesma
e seus sentimentos e emoções. Ela é reduzida a uma simplicidade passiva.
Na história, as mandíbulas devoram a floresta e
espirram água nas chamas. Fogo e água batalham no inconsciente, e enquanto isso
a moça escapa entre os opostos (não se identificando com nenhum deles).
Ela passa em seguida por quatro metamorfoses,
sendo que cada um dos animais em que se transforma é mais veloz na corrida do
que o anterior. E a única coisa que ela pode fazer é contar com seu lado animal
interior.
Ela precisa renunciar a todas as atividades
mais altas e descer ao seu nível instintivo. Existem momentos de perigo
iminente quando é necessário não pensar, não sentir ou ainda tentar escapar à
força, mas sim descer à simplicidade animal. Sustentada por uma atitude cheia
de propósitos, esse "não fazer nada" das filosofias orientais acaba
por ser bem-sucedido, enquanto que uma forte resistência poderia levar à
fatalidade. O ego escapa e se evade. E isso é tudo o que um ser humano pode
fazer em determinadas ocasiões: deixa-se o demônio perseguidor devorar a
floresta e combater o fogo.
A moça se transforma num urso com sinos de
cobre nas orelhas. Os sinos e outros instrumentos de sons similares são usados
para afastar espíritos malignos (os sinos das igrejas, inicialmente, tinham
esse propósito). Eles também anunciam um momento decisivo, como o retumbar de
um tambor ou de um trovão e induzem uma ressonância psíquica nas emoções do
ouvinte, de tal forma que ele sente que é chegado o momento decisivo — por
exemplo, os três toques dos sinos na Missa, antes da Consagração. Os sinos, na
orelha-animal da moça, abafam todos os outros sons, sons que ela não precisa
ouvir e que são efeitos venenosos das palavras que o animus negativo lhe
sussura. O envenenamento ocorre quando a pessoa aceita tais palavras, levando
avante convicções e modos de agir que não combinam com ela. O receptáculo que
transmite essa influência nefasta é a orelha, e os sinos são uma defesa contra
os efeitos nocivos do animus.
O conto termina com a moça caindo no chão, numa
espécie de desmaio mortal, em frente a uma tenda branca, quando de repente o
espírito do mal pára em frente dela na forma de um belo jovem. Ela fugiu dele
para ele. Sua perseverança no único caminho instintivamente correto provocou
uma "enantiodromia": ou seja, o demônio ameaçador transformou-se num
belo jovem. De fato, a intenção secreta do animus era de trazê-la até
sua tenda branca. Ele tem três irmãos mais novos e dentre os quatro ela tem que
escolher aquele que será seu marido. O seu equilíbrio interior e sua totalidade
psíquica são expressos nessas quatro figuras. Três figuras iguais quase sempre
significam uma constelação benfazeja: as três dimensões do espaço e os três
aspectos do tempo — passado, presente e futuro — que são os vassalos do
destino. Aqui os três irmãos podem representar as três funções inferiores da
moça; e o "três mais um = quatro" sustem a individuação. A moça
escolhe o mais velho porque ela reconhece que a realização de seu destino está
em aceitar o espírito que a perseguiu.
Um exemplo de um voo mágico que termina tragicamente
é contado numa história siberiana:
A
mulher que se tornou aranha
"Incapaz de se entender por mais tempo com
seu pai, uma mulher sai de casa. Ela encontra uma cabeça humana e leva-a para
casa para ter com quem conversar. Seu pai ouve sua conversa e espera que ela
esteja conversando com um homem de verdade. Quando ele descobre a 'trapaça' de
sua filha, joga a cabeça num monte de estéreo. De lá a cabeça rola caindo no
mar e deixando uma trilha de sangue pelo caminho. A mulher segue a trilha e
chega a uma casa onde mora uma família de cabeças. O demônio-cabeça, ferido
pela indignidade sofrida por seu pai, desdenha-a.
Ela corre em volta da casa na direção errada e,
em seu desespero, ela chega à terra do além (isto é, o céu), onde um homem num
barco de couro envolve-a, entoando canções mágicas. Ela o segue, nua, até à
casa dele e quando ele sai, ela procura abrigo numa casa vizinha, proibida,
onde mora a mulher-aranha. Dentro da casa ela encontra uma velhinha fiando, que
lhe diz que o homem do barco (de couro) planeja matá-la. Ele é o espírito da
lua e todos os homens na terra rezam para ele.
A mulher abre uma porta no chão da casa do
espírito da lua e contempla, lá embaixo, todos os mistérios dos homens e seus
sacrifícios. Então ela obtém da mulher-aranha uma corda pela qual ela deve
descer à terra. A velha lhe diz que ela precisa se assegurar de deixar os olhos
bem abertos. Mas ela não os abre a tempo e se transforma numa aranha."
(Knud Rasmussen, Die
Gabe des Adlers, Frankfurt, p. 107.)
Este conto é como o sonho de uma mulher real ou
como a reflexão dos eventos concretos. Isto frequentemente ocorre nos contos
primitivos que não foram ainda elaborados em contos de fada e que são análogos
às experiências arquetípicas individuais.
A mulher da história tem um complexo paternal
negativo, razão pela qual ela precisa desenvolver o próprio animus; ao
mesmo tempo seu complexo negativo inibe-a de assim proceder. Sua primeira
tentativa de encontrar um companheiro põe-na em contato com um crânio que mora
no mar (na realidade, um espírito que aparece sob esta forma no mundo terrestre).
Muitos primitivos creem que o crânio sobrevive à morte e identificam-no com o
espírito.
O fato de a mulher tentar relacionar-se com um
crânio significa que a sua natureza espiritual não está incorporada e nem é
real. Ela não está ligada aos instintos e emoções e não pode se expressar. O
crânio é, consequentemente, uma forma de pensar seca e intelectual e está
literalmente morta. Entretanto, inclusive neste caso, a mulher tenta se
relacionar com este fator interno, o que significa progresso, embora cada passo
progressivo seja contrabalançado por uma explosão de tendências agressivas do animus.
Aqui, o pai interfere. Ele fere a cabeça, o que significa que ele fere e
reprime os valores espirituais que se desenvolvem na sua filha através de
opiniões tradicionais e convencionais e dos chamados argumentos razoáveis. Por
conta disso, o espírito que podia ter se tornado consciente, desaparece no mar
do inconsciente coletivo.
A mulher corre em volta da casa na direção
errada, na direção anti-horária; isso demonstra que ao invés de tentar se
tornar consciente desse evento, ela se perde ainda mais no inconsciente. Afunda
cada vez mais no seu desespero e assim atinge o céu, transcendendo completamente
a esfera terrestre e escapando para um domínio puramente arquetípico. Ela evita
até mesmo o inconsciente coletivo, simbolizado pelo oceano. No mar ainda
existe a vida animal, mas no céu vivem somente figuras arquetípicas.
O mágico do barco de couro é uma nova forma do animus-maior,
menos humana e mais possessiva do que o crânio. Ele é um amante-mágico, um
amante-fantasma e, posteriormente, ela fica sabendo que ele é o Espírito da
Lua, um deus que é cultuado pelas mulheres da tribo. Este espírito da lua é uma
forma que o animus frequentemente assume a fim de seduzir as mulheres e
atraí-las para fora da vida. E por causa da fraqueza do consciente nas
sociedades primitivas que ele aparece como sendo muito perigoso para a mulher.
Quando uma pessoa com uma consciência desenvolvida
sente que o animus nela contido está pleno de uma atividade muito
significativa, é inútil tentar fugir ou mesmo procurar compreender
intelectualmente o seu significado. Ao invés disso, a pessoa deveria usar a
energia proveniente do animus de uma maneira adequada, empreendendo
alguma atividade masculina, tal como o trabalho intelectual criativo; se assim
não for, a pessoa é dominada e possuída pelo animus. De modo similar, um
forte complexo maternal não pode ser depurado somente pelo intelecto. Um estado
de possessão trágico pode ser um apelo do destino para a consagração total ao
processo de individuação. Quando o complexo materno ou paterno é reconhecido
como sendo mais forte que o ego, ele pode ser aceito como um componente da
personalidade individual.
Este encontro da mulher com o espírito da lua
lhe dá o poder intuitivo de contemplar as cerimônias e sacrifícios religiosos
que ocorrem na terra. Em outras palavras, ela é uma visionária com o perigo de
se tornar uma vidente com uma pincelada de loucura, e é por causa desse perigo
que o seu instinto feminino, a mulher-aranha, faz surgir nela o desejo de
voltar à terra.
A fiandeira, que é uma figura familiar em
muitos mitos norte-americanos, é geralmente ambígua. Nesta história ela é
análoga à mulher de dentro da caixa no conto que se segue, ou seja, ela é uma
figura do SELF, rica em possibilidades desconhecidas.
A mulher-aranha arranja uma corda para a outra,
possibilitando-a de descer para a terra. A maior parte das mulheres está
sujeita, de tempos em tempos, a sonhar com a própria vida e perder-se num
círculo de especulações nebulosas, mas se se consegue tocar a realidade
ganha-se uma perspectiva nova e fora dessas fantasias. Uma das formas de fazer
isso é escrever o que se está fantasiando; possibilitando que a fantasia se
expresse, a pessoa deixa de identificar-se com ela. Isto tem o efeito de
reduzir as fantasias alimentadas pelo animus e deixar de estar à sua
mercê. Quando a pessoa se confronta com seus próprios pensamentos, colocando
preto no branco, pode distinguir o que é meramente opinião e o que é válido;
fazer isso significa aumentar a força interior. É dito à mulher que quando ela
chegar à terra ela tem que abrir os olhos rápida e imediatamente — ou seja, ela
precisa fazer um esforço supremo para estar alerta e consciente do seu estado real.
Mas tragicamente ela falha e, então, torna-se uma aranha. Ela se torna uma
solteirona que teve uma experiência religiosa interior, mas incapaz de tornar
frutífera tal experiência para sua tribo e para si mesma.
Uma outra forma de possessão pelo animus é
descrita no seguinte conto siberiano:
A mulher que se casa com a lua e com o Kele
"Uma mulher, abandonada por seu marido,
estava tão faminta e fraca que só conseguia se arrastar andando de quatro. Duas
vezes assim ela se dirigiu à casa do Homem da Lua e comeu uma comida que
encontrou num prato. Na terceira vez ela foi surpreendida pelo Homem da Lua,
que quando soube que ela não tinha marido, casou-se com ela.
Todos os dias a comida aparecia num prato
vazio, como mágica. Quando o Homem da Lua saiu ele proibiu a esposa de abrir e
de olhar dentro de um certo cofre, mas a curiosidade provou-se irresistível e
ela descobriu no cofre uma estranha mulher cuja face era metade vermelha e
metade negra. Era ela que secretamente providenciava a comida para os dois, mas
quando exposta ao ar, morreu. Quando o Homem da Lua voltou para casa descobriu
que sua mulher havia lhe desobedecido e ficou muito bravo. Ele trouxe a mulher
morta de volta à vida e levou sua esposa de volta para o seu pai, dizendo que
ele não podia mais controlá-la e que o primeiro marido dela provavelmente deve
ter tido também uma boa razão para abandoná-la.
Feroz com a volta de sua filha, o pai evoca um
espírito mau para casar com ela. Este demônio, chamado Kele, comia homens e
havia comido até mesmo o próprio irmão da mulher, cujo cadáver ele trouxe para
ela comer. Entretanto, agindo segundo os conselhos de uma pequena raposa, ela
confeccionou sapatos para Kele. Quando ela os jogou na frente de Kele um fio
de aranha desceu do céu e ela começou a subir por ele para chegar à casa da
mulher-aranha. Perseguida por Kele, ela continuou subindo até atingir o Imóvel,
o Criador, o maior Deus, a Estrela do Norte. Kele, que também chegou aí, foi
aprisionado numa caixa pela protetora Estrela Polar. Ele quase morreu, mas foi
solto sob a condição de não mais perseguir as mulheres.
Ela voltou para a terra e fez seu pai
sacrificar uma rena para o deus. De repente, o pai e em seguida a filha,
morreram." (Este final sem colorido e sem clímax é típico das histórias
primitivas.)
(Mãrchen aus Sibirien, p.
121.)
A protagonista é uma mulher abandonada por seu
marido e, depois de tudo, o Homem da Lua declara que o marido certamente tinha
razão de abandoná-la. Solidão, pobreza e fome são enfocados, típicos estados
resultantes da possessão do animus. A atitude de uma mulher, em grande
escala, condiciona os eventos que ocorrem com ela.
O animus traz solidão às mulheres,
enquanto a anima joga o homem de cabeça nas relações humanas, com toda a
confusão decorrente.
A fome também é típica. A mulher necessita da
vida, de relacionar-se com pessoas e de participar numa atividade
significativa. Parte de sua fome advém da intuição que ela tem de suas atitudes
adormecidas e não utilizadas. O animus contribui para a sua inquietude e
então ela nunca está satisfeita; é preciso sempre fazer mais por uma mulher
possuída pelo animus. Não percebendo que o problema é interior, tais
mulheres acham que se elas somente pudessem sair mais, pudessem gastar mais
dinheiro ou, ainda, se tivessem mais amigos, sua sede de vida seria saciada.
Nos contos de fada, o deus-lua frequentemente
aparece como o amante misterioso e invisível de uma mulher casada. Algumas
vezes, nos sonhos e na mitologia, a lua é representada tanto como um homem,
como uma mulher ou como um ser hermafrodita. Talvez possamos compreender o que
determina o sexo da lua.
A lua está intimamente relacionada com o sol,
mas tem menos luz e é do sol que recebe sua claridade. O sol é, de fato, uma
divindade, fonte da consciência no inconsciente — ele representa um fator
ativo psíquico capaz de criar uma consciência maior. A lua, entretanto,
simboliza uma consciência menos clara, mais difusa, primitiva e doce. Quando o
sol é do gênero feminino, como na língua alemã, significa que a fonte da
consciência ainda está no inconsciente, que não há uma consciência madura mas
uma consciência na penumbra, cheia de detalhes não claramente distinguidos. O
instinto para empreendimentos arquitetônicos entre os balis ilustra essa
condição: em Bali, vários operários trabalham segundo suas próprias habilidades
de construção, não dirigidos por qualquer plano ou arquiteto, mas guiados pelo
próprio interior, exatamente como se tivessem um carbono para copiar. Quando as
várias partes do prédio estão para se juntar, elas se encaixam perfeitamente,
embora cada um dos homens tenha feito seu trabalho sozinho, individualmente.
Desta forma, é criado um templo com um desenho muito harmonioso. Como se o sol
iluminasse o inconsciente, aparentemente existe um princípio inconsciente de
ordem que opera em cada pedreiro bali.
A lua revela o mesmo princípio do sol, mas é
mais feminina, menos concentrada, menos intensa; é a luz da consciência, mas
uma luz tênue. O princípio da consciência que opera na mulher desta história é
bastante indefinido. Isso se liga ao fato de estar possuída pelo animus, pois
é característico do animus ser indefinido em seus propósitos importantes
e duradouros, embora ele seja extremamente insistente quando desce ao nível dos
detalhes. Na mitologia, a lua está associada a cobras, animais noturnos,
espíritos de mortos e deuses do submundo. Na alquimia, ela é chamada de "a
filha de Saturno". Paracelsos considerava-a como fonte de veneno, como os
olhos das mulheres quando a lua agita seu sangue. Ele acreditava que a lua é um
espírito capaz de se renovar e voltar a ser criança, sendo por essa razão
suscetível aos maus olhados das mulheres. Desta forma, o espírito sideral é
envenenado e então lança má sorte sobre os homens que o contemplam. Podemos
interpretar psicologicamente Paracelsos, dizendo que as opiniões envenenadas
emanam do animus e vão diretamente ao inconsciente dos outros com o
resultado das pessoas parecerem envenenadas por uma fonte desconhecida. Tais
opiniões infectam o ar, se espalham pelas vizinhanças e respira-se tal ar sem
sequer se suspeitar. As convicções vindas do animus penetram mais
profundamente do que meras opiniões erradas e, portanto, são muito mais
difíceis de se ver e eliminar.
A divindade lunar, neste conto, é ambígua; ela
aprisiona uma mulher, princípio feminino obscuro da natureza, num cofre. Ela é
subdesenvolvida, secreta, enterrada, entretanto muito importante pois é viva e
prove a alimentação. Em outras palavras, ela é uma forma anterior de um
precursor do SELF. Neste caso, ela está por trás do animus (O
Homem-Lua) como uma figura de sustentação. O espírito da montanha também
encarnava um fator de energia escondido por trás da princesa-anima, mas
ele era uma figura malévola, enquanto a mulher na caixa é, sobretudo, uma deusa
obscura da fertilidade. Desobedecendo ao Homem-Lua e abrindo a caixa a heroína
mata involuntariamente a mulher sombria. A transgressão pela qual uma vítima
inocente paga com sua vida é uma variação do tema da iluminação prematura, tema
esse que se encontra tanto nos mitos antigos de Eros e Psique, Orfeu e
Eurídice, como no conto de Grimm — The Singing, soaring Liorís Lark = La
fauvette qui chante et qui saute. O que deve ser ressaltado aqui é a
evidência de que para tudo existe um tempo; a atitude de posse, frequentemente,
produz uma sistemática falta de tato da mulher. Ela não resiste à curiosidade
de indagar e esmiuçar cada vez que depara qualquer sinal de vida e, assim, tudo
o que deveria permanecer no recôndito escuro da consciência — aquilo que
necessita da escuridão para se desenvolver — é trazido à luz e perdido. As mães
com esse tipo de disposição tendem a arrancar os segredos dos seus filhos e,
então, toda a espontaneidade e possibilidade de crescimento são obliteradas.
Esta atitude, ainda, tem o efeito nefasto no contexto inteiro.
A mulher do conto, tendo sido abandonada e
tendo perdido seu sentimento feminino, é levada pela curiosidade a quebrar os
segredos do Homem-Lua. A curiosidade selvagem é a expressão de uma espécie de
masculinidade primitiva na mulher. Quando possuída por tal espírito inquisitivo
e espezinhador, ela só faz o que não é preciso e está sempre errada.
O Homem-Lua devolve a mulher a seu pai. Embora
o seu pai não apareça no início da história, podemos supor que eleja semeara as
sementes de um final infeliz. O fato de ambos, pai e filha, terem morrido no
final do conto mostra claramente a existência de um relacionamento muito
próximo entre eles. Depois da mulher ter voltado à casa paterna a maldição do
pai condena-a a viver com um espírito mau. De acordo com uma crença primitiva
um desejo expresso, tal como esse, pode fazer nascer eventos que ainda não
existem e fazê-los sair da matriz do tempo. A maldição que condena a filha a
viver com o espírito do mal é uma indicação clara de que o pai é a causa da
dominação do animus em sua filha.
O espírito mau, Kele, é um antropófago, uma
prática típica do animus negativo. Assim como os vampiros bebem sangue,
os espíritos consomem os corpos para se tornarem visíveis. Eles se banqueteiam
e se nutrem do cadáver a fim de ganhar substância naquela forma e então tomam a
forma de um corpo por feitiço. Os vampiros, como bem se sabe, se alimentam de
pessoas vivas. A necessidade que têm de viver a vida dos outros advém do seu
desespero de terem sido banidos do mundo dos vivos. Uma mulher possuída pelo animus
necessita da energia das vidas dos outros que a circundam porque suas
próprias fontes de sentimento e de Eros estão afastadas dela. Do ponto de vista
psicológico, os espíritos são conteúdos do inconsciente. Devorar cadáveres
mostra, simbolicamente, que os complexos e outros conteúdos inconscientes lutam
desesperadamente para penetrar na consciência e para se realizar nos seres
vivos. A voracidade de um espírito por um corpo é o desejo não reconhecido, não
redimido, de se atingir a plenitude da vida.
Por outro lado, a mulher vermelha e preta
fechada no cofre secreto oferece o alimento mágico e dá a vida. A heroína não
pode aceitá-la porque não pode coordenar a mulher sombria com o Deus-Lua, não
tem capacidade de lidar com a figura subdesenvolvida do SELF nem de
tornar-se mais feminina. Entre a Estrela Polar protetora e o cruel Kele existe
uma certa similaridade (semelhança — ambos são princípios divinos opostos,
engajados num combate eterno).
Como a mulher em Zauberross (O cavalo
mágico), antes mencionado, ela consegue escapar do espírito malévolo com a
ajuda de um animal. Colocando o espírito e a natureza em oposição intolerável,
o animus pode levar a mulher à situação de cisão. Quando isso ocorre,
ela tem que confiar no seu próprio instinto. Neste caso, sua natureza
instintiva é representada por uma raposa. Na China e no Japão a raposa é um
animal feiticeiro. Diz-se que bruxas e feiticeiras aparecem sob a forma de
raposas e casos de mulheres epiléticas e histéricas são explicados como
enfeitiçamento por raposas. Para os chineses e japoneses, a raposa é um animal
feminino como o gato é para nós e isso também representa a natureza feminina,
instintiva e primitiva da mulher.
A raposa da história aconselha a mulher a jogar
os sapatos no Kele a fim de retardá-lo enquanto ela subia pelo fio da aranha
até o céu. (Cf. Sartori, "Der Schuh im Volksblauden", Zeitschrift
für Volkskunde, 1894, p. 41, 148, 282.) O sapato é um símbolo de poder,
razão pela qual fala-se em "estar sob o salto de alguém" ou
"pisar nos sapatos do pai". Vestir-se pode representar a persona, nossa
atitude exterior ou uma atitude interior. Nos mistérios de iniciação mudar de
roupa era o sinal da transformação para um estado de compreensão iluminado. Os
sapatos são a parte mais baixa de nosso vestuário e representam nossa relação
com a realidade — ou seja, o quanto nossos pés estão plantados no chão e o quão
solidamente a terra nos suporta e nos dá a medida do nosso poder.
Jogar os sapatos no Kele é um gesto que
propicia delonga na sua perseguição. É necessário sacrificar alguma coisa a fim
de escapar de suas garras e, neste caso, é o sacrifício de um velho ponto de
vista. Nas amarras do animus, nenhuma mulher é capaz de desistir ou
sacrificar qualquer poder que ela possa ter ou qualquer convicção que seja
correta, necessária e valiosa. As opiniões dessa mulher surgiram do pensamento
masculino inferior; quanto menos ela for capaz de avaliá-los, mais
apaixonadamente ela se segura neles. Esta é a razão para a persistência da
possessão do animus. Infelizmente tal tipo de mulher nunca pensa que
algo de errado se passa com ela mas, ao contrário, ela tem certeza de que o
erro está nos outros. A raposa, na verdade, está lhe dizendo: "Não seja
tão rígida. Dobre-se um pouco e jogue parte de suas opiniões fora e veja o que
acontece".
Então, de repente, uma linha desce do céu e lhe
dá a chance de atingir a Estrela Polar, o que significa o animus refinado
à forma mais elevada, uma imagem de Deus (paralelo a isto está Sofia, que é a
forma mais alta e mais espiritual da anima). Se se aprofunda no
significado do animus, descobre-se que ele é uma divindade e que,
através do relacionamento da mulher com ele, nesta forma, ela entra numa
experiência religiosa genuína. Nesta história, a descoberta da Estrela Polar é
a experiência pessoal da mulher com Deus.
Quando Kele persegue-a e desencadeia o clímax,
ocorre entre eles e a Estrela Polar um conflito numa escala cósmica, de tal
modo que a mulher fica entre os dois poderosos princípios do bem e do mal —
Deus e o Diabo. Quando a Estrela Polar abre sua caixa, faz-se a luz e quando
fecha, neva sobre a terra. O espírito do mal é colocado dentro da caixa e é
torturado pelos cruéis raios de luz. O animus precisa, algumas vezes,
ser tratado de maneira severa por um poder superior.
Indo aos céus, a mulher retirou-se da realidade
humana, mas isso não traz uma solução real. Qualquer um, nessas condições, pode
chegar ao limiar da psicose, balançando-se entre uma possessão de animus exageradamente
positiva e outra exageradamente negativa. Este conto aparentemente revela o
caso de uma consciência fraca, que pode ser encontrada nas culturas primitivas.
Por isso tem sentido o que a Estrela Polar diz à mulher: "É melhor você
voltar para casa, é melhor você voltar para a terra". Ela ordena o
sacrifício de duas renas, sabendo que a mulher tem que fazer um sacrifício a
fim de reintegrar-se na vida terrena. (Há um tema semelhante no conto de Grimm,
"O pássaro dourado".) Sair das nuvens da fantasia e entrar na
realidade é perigoso, e neste momento todos os esforços podem ser perdidos. Por
exemplo, pode-se compreender um problema que aparece num sonho, mas como
trazê-lo para a prática? O tema é proposto, mas espera para se concretizar
através da nossa participação efetiva na vida. O problema só é resolvido quando
as possibilidades latentes de nossa própria natureza são realizadas num
trabalho criativo. Voltar à realidade apresenta outras formas quando questões
práticas se apresentam, obrigando a pessoa a sair da aventura posta no
inconsciente. Por exemplo, um problema se apresenta quando uma pessoa
desenvolve um relacionamento com alguém que a põe em face à desaprovação e à
hostilidade do mundo. Permanece sempre o perigo de rejeitar inteiramente as
experiências interiores do inconsciente tratando-as cinicamente como se não
fosse nada além disso ou daquilo ou, como ocorreu nesta história, tornando-se
muito sonhadora e pouco aberta para a realidade concreta, continuando a viver
sua própria fantasia, quando era necessária uma adaptação realista.
Frequentemente, nos contos primitivos, quando
um final satisfatório parece iminente, toda a situação explode. Neste conto, o
pai e a filha morrem, não havendo dissolução da identificação recíproca e,
portanto, todo o problema da possessão do animus permanece inconsciente.
Amiúde, é imperativo para a mulher escapar à
dominação funesta do animus. Este conto nos fala de tal tentativa, mas
toda a experiência é conhecida somente pelo inconsciente. Pode-se compará-la ao
jogo descrito num conto sul-americano, onde aparece a anima como um
esqueleto que dança no Além e, subsequentemente, ocorre a morte do herói.
Muitos contos primitivos são cheios de melancolia porque muitas tribos
experienciam o inconsciente como algo lúgubre, doloroso e atemorizante. Ele
toma esse aspecto especialmente para aqueles que necessitam, antes de mais
nada, entrar na vida; ou seja, para os jovens e para as pessoas que têm a
tendência de se proteger e se fechar. A emergência de o herói sair do
inconsciente é uma tarefa tão importante como matar o dragão.
Um outro conto siberiano que ilustra a
integração do animus é "A jovem e o crânio". No início do
conto, uma jovem que morava com seus pais já muito idosos encontra um crânio no
bosque e o traz para casa e conversa com ele. Os pais, quando descobrem o que
ela fez, ficam horrorizados e concluem que ela é uma "Kele",
abandonando-a.
O fato de o animus aparecer
primeiramente como um crânio nesse conto, indica sua natureza necrófila. Os
alquimistas usam o crânio como um recipiente onde cozinham a prima-matéria. De
acordo com as crenças primitivas, o crânio contém a essência imortal dos seres
mortais, de onde surgem os caçadores de cabeças e os cultos aos crânios. Para
os índios norte-americanos, os escalpos continham a essência do inimigo. Neste
conto, o crânio novamente representa o animus no seu aspecto mortal,
especialmente em suas atividades relacionadas com a cabeça, tais como envenenar
as mulheres com opiniões nocivas ou cegando-as para os tesouros do inconsciente.
Os pais concluem tristemente que sua filha
transformou-se em Kele, um espírito mau, casando-se com ele e estando além de
qualquer redenção. Esta atitude desconfiada dos pais é tipicamente encontrada
entre os primitivos que têm medo de serem possuídos pelos espíritos, pois
esses, sendo numerosos, sempre presentes e percorrendo longas distâncias,
representam sempre um perigo iminente. A ideia do crânio significa a cabeça ou
o intelecto, tornando-se autônoma e separada dos instintos; então ele pode rolar
montanha abaixo e destruir-se. Por outro lado, o crânio é um símbolo do SELF.
(O aspecto que apresenta um conteúdo do inconsciente depende da atitude
consciente que o considera.)
Sentindo que sua filha está possuída, os pais
idosos abandonam sua casa e atravessam o rio com todos os seus pertences. A
menina é apenas uma criança e não tem amigos para ajudá-la a entrar na vida.
Tal situação — por exemplo, quando os pais casam-se tarde ou não têm filhos por
um longo tempo — frequentemente traz dificuldades trágicas. Pelo fato de ter
conversado com o crânio no seu quarto, a menina atraiu reações hostis em seu
meio: ela suscitou o medo e o ódio de seus pais. O mau relacionamento da
mulher com o animus atrai, frequentemente, hostilidade para si mesma,
sem que ela suspeite a razão. As reações negativas das outras pessoas são um
sinal de que a parte essencial de sua personalidade não foi ainda integrada. A
irritação das pessoas próximas obrigam-na, de alguma forma, a reconhecer
aquilo que lhe falta.
Quando a menina é abandonada, ela se aproxima
do crânio por causa de sua solidão. O crânio aconselha-a a apanhar gravetos e
fazer uma grande fogueira e, em seguida, jogá-lo no fogo, pois dessa maneira
ele poderia ter um corpo.
O fogo, geralmente, representa emoção e paixão
que tanto pode nos queimar como nos iluminar. Os sacrifícios, as oferendas, são
queimados a fim de dissolver a parte física de tal forma que o essencial ou a
imagem possa subir aos deuses pela fumaça. Entretanto, quando uma
"criatura espiritual" é queimada, a cremação lhe confere o corpo. A
paixão obriga o indivíduo a sacrificar uma atitude muito independente e muito
intelectual e torna o indivíduo capaz de conferir uma realidade concreta ao
espírito. Quando se suporta o sofrimento de uma paixão, o espírito não é mais
uma ideia, mas é experienciado como uma realidade psíquica. Por isso o crânio
implora à menina para jogá-lo no fogo: "Do contrário" — diz ele —
"ambos sofreremos em vão". Deve-se combater o sofrimento pelo
sofrimento, por sua aceitação. Torturar o crânio no fogo significa combater o
fogo pelo fogo e reparar o tormento que ela sofreu por causa dele. O animus desperta
paixão na mulher. Os planos, propósitos e caprichos do animus levantam
na mulher a dúvida, levando-a a sair de si mesma e expor sua natureza passiva e
feminina às resistências do mundo exterior. Então, quando uma mulher é
bem-sucedida no mundo masculino, estreitar sua atividade ou mesmo renunciar a
ela completamente a fim de se tornar mais feminina pode significar um sofrimento
agudo para a mulher.
Na alquimia, o fogo simboliza, frequentemente,
a participação do indivíduo no trabalho e é equivalente à paixão que o
indivíduo coloca nos diferentes estágios do processo alquímico.
O crânio diz à menina que ela precisa tapar
seus olhos e não olhar de jeito nenhum para a queima. Aqui também aparece o
tema do perigo de uma iluminação prematura. Não se pode querer saber
intelectualmente tudo o que ocorre na psique nem querer definir e categorizar a
qualquer custo todos os acontecimentos interiores; é preciso dobrar a própria
curiosidade e simplesmente esperar. Somente uma pessoa forte é capaz de
controlar a própria impaciência e deixar o jogo se desenrolar sem olhar; por
outro lado, uma consciência mais fraca quer ler o sonho interpretado
imediatamente, pois teme a incerteza e a obscuridade da situação. A menina tem
que esperar no escuro enquanto ouve as chamas arderem e uma confusão de homens
e cavalos passando apressadamente. Apesar de aterrorizada, ela permanece firme
e resistente ao pânico, denotando uma força que está além da esperança e do
desespero. Mas ocorre que muitas pessoas não são capazes de esperar e preferem
decisões repentinas. Desta forma elas perturbam o próprio destino e sua ação
imprevisível. No final, diante da moça aparece um homem de pé, vestido com
peles de animais, circundado por um grupo de pessoas e animais. Ele é muito
rico e ela se torna sua esposa: portanto, agora, ela tem um animus positivo,
poderoso e muita alegria na vida. Mais tarde seus pais voltam para visitá-la e
ela os mata dando-lhes lascas de ossos, que era mais do que eles podiam
engolir.
O tema da relação
Existem muitos contos de fada cujas personagens
principais podem ser interpretadas como representantes da anima ou do animus.
Estes contos destacam modelos de relacionamento humano: os processos que
ocorrem entre homem e mulher ou os fatos fundamentais da psique que estão além
das diferenças entre o masculino e o feminino. Muitos contos sobre a redenção
mútua são deste tipo. Em tais histórias, em geral, as crianças têm os papéis
principais — como, por exemplo, Hànsel and Gretel (João e Maria,). Sendo
as crianças relativamente indiferenciadas tanto sexual como psiquicamente, elas
estão muito mais próximas da imagem do ser hermafrodita original. Esta é a
razão pela qual a criança também é um símbolo do SELF — de uma
totalidade interior futura e, ao mesmo tempo, dos aspectos não desenvolvidos da
individualidade. A criança significa uma parte da inocência e do maravilhoso
que sobrevive em nós desde um passado remoto; ela é aquela parte de nossa
infância pessoal que já passou, como também a forma nova e recente da
individualidade futura. Vista sob esse enfoque, dizer que a criança é pai do
homem tem um significado profundo.
Estes contos não se reportam aos fatores
humanos e pessoais, mas ao desenvolvimento dos arquétipos; eles mostram os
vários modos pelos quais os arquétipos estão relacionados entre si dentro do
inconsciente coletivo.
Existe um conto de fada no qual o encontro das
psiques masculina e feminina é apresentado sob o ângulo do inconsciente;
entretanto, como o leitor verá, a realidade da psique feminina é revelada mais
claramente do que a da psique masculina.
A
noiva branca e a noiva preta
"Era uma vez uma mulher que vivia com sua
filha e uma enteada. Então Deus apareceu-lhes sob o aspecto de homem pobre e
pediu-lhes que indicassem o caminho para a cidade. A mulher e a filha riram e
caçoaram dele, mas a enteada ofereceu-se para mostrar o caminho. Em troca, Deus
fez com que a mulher e a filha se tornassem feias e pretas e para a enteada
conferiu três dons: uma grande beleza, uma bolsa de dinheiro que não se
esvaziava jamais e o reino dos céus quando morresse.
O irmão da enteada, chamado Reginer, trabalhava
como cocheiro do rei. Ele achava sua irmã tão bonita que resolveu pintá-la num
quadro, admirando-o diariamente. Um dia, o rei ouviu falar sobre tal quadro e
pediu para vê-lo. Quando trouxeram-lhe o quadro, ele se apaixonou pela moça,
tanta era a sua beleza, e ordenou a Reginer que fosse buscá-la. O irmão e a
irmã, juntamente com a mulher madrasta e sua filha, cavalgaram em direção ao
castelo do rei. No caminho, porém, a madrasta, cheia de inveja, empurrou a
enteada no rio. Chegando à corte o rei responsabilizou Reginer pelo fato,
jogando-o num poço de cobras. Através de sua magia negra, a madrasta convenceu
o rei a casar-se com sua horrenda filha.
Entretanto, a enteada não se afogara, mas se
tornara um pato branco, que durante três noites seguidas apareceu ao menino da
cozinha, conversando com ele. O menino contou isso ao rei, que na quarta noite
foi até a cozinha ver o que acontecia. Assim que a ave apareceu e começou a
falar com o menino, o rei cortou sua cabeça e o pato transformou-se novamente
na bela moça que era. Então a jovem contou ao rei a perfídia de sua madrasta. O
rei puniu-as (a bruxa e a filha) sem piedade, tirou Reginer do poço de cobras e
casou-se com a bela moça."
(De Grimm.)
Pode-se considerar a mulher, a filha e a
enteada como uma tríade representando a psique feminina. A mulher representaria
a atitude consciente, enquanto a filha verdadeira, que é negativa, representa a
sombra e Reginer, o enteado, representa o animus. A enteada é o quarto
elemento que representa a verdadeira natureza interior e a fonte de renovação
da psique feminina. Entretanto, ela só pode alcançar a realização depois de
entrar em contato com o princípio do discernimento, o logos, personificado
pelo rei.
O rei não pertence ao princípio quaternário
pois é uma das três figuras masculinas, sendo as outras duas o cocheiro — que
faz a conexão com a anima — e o menino da cozinha — que o guia para a
revelação da situação interior.
Para a primeira tríade de mulheres (a mulher e
as duas filhas) Deus aparece recompensando aquela que lhe mostra o caminho e
castigando as duas outras, tornando-as pretas, o que significa que estas estão
cobertas pelo véu da inconsciência. O pecado delas foi se recusarem a mostrar a
Deus o caminho, e isso sugere que Deus precisa do homem para ajudá-lo. Ele pede
ao homem que seja um instrumento para alcançar uma consciência mais elevada.
No sentido místico, isso significa que a psique humana é o lugar onde Deus pode
se tornar consciente.
Exatamente pelo fato de as duas mulheres não
terem conseguido realizar tal tarefa, elas perdem sua essência humana e
tornam-se bruxas. Sob o véu obscuro da inconsciência, elas saem do seu papel de
representantes da consciência feminina que têm no começo da história e
desempenham o papel da anima negativa. Quando isso acontece, não se é
capaz de discriminar entre uma mulher inconsciente e a anima de um
homem. Psicologicamente não há distinção. Uma mulher que está perdida no mar do
inconsciente tem uma vida interior vaga e não tem compreensão crítica, nem
força de vontade. Esse tipo de mulher indefinida facilmente desempenha o papel
de anima para os homens. De fato, quanto mais inconsciente ela for,
melhor ela desempenha a anima. Esta é a razão pela qual algumas mulheres
são relutantes em se tornarem conscientes; se elas assim se tornarem, elas
perdem a habilidade de ser uma anima-feiticeira e, consequentemente, perdem o
poder sobre os homens. De modo similar, um homem que está mergulhado no
inconsciente comporta-se como o animus da mulher. Um homem possuído
(Hitler, por exemplo) tem todos os traços do animus — ele é levado pelas
emoções, é cheio de opiniões imponderadas, expressa-se incautelosa e
didaticamente e sempre em explosões emocionais.
A linda noiva branca é empurrada para a água e
nada sob a forma de um pato branco, enquanto Reginer, o animus cuja
tarefa era conduzi-la ao rei, o contato verdadeiro com o logos, é jogado
num poço de cobras. Porém, a sombra modesta do rei, o menino da cozinha, é
eficiente e revela a verdade.
Quando o rei corta a cabeça da ave, ela volta
novamente a ser uma linda mulher. Se um conteúdo psíquico não for reconhecido
no domínio humano, ele regressa ao domínio instintivo, como nós vimos no caso
de Snati-Snati. Depois de a bruxa e sua filha terem sido destruídas, um mandala
de quatro pessoas emerge: o rei, a noiva branca, Reginer libertado e o menino
da cozinha.
Apesar de muito poder ser dito sobre essa
história, eu a citei somente para mostrar como um fator que representa a
consciência de uma mulher pode, ao mesmo tempo, ser identificado como a anima
negativa de um homem.
Muitos contos de fada iluminam aspectos
diferentes ainda que contenham temas semelhantes tais como bruxas, madrastas e
reis, e sempre têm um processo semelhante, ou seja, a maneira enérgica de se
proceder, sendo isto bastante sugestivo. O fato de que os fios que correm
através dos contos seguem todos a mesma direção — de tal modo que muitos contos
podem ser ligados numa corrente circular, sendo um ampliação do outro — sugere
que a ordem à qual eles se referem é fundamental. Eu tenho a sensação de que
quando os contos de fada são colocados em grupos e interpretados em relação um
ao outro, eles representam na sua base um arranjo arquetípico transcendental.
Do mesmo modo que um cristal pode ser iluminado
de vários lados, assim também ura conto apresenta certos aspectos iluminados e
outros necessariamente obscuros. Por exemplo, em um conto certos arquétipos são
particularmente ressaltados, enquanto em outra história outros arquétipos
emergirão. Existem, também, grupos de contos referindo-se à mesma configuração
arquetípica.
É sedutor tentar criar um modelo abstrato da
estrutura geral do inconsciente coletivo representando-o como um cristal,
único em si mesmo, mas que se manifesta em 10.000 diferentes contos de fada.
Entretanto, eu não acredito que isso seja possível, pois sou levada a crer que
nós estamos lidando com uma ordem transcendental semelhante ao átomo, o qual,
segundo os físicos, não pode ser descrito como ele é em si mesmo, porque os
modelos tridimensionais distorcem-no inevitavelmente. Enquanto que o esquema
que nós fazemos não tem senão um valor relativo, o evento de quatro dimensões
jamais poderá ser captado.
Embora a ordem interior se recuse a ser
esquematizada, é possível que se tenha uma ideia a respeito dela observando
que todas as espécies de contos, de uma forma ou de outra, circundam o mesmo
conteúdo — o SELF.
TERCEIRA PARTE
8
Bibliografia adicional
Além dos trabalhos citados nos capítulos
precedentes eu gostaria de mencionar, ainda, um material adicional que pode
ser útil ao estudante. É lógico que não é uma lista completa, mas tem o
propósito de iniciar o estudante no campo dos contos de fada. Acredito que,
primeiramente, é necessário se utilizar de uma coleção de contos de fada tais
como a editada pela University of Chigago Press e pela Routledge and Kegan
Paul, em Londres, ou ainda, a coleção mais apropriada, em língua alemã, da qual
foram tiradas a maior parte das minhas referências: Die Màrchen der
Weltliteratur (Diederichs Verlag — Dusseldorf/Kõln). Os contos diferem conforme
o editor; alguns eliminam algumas partes ou adulteram passagens, de maneira
chocante. É aconselhável comparar um conto com suas diferentes versões.
Para os que leem alemão, eu recomendaria Hand-wõrterbuch
des Deutschen Aberglaubens, de H. Báchtold-Staáubli (De Gruyter, Berlim,
1942). Essa edição contém uma quantidade muito grande de versões sobre cada um
dos temas. Ela apresenta uma boa organização metodológica, com uma boa
bibliografia no fim de cada artigo; menciona também temas religiosos e mitológicos
e só não abarca as superstições folclóricas.
Um outro livro excelente é o Handwòrterbuch
des Deutschen Mãrchens, de J. Bolte e L. Mackensen, embora vá somente até a
interrupção feita com uma carta de M. Publications no final da última guerra,
mas nos anos 60 foi revista.
Há, também, uma nova série, de bom nível, quase
toda publicada pela Erich Peuckert, intitulada Hand-wõrterbuch der Deutschen
Sage. Consiste num dicionário de sagas, ao invés de contos de fada, mas
como estes campos estão entrelaçados naturalmente encontram-se referências ao
estudo dos contos de fada.
Um outro livro, em alemão, que pode ser importante,
é o Enzyklopádie der Klassischen Alterum-swissenschaft, de
Pauly-Wissova. Nesta enciclopédia há uma grande quantidade de ampliações relacionadas
com a mitologia greco-romana. Veja
também: H. W. Haussig, Wòrterbuch der Mythologie (Klett Verlag,
Stuttgart).
Para os que leem inglês, eu recomendo somente Motif
Index ofFolk Literature, de Stith Thompson (Indiana University Press—seis
volumes). Temas específicos podem ser encontrados no índex da Encyclopedia
of Religion and Ethics, de J. Hastings. M. Lurker organizou diversos
volumes chamados Bibliographie Zur Symbolkunde (Baden-Baden, Heitz
Verlag, 1964). Eles contêm tudo o que foi publicado sobre símbolos e temas
específicos. A Encyclopedia of Mythology da Larousse é bastante pobre,
mas fornece algumas ampliações, assim como o Standard Dictionary of
Folklore, Mythology and Legend, de Funk e Wagnalls. Um material bastante
variado sobre ampliações da mitologia pode ser encontrado no índex de Golden
Bough, de Frazer. Essa coleção é antiquada e as teorias ultrapassadas, mas
os fatos são bem relatados.
Um livro no qual se pode encontrar um farto
material de grande valor é The Origins of European Thought, de R. B.
Onians, que trata do corpo, da mente, da alma, do mundo, do tempo e do destino
(Cambridge, 1952). Onians é um estudioso do clássico, mas reuniu um material primitivo
e religioso comparativo onde pode-se encontrar o significado de cada parte do
corpo bem como de alguns comportamentos involuntários, tais como coçar a
barriga. O pensamento europeu tem origens bastante interessantes! O livro tem
um índice excelente e muito pode ser encontrado para a interpretação de sonhos.
Um material comparativo muito interessante é o
livro Themis, de Jane Harrison, mas aqui também não considere as teorias
mas só os fatos, que são válidos.
A escola freudiana também tem um trabalho com
relação a temas mitológicos, principalmente a partir do complexo de Édipo.
Entre eles, podem-se citar: Traum und Mythos, de Karl Abraham (Leipzig,
1917); os estudos de Otto Rank em Der doppelganger (Leipzig, Wien,
1919); Das Incest Motiv in Dichtung und Sage (Wien, 1912), Der Mythos
uon der Geburt des Helden (Leipzig, Wien, 1922); e Spiegelzauber, de
Geza Roheim (Leipzig, Wien, 1919). Muitos desses estudos e outros posteriores
aparecem em língua inglesa.
Existe um livro sobre a história dos contos de
fada de Jan de Vrie, intitulado Forschungsgeschichte der Mythologie (Freiburg
München, 1961) que está muito incompleto. Jung está mal apresentado, alguns
cientistas são omitidos e o livro só dá uma visão superficial do campo.
Jung sempre enfocou a importância dos símbolos
arquetípicos e seu primeiro trabalho extensivo nesse campo é Symbols of
Transformation (C.W.5), onde ele inclui uma excelente bibliografia desse
nosso campo. Ele também encorajou seus colaboradores tais como F. Ricklin
(Sênior) e Alfouns Maeder a estudarem os contos de fada. De Franz Ricklin é o Wunscherfüllung
und Symbolik im Mãrchen (Leipzig, Wien, 1908), cuja tradução inglesa de W.
A. White intitula-se Wishfulfilment and Symbolism in Fairy Tales (Nervous
and Mental Disorder Monogram Series, 21, N.Y., 1915).
Jung ainda escreveu sobre contos de fada e
temas correlates nos ensaios do volume 9.I, da Collected Works — por
exemplo: The Phenomenology of the Spirit in Fairy Tales e On the Psychology of
the Trickster-Figure.
A apresentação mais condensada das ideias de
Jung sobre mitologia encontra-se também nesse volume (C.W.9,I) — On the
Psychology of the Child Archetype. Este artigo apareceu anteriormente no livro Introduction
to a Science of Mythology, de Jung e Kerenyi. Neste livro, Kerenyi trata
sobre o Kore divino num artigo e em outro sobre a criança divina, e Jung tece
comentários sobre ambos. Os primeiros capítulos do comentário são de caráter
geral, não se detendo apenas na criança divina. Porém, aqui, podem-se encontrar
as ideias de Jung sobre a mitologia mais clara e sinteticamente apresentadas, o
que não ocorre em outros livros.
Para ampliações no campo da mitologia clássica,
existem os livros de Kerenyi, a saber: The God of the Greeks e The
Heroes of the Greeks, ambos com farto material. Eu também recomendo
Shamanism, de Mircea Eliade, onde são tratados os temas da escada do centro do
mundo, da corda, do fogo, do ferro etc. As outras publicações de M. Eliade
também são valiosas.
Na língua alemã, eu carinhosamente recomendo os
cinco volumes do livro Anmerkungen zu den Kinder und Hausmãrchen der Brüder
Grimm, de J. Bolte e G. Polivka (Leipzig, 1912-1932). Esse livro é muito
precioso, pois do lado de cada conto de fada de Grimm, Bolte apresenta todos os
contos paralelos, versões que ele encontrou até aquela época, o que é um número
enorme. Existem versões japonesas, da Polinésia e de todos os tipos. De certa
forma, esse livro é semelhante ao de Stith Thompson, porém é de leitura mais
fácil, pois Stith Thompson organizou tudo em números, tornando o livro um
aparato complicado, enquanto o outro livro apresenta o conto de maneira concisa
e, em seguida, suas variações.
Deve-se, também, consultar o Márchen und
Tiefenpsychologie de W. Laiblin (Darmstadt, 1969), onde se encontra um
levantamento das escolas de interpretação da psicologia profunda e as críticas
dos folcloristas àquelas teorias. Eu recomendo, em especial, a segunda edição
do Volksmàrchen und Volkssage (Bern, 1966).
Como bibliografia mais recente, em inglês,
pode-se citar Folklore Fellows Communications (Helsinki), Journal
ofFolklore, editado em Londres (também em outras línguas), e Fábula (Berlin).
Um estudo mais volumoso sobre contos de fada, no qual eu tomei parte,
apresentando principalmente o ponto de vista junguiano, é Symbolik des
Màrchens, de Hedwig von Beit (3 volumes, Bern).
9
Perguntas e respostas
Pergunta: Qual o modelo que um
autor de literatura de contos de fada, como Andersen, segue?
Dra. uon Franz: Bem,
Andersen certamente é um grande poeta, porém, na minha opinião, bastante
neurótico. E eu não consigo ler suas histórias porque a neurose dele me
perturba tanto que é como uma faca raspando no prato. Eu sou sensível às suas
colocações mórbidas e sentimentais. Sua neurose principal não é um problema
dele somente, mas de toda a Escandinávia: um terrível problema quanto a sexo,
decorrente de uma proibição cristã, rígida e imposta, havendo subjacente um
temperamento pagão bastante selvagem. Esta é uma tensão encontrada em todos os
países nórdicos e Andersen teve essa neurose coletiva de uma forma extensa e
extrema. Ele nunca se casou e nunca foi capaz de tocar uma mulher. Ele morreu
virgem, mas estava tão tomado de fantasias sexuais que quase enlouqueceu e no
seu leito de morte praguejou e discursou obscenidades. Pode-se mesmo dizer que,
na medida em que seu conflito não era só pessoal mas de toda uma coletividade
do Norte, os seus contos de fada, então, tiveram o sucesso que se sabe. Sua
neurose era um problema coletivo que ele sentiu com grande dor e de um modo
muito mais profundo que a maioria das pessoas, pois era uma pessoa muito sensível.
Seus contos de fada podem se tornar presentes na consciência coletiva numa determinada
época e podem ser, então, recontados, por todo mundo; ou pode ser que nada
disso ocorra, pois o seu conteúdo é muito específico.
Eu creio que um contador de histórias pode
expressar um problema que é comum às pessoas e isso pode se tornar um conto de
fada; mas se as histórias são muito impregnadas pela neurose pessoal do autor,
elas não se tornarão populares: as pessoas sadias não as aceitariam.
Comentário: Com relação às
discordâncias dos intelectuais que dizem que a psicologia junguiana não é
"científica", a ideia prevalecente é que a ciência precisa ser
universal e, enquanto se considera o tom emocional e pessoal do indivíduo, o
que se faz não é ciência, mas arte; desta forma, parece-me que a psicologia
junguiana é uma ciência e uma arte.
Dra. von Franz: Sim,
você tem razão. O que se tem a acrescentar a isso é que uma emoção não é
necessariamente não universal, se considerarmos a hipótese do arquétipo. Se eu
tenho uma emoção pessoal que surgiu através de uma constelação arquetípica,
então ela é, também, uma emoção universal. Dessa forma, os cientistas erram
quando identificam sentimento e emoção como puramente subjetivos. Eu mesma
posso ter uma forte emoção pessoal que é uma emoção arquetípica. Muitas pessoas
podem ter essa emoção e, nesse sentido, ela é universal.
Pergunta: Em outras palavras,
quando as pessoas apresentam um sonho arquetípico, o analista experienciado
será capaz de levantar materiais análogos?
Dra. von Franz: Sim.
Algumas pessoas podem chegar a um estado de expressão emocional completamente
pessoal, sendo quase que totalmente engolfadas por um sonho terrível ou por um
sincronismo de eventos: ela conta um drama pessoal inesquecível que pode afetar
toda a análise, para melhor ou para pior. Mas o analista, conhecendo o material
comparativo, pode notar algo de universal e ver, então, que aquilo não é algo
puramente subjetivo. Há uma universalidade da emoção, uma universalidade de
reações afetivas que devem ser levadas em consideração. Tem-se que aprender,
aos poucos, a diferenciar entre o que se chama de sentimentos condicionados e
pessoais e as reações afetivas gerais.
Digamos, por exemplo, que eu tenho um complexo
maternal negativo e que reajo de maneira muito violenta diante de um tema
mitológico sobre a mãe terrível. Todo mundo pode dizer, com razoável
propriedade: "Oh! Sim, nós sabemos por quê! "Mas, apesar disso, o
tema é também arquetípico, e mesmo as pessoas que não têm um complexo maternal
negativo reagem de forma semelhante. Então, se eu me conheço através da
análise, eu posso dizer: "Agora minha reação é neurótica e pessoal; eu
passei por uma experiência pessoal que me marcou e que me fez neurótico, mas
essa é também uma reação humana". Na verdade, então, somente quando um
indivíduo passou por uma análise e tornou-se consciente (o quanto possível) das
diferentes nuanças de suas reações é que ele é capaz de diferenciar os
sentimentos e saber quando a emoção sentida é puramente pessoal e quando é
universalmente válida. Embora o indivíduo possa estar mais fortemente afetado
por sua história pessoal, a sua reação é humana e universal e assim deve ser
considerada, e não somente como algo subjetivo. Alguns intelectuais chamam toda
emoção e sentimento de subjetividade não-científica.
Pergunta: Se eu bem a compreendi,
a senhora inclui Erich Fromm entre o grupo de intelectuais? (Veja cap. 1,
p.18.)
Dra. von Franz: Ele
não pertence ao mesmo grupo de Graves e Eliade e dos editores das revistas Antaios
e Symbolon, mas algumas de suas interpretações seguem o mesmo caminho
intelectual de identificar tudo com tudo, dessa forma caindo na mesma
armadilha. Eu não o conheço, mas ele me parece ser um tipo intelectual
intuitivo e ampliar seu material de maneira excessiva, como também faz Robert
Graves. Toda a imagem arquetípica é o centro de uma rede de conexões.
Intelectualmente, pode-se fazer conexões sem fim, mas com a ajuda da
função-sentimento pode-se escolher aquilo que é pertinente e deixar de lado o
que não estiver tão próximo. Quando se tem 2.000 ampliações, é necessário que
se escolha, com a ajuda do sentimento, quais os temas que se sente mais
próximos ou melhores, os que mais esclarecem o contexto do conto de fada. Isso
não pode ser feito sem sentimento porque não há regras intelectuais para isso.
De 2.000 lobos encontrados para ampliar um conto de fada, eu não lhes poderia
dar uma regra intelectual que dissesse qual lobo deve ser considerado e qual
deverá aparecer somente em nota de rodapé.
Comentário: Eu acho difícil
reconciliar esse ponto de vista com o que eu conheço de Erich Fromm e de seu
interesse no amor na relação terapêutica.
Dra. von Franz: Bem,
ocorre que as pessoas que enfatizam tanto a arte de amar geralmente enfatizam
algo que é auto-evidente para outras pessoas. Existe toda uma escola nos
Estados Unidos e existem psiquiatras americanos como Sullivan e Rosen, por
exemplo, que dão ênfase muito grande ao rapport, dizendo que não pode
haver terapia sem amor. Isso, na verdade, é um movimento compensatório, pois,
por um tempo, os terapeutas tentaram manter-se dentro dos seus aventais
brancos, distantes dos seus pacientes. Nosso ponto de vista é que se você não
é capaz de gostar de um paciente, você não lhe deveria conceder sequer uma hora.
O Dr. Jung sempre dizia que se ele não conseguisse gostar de um paciente, ao
menos em alguns aspectos (ainda que não gostasse de outros), ele nunca o
aceitaria para análise. Se você não tiver amor, nada pode acontecer. Para nós
isso é auto-evidente, e soa muito estranho quando as pessoas começam a repetir
isso tantas vezes, escrevendo livros e livros sobre o assunto. A seguir, eles
irão escrever livros sobre a necessidade do sono ou que comer é algo
extremamente importante; ou mesmo, que se deve assoar o nariz (ainda que seja
um terapeuta), e que uma análise pode ser toda comprometida se assim não se
fizer e o nariz começar a escorrer; e ter essa coragem ética é existencialmente
essencial!
Pergunta: A senhora sempre tem
sonhos que a ajudam numa interpretação?
Dra. von Franz: Somente
se eu não compreendi suficientemente um conto; então os sonhos emergem. Tome
um conto de fada e tente, e você verá. Eu nunca vi ninguém que interpretasse um
conto de fada com uma certa paixão sem que seu inconsciente reagisse. Por
alguma razão, o inconsciente é bastante ávido em se tratando de interpretação
de mitos; é que os mitos fazem cócegas no inconsciente.
Pergunta: Mas o sonho demoraria
muito para aparecer?
Dra. von Franz: Não
tanto, segundo minhas observações; mas eu não posso propor uma regra absoluta.
Pode-se dizer que usualmente ocorre uma perturbação emocional no inconsciente
e, se você sair da trilha, terá reações curiosas advindas do inconsciente.
Pergunta: E essas são sempre
confiáveis?
Dra. von Franz: Sim,
eu sempre confio nelas. Eu não conheço nada melhor. Desde que não haja nenhum
critério absoluto de prova, o melhor que se pode fazer é dizer que a
interpretação me é satisfatória, que me faz feliz e saudável, e se meu
inconsciente não tem nada mais a dizer, então isso é tudo que posso fazer. Mas,
naturalmente, esta não é nunca a última palavra.
ÍNDICE
Introdução à coleção "Amor e Psique"
Primeira parte
Uma Introdução à psicologia dos contos de fada
1. Teorias dos contos de fada
2. Contos de fada, mitos e outras histórias arquetípicas
3. Um método de interpretação psicológica
4. A interpretação de um conto: "As três
penas"
5. "As três penas" (Continuação)
6. "As três penas" (Conclusão)
Segunda parte
7. Sombra, anima e animus nos
contos de fada
Terceira parte
8. Bibliografia adicional
9. Perguntas e respostas
Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo
Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício
de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de
meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a
sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer
circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto
distribua este livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a
possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o
autor e a publicação de novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure:
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um
prazer recebê-lo em nosso grupo.
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
[1] N. da T.: Pedra polida com desenhos, de valor totêmico
entre certas tribos australianas. Acredita-se que ela encerre a duplicação do
espírito de alguém ou a alma de algum ancestral.
[2] N. da T.: Em francês, no original.
[3] N. da T.: Considerar a origem suíça do texto.
[4] "Do tempo assim movo o tear milenário / E da
Divindade urdo o vivo vestuário."
[5] N. da T.: Suíça.
[6] N. da T.: "A interpretação psicológica do dogma da
Trindade". Já publicado em português.
[7] N.T.: "O símbolo da transformação na Missa".
Editado em Português.
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