20/01/2014

A interpretação dos contos de fadas



Coleção AMOR E PSIQUE




O feminino
Aborto - perda e renovação, Eva Pattis
A prostituta sagrada, N. Q. Corbett
As deusas e a mulher, J. S. Bolen
A virgem grávida, Marion Woodman
Caminho para a iniciação feminina, S. B. Perera
Destino, amor e êxtase, J. A. Sanford
Os mistérios da mulher, Esther Harding
O medo do feminino, E. Neumann
Variações sobre o tema mulher, J. Bonaventure
O masculino
A busca fálica, J. Wyly
A tradição secreta da jardinagem, G. Jackson
Castração e fúria masculina, E. Monik
Curando a alma masculina, G. Jackson
Falo, a sagrada imagem do masculino, E. Monik
Hermes e seus filhos, R. L. Pedraza
Os mistérios da sala de estar, G. Jackson
Sob a sombra de Saturno, J. Hollis
Psicologia e religião
A doença que somos nós, J. P. Dourley
A jornada da alma, J. A. Sanford
Bíblia e Psique, E. F. Edinger
Deus, sonhos e revelação, M. Kelsey
Do inconsciente a Deus, E. van der Winchel
Uma busca interior em Psicologia e reli­gião, J. Hillman
Sonhos
Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach
Breve curso sobre os sonhos, R. Bosnak
Sonhos e ritual de cura, C. A. Meier
Sonhos de um paciente com AIDS, R. Bosnak
Os sonhos e a cura da alma, J. A. Sanford
Sonhos e gravidez, M. R. Gallbach
Envelhecimento
A passagem do meio, J. Hollis
A solidão, A. Storr
A velha sábia, R. Weaver
Despertando na meia-idade, K. A. Brehony
Envelhecer, J. R. Pretat
Meia-idade e vida, A. Bermann
Menopausa, tempo de renascimento, A. Mankowitz
O velho sábio, P. Middelkoop
Contos de fada e histórias mitológicas
A individuação nos contos de fada, M.-L. von Franz
A interpretação dos contos de fada, M.-L. von Franz
A sombra e o mal nos contos de fada, M.-L. von Franz
Gato, M.-L. von Franz
O que conta o conto?, J. Bonaventure
O significado arquetípico de Gilgamesh, R. S. Kluger
O puer
O livro do puer, J. Hillman
Puer aeternus, M.-L. von Franz
Relacionamentos
Amar, trair, A. Carotenuto
Eros e pathos, A. Carotenuto
Incesto e amor humano, R. Stein
Não sou mais a mulher com quem você se casou, A. B. Filenz
No caminho para as núpcias, L. S. Leonard
Os parceiros invisíveis, J. A. Sanford
Sombra
Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. Sanford
Os pantanais da alma, J. Hollis
Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann
Outros
Ansiedade cultural, R. L. Pedraza
Alimento e transformação, G. Jackson
Conhecendo a si mesmo, D. Sharp
Consciência solar, consciência lunar, M. Stein
O caminho da transformação, E. Perrot
Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarô, anônimo
O despertar de seu filho, C. de Truchis
No espelho de Psique, E. Neumann
Psicoterapia, M.-L. von Franz
Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz
Rastreando os deuses, J. Hollis









MARIE-LOUISE VON FRANZ

A INTERPRETAÇÃO DOS CONTOS DE FADA

Título original
L'lnterprétation des "contes de Fée"
© Marie-Louise von Franz, 1981
Tradução
Maria Elci Spaccaquerche Barbosa
Revisão Ivo Stornioio
Coleção AMOR E PSIQUE dirigida por
Dr. Léon Bonaventure - Pe. Ivo Stornioio - Profa. Maria Elci S. Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


Franz, Marie-Louise von, 1915-
A interpretação dos contos de fada / Marie-Louise von Franz ; [tradução Maria Elci Spaccaquerche Barbosa; revisão Ivo Stornioio]. São Paulo : Paulus, 1990. (Coleção amor e psique)
Bibliografia.
ISBN 85-349-1464-8
1. Contos de fada História e crítica 2. Psicanálise e folclore I. Título. II. Série.
90-0587 CDD-398.042
-150.195

índices para catálogo sistemático:
1. Contos de fada: História e crítica 398.042
2. Folclore e psicanálise 150.195
3. Psicanálise e folclore 150.195

©PAULUS-1990
Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 Tel. (11)5084-3066 www.paulus.com.br editorial @ paulus.com.br
ISBN 85-349-1464-8
CONTRA-CAPA
Marie-Louise Von Franz, uma das mais criativas discí­pulas de Jung, foi também sua colaboradora por mais de vinte e cinco anos, tendo com ele assinado vários traba­lhos. Especialista de fama mundial em interpretação de contos de fada foi fundadora do Instituto CG. Jung, lá lecionando.
Analista de longa experiência iniciou seus estudos no campo da filologia.
A Interpretação dos contos de fada contém as ideias básicas da autora sobre o assunto, preparando o leitor para seus livros subsequentes. Trata-se de um exame completo dos estudos já realizados nesse campo, retomando as várias teorias sobre a origem, a natureza e a interpreta­ção dos contos de fada; apresenta uma análise detalhada de um tema específico e um capítulo especial sobre anima, animus e sombra.
INTRODUÇÃO A COLEÇÃO AMOR E PSIQUE
Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se lugar novo de experiência. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram da falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primei­ro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mão para a teologia.
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle­xões durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimen­sões diferentes de nossa existência para podermos reen­contrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de sacerdotes capazes de entenderem novamente a lin­guagem da alma", como C.G. Jung o desejava.
Léon Bonauenture

PRIMEIRA PARTE

UMA INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA DOS CONTOS DE FADA

1
Teorias dos contos de fada
Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qual­quer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva. Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado, atingimos as estru­turas básicas da psique humana através de uma exposi­ção do material cultural. Mas nos contos de fada existe um material cultural consciente muito menos específico e, consequentemente, eles espelham mais claramente as estruturas básicas da psique.
Segundo Jung, as concepções de cada arquétipo são, na sua essência, um fator psíquico desconhecido, e por isso não há possibilidade de traduzir seu conteúdo em termos intelectuais. O melhor que podemos fazer é cir­cunscrevê-lo com base em nossa própria experiência psicológica e a partir de estudos comparativos, trazendo à luz toda a rede de associações às quais as imagens arquetípicas estão interligadas exatamente como apare­cem. O conto de fada é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, o seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história. Metaforica­mente falando, o inconsciente está na mesma posição de alguém que teve uma visão ou experiência original e quer compartilhá-la. Pelo fato de ser um evento que nunca foi formulado conceitualmente, ele não sabe como se expres­sar. Quando uma pessoa está nessa situação, faz diversas tentativas para compreender sua experiência e tenta evocar, por apelo intuitivo e analogia a materiais familia­res, alguma resposta em seus ouvintes; e não se cansa nunca de expor sua visão, até sentir que o conteúdo desta faz algum sentido para eles. Do mesmo modo, podemos propor a hipótese de que cada conto de fada é um sistema relativamente fechado, composto por um significado psi­cológico essencial, expresso numa série de figuras e eventos simbólicos, sendo desvendável através destes.
Depois de trabalhar muitos anos neste campo, che­guei à conclusão que todos os contos de fada tentam des­crever apenas um fato psíquico, mas este fato é tão com­plexo, difícil e distante de se representar em seus diferentes aspectos, que centenas de contos e milhares de versões (como variações musicais), são necessários até que esse fato desconhecido penetre na consciência, sem que isso consiga exaurir o tema. Este fato desconhecido é o que Jung chama de SELF, que é a totalidade psíquica de um indivíduo e também, paradoxalmente, o centro regulador do inconsciente coletivo. Cada indivíduo e cada nação têm suas próprias formas de experienciar esta realidade psíquica.
Diferentes contos de fada fornecem quadros de diferentes fases dessa experiência. Algumas vezes eles se atêm mais aos primeiros estágios que lidam com a expe­riência da sombra, apresentando somente um pequeno vislumbre do que vem depois. Outros contos enfatizam a experiência de animus e anima e das imagens de pai e mãe por trás deles, não se fixando no problema anterior da sombra, nem no que viria a seguir. Outros enfatizam o tema do tesouro inacessível ou inalcançável, e das experiências centrais. Em termos de valor não há dife­renças entre esses contos, porque no mundo arquetípico não há hierarquia de valores pela simples razão de que cada arquétipo é, na sua essência, somente um aspecto do inconsciente coletivo, ao mesmo tempo que representa, também, o inconsciente coletivo como um todo.
Cada arquétipo é um sistema energético relativa­mente fechado, a veia energética pela qual correm todos os aspectos do inconsciente coletivo. Isto não quer dizer que a imagem arquetípica seja uma imagem estática, pois ela é sempre e ao mesmo tempo um processo típico e completo, incluindo outras imagens de uma maneira específica. Um arquétipo é um impulso psíquico específi­co que produz seus efeitos como um único raio de irradia­ção e, ao mesmo tempo, um campo magnético expandin­do-se em todas as direções. Então, a energia psíquica de um "sistema" particular de um arquétipo está em relação com todos os outros arquétipos. Consequentemente, embora tenhamos que reconhecer a característica vaga e indefinida de uma imagem arquetípica, precisamos no» disciplinar para polir arestas que turvam sua clareza.
Precisamos nos aproximar tanto quanto possível do caráter específico e determinado de cada imagem e tentar expressar o verdadeiro caráter específico da situação psíquica que ela contém.
Antes de tentar explicar a forma junguiana especí­fica de interpretação, vou entrar rapidamente na história da ciência dos contos de fada e nas teorias das diferentes escolas e sua literatura. Pelos escritos de Platão sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas crianças histórias simbólicas — "mythoi". Desde então, os contos de fada estão vinculados à educação de crianças. Na antiguidade, Apuleio, um escritor e filósofo do século 2 d.C., escreveu sua famosa novela O asno de ouro, um conto de fada chamado Amor e Psyche, uma história do tipo A bela e a fera. Este conto de fada tem o mesmo padrão daqueles que se podem ainda encontrar, hoje em dia, na Noruega, Suécia, Rússia e muitos outros países. Consequentemente, pode-se ao menos concluir que este tipo de conto de fada (da mulher que redime seu amado da forma animal) existe praticamente inalterado há 2.000 anos. Mas temos uma informação ainda mais antiga, porque os contos de fada também foram encontrados nas colunas e papiros egípcios, sendo um dos mais famosos o dos dois irmãos, Anúbis e Bata. Ele se desenvolve de modo paralelo a todos os contos sobre "dois irmãos" que se pode coletar nos países europeus. Nossa tradição escrita data aproximadamente de 3.000 anos e o que é mais interes­sante, os temas básicos não mudaram muito. Ainda mais, de acordo com a teoria do padre W. Schimidt: "Der Ursprung Der Gottesidee", existem indícios de que al­guns temas principais de contos se reportam a 25.000 anos a.C, mantendo-se praticamente inalterados.
Até os séculos 17 e 18, os contos de fada eram — e ainda são nos centros de civilização primitivos e remotos — contados tanto para adultos quanto para crianças. Na Europa, eles costumavam ser a forma principal de entre­tenimento para as populações agrícolas na época do inverno. Contar contos de fada tornou-se uma espécie de ocupação espiritual essencial. Chegou-se mesmo a dizer que os contos de fada representavam a filosofia da roda de fiar (Rocken Philosophie).
O interesse científico por eles começou no século 18, com Winckelmann, Haman e J. G. Herder. Outros, como K. Ph. Moritz, deram aos contos de fada uma interpreta­ção poética. Herder dizia que tais contos continham as re­manescências de uma velha crença há muito enterrada, expressas nos símbolos. Neste pensamento pode-se notar um impulso emocional — o neopaganismo que começou a se movimentar na Alemanha na época da filosofia de Her­der e que floresceu de uma maneira muito desagradável há pouco tempo atrás. A insatisfação com os ensinamentos cristãos e a aspiração por uma sabedoria mais vital, terre­na e instintiva, começou nessa época; mais tarde podemos perceber isso mais explicitamente na escola romântica alemã.
Foi esta busca religiosa por alguma coisa que pare­cia estar faltando nos ensinamentos cristãos oficiais, que primeiro induziu os famosos irmãos Jakob e Wilhelm Grimm a colecionar contos folclóricos. Antes disso, os contos de fada haviam sofrido o mesmo destino do próprio inconsciente, ou seja, eram simplesmente aceitos. As pessoas aceitam o inconsciente e vivem nele, mas não querem admitir sua existência. Elas usam-no, por exem­plo, em mágicas e talismãs. Se têm um sonho bom, elas o exploram, mas não o levam tão a sério. Para tais pessoas, um conto de fada ou um sonho não necessita ser analisado apuradamente, podendo ser distorcido; visto não ser material "científico" pode-se perfeitamente torcê-lo um pouco, tendo-se assim o direito de selecionar aquilo que mais convém e descartar o resto.
Essa atitude desonesta, não científica, estranha e desconfiada prevaleceu por muito tempo em relação aos contos de fada. Então, sempre digo aos estudantes para buscarem o original. Pode-se obter, ainda, edições dos contos de Grimm nas quais algumas cenas são omitidas e outras, de outros contos, são enxertadas. O editor ou tradutor é muitas vezes impertinente o bastante para distorcer a história sem sequer fazer uma nota de rodapé. Eles não ousariam fazer isso com o épico Gilgamesh ou um texto dessa espécie, mas contos de fada parecem ser um campo aberto de modo que alguns se sentem livres para tomar qualquer liberdade.
Os Irmãos Grimm escreveram os contos de fada literalmente, como eram contados pelas pessoas das redondezas, mas mesmo eles não resistiram algumas vezes a misturar um pouco as versões, embora fizessem isso de uma maneira muito escrupulosa. Eles foram bastante honestos para mencionar isso em notas de rodapé ou em cartas para Achim von Arnim. Mas mesmo os Irmãos Grimm não tiveram aquela atitude que os modernos escritores de folclore e os etnólogos tentam seguir, escrevendo a história literalmente, deixando os vazios e os paradoxos aparecerem, podendo soar tão paradoxais quanto nos sonhos.
A coleção dos contos de fada que os Irmãos Grimm publicaram foi um tremendo sucesso. Devia haver um for­te interesse emocional e inconsciente, pois como cogume­los começaram a brotar outras edições em todo canto, co­mo, por exemplo, a coleção de Perrault, na França. Em to­dos os países, pessoas começaram a colecionar histórias e contos de fada nacionais. De repente todo mundo estava perplexo com o número enorme de temas que se repetiam. O mesmo tema, em milhares de variações, apareciam tanto nas coleções da França como da Rússia, Finlândia e Itália. Com isso, ressurgiu o primeiro interesse emocional de Herder em pesquisar as remanescências de uma "antiga sabedoria" ou "fé". Os Irmãos Grimm, por exemplo, usaram tais comparações como "um cristal quebrado cujos fragmentos ainda se podem encontrar espalhados na grama".
Paralelamente aos Irmãos Grimm, surgiu a então chamada escola simbólica, cujos principais representan­tes são Chr. C. Heyne, F. Creuzer e J. Gõrres. A ideia básica era de que os mitos expressavam simbolicamente realizações e pensamentos filosóficos mais profundos; e eram um ensinamento místico de algumas das verdades mais profundas em relação a Deus e ao mundo (cf. L. W. von Bülow, Die Geheimsprache der Màrchen ou P. L. Stauff, Mãrchendeutungen, 1914). Embora esses investi­gadores tivessem algumas ideias interessantes, as suas explicações parecem-nos agora muito especulativas. Surgiu então um interesse mais histórico e científico, uma tentativa de responder à questão de por que tantos temas repetitivos. Visto não haver naquela época hipóte­se alguma sobre um inconsciente coletivo comum, ou sobre uma estrutura comum da psique humana (embora alguns pesquisadores mostrassem isso, ainda que indire­tamente) surgiu um interesse apaixonado em descobrir onde haviam se originado os contos de fada e quando teriam migrado. Theodor Benfey (Kleinere Schriften zur Màrchen Forschung, Berlim, 1894) tentou provar que todos os temas dos contos de fada se originaram na índia e migraram para a Europa, enquanto outros como Alfred Jensen, H. Winkler e E. Stucken argumentavam que todos os contos de fada eram de origem babilônica e que tinham se espalhado pela Ásia Menor e de lá para a Europa. Muitos tentaram construir tais teorias. Um dos resultados foi a criação do Centro Folclórico, a escola finlandesa, cujos primeiros representantes foram Kaarle Krohn e Antti Aarne. Estes dois homens afirmavam que era impossível determinar um país somente onde os contos de fada teriam se originado e que diferentes contos poderiam provir de diferentes países. Eles organizaram coleções de contos de fada do mesmo tipo, partindo do pressuposto que de todos os contos "da bela e da fera", de todos os "de animal salvador" etc., a versão melhor e mais rica, a mais poética e melhor expressa, seria a original, e todas as outras seriam derivações. Ainda há, hoje em dia, quem pesquise nessa linha, mas parece-me que a hipótese não pode sobreviver por muito tempo, pois sabemos que o fato de os contos de fada serem manuseados não significa necessariamente a degeneração dos mesmos, pode até mesmo trazer a sua melhora. Consequentemente, para mim, a escola finlandesa fornece-nos uma seleção de temas muito útil, mas não precisamos concordar com suas deduções. O principal livro de A. Aarne, Verzeichnis der Mãrchentypen, foi publicado na Inglaterra sob o título Types of Folk Talers (Helsinki, 1961).
Ao mesmo tempo, houve um movimento liderado por Max Müller que tentou interpretar os mitos como imitações dos fenômenos naturais, tal como o sol e suas diferentes aparições (mito solar, Frobenius), a lua (o mito lunar, P. Ehrenreich), a aurora (Stucken et Gubernatis), a vida da vegetação (Mannhardt) e a tempestade (Adal­bert Kuhn).
Já no século 19, algumas pessoas começaram a pesquisar em outra direção, e aqui precisa ser menciona­do um homem que é raramente lembrado, embora esteja presente na minha memória como alguém de grande mérito; ele é Ludwig Laistner, que escreveu Das Ràtsel der Sphinx (Berlim, 1889). A sua hipótese era que os temas básicos dos contos de fada e folclóricos derivam de sonhos. Mas ele se concentra principalmente em temas de pesadelos. Basicamente, o que ele tenta fazer é mostrar uma ligação entre a ocorrência repetida de sonhos típicos e temas folclóricos, apresentando um material interes­sante para provar seu ponto de vista. Embora não inte­ressado no folclore, o etnólogo Karl von der Steinen, na mesma época, tentou no final de seu livro Voyage to Central Brazil, explicar que as crenças mais sobrenatu­rais e mágicas dos primitivos que ele estudara, provi­nham de experiências de sonhos, pois é uma maneira típica do comportamento primitivo considerar a experiên­cia elementar, mas muitos pensamentos nacionais indi­cam real e verdadeira. Por exemplo, se alguém sonha que esteve no céu, onde conversou com uma águia, é muito claro e justo para ele contar isso na manhã seguinte como um fato, sem mencionar que ele sonhou isso, e de acordo com Von Der Steinen, é dessa forma que tais histórias se originam. Um outro estudioso, Adolf Bastian (Beitrãge zur vergheichenden Psychologie, Berlim, 1868), tinha uma teoria interessante, dizendo que todos os temas mitológicos básicos são o que ele denominou de "pensa­mentos elementares" da espécie humana. Sua hipótese era de que a espécie humana tem um estoque de Elementargedanken que não migra, mas é congênito a cada indivíduo; e que esses pensamentos elementares apare­cem com diferentes variações na índia, Babilônia e mes­mo, por exemplo, nas histórias dos Mares do Sul. Ele chamou as histórias específicas Vòlkerzedanken (pensa­mentos nacionais). A ideia dele se aproxima claramente da ideia de Jung sobre arquétipo e imagem arquetípica, sendo o arquétipo a disposição estrutural básica para produzir uma certa narrativa mítica, a imagem específica sob a qual o arquétipo toma forma, sendo denominada "imagem arquetípica". Os pensamentos elementares, de acordo com Bastian, são um fator hipotético, isto é, você nunca vê um pensamento elementar mas muitos pensamentos nacionais indicam a existência de um pensamento básico subjacente.
Nós discordamos de Bastian quando considera esses temas como "pensamentos". Ele tinha um espírito muito filosófico, obviamente um tipo pensador, tentando mesmo interpretar alguns pensamentos elementares, associando-os com ideias de Kant e Leibnitz. Para nós, ao contrário, o arquétipo não é somente um "pensamento elementar", mas também uma fantasia e imagem poética elementar, uma emoção elementar e mesmo um impulso elementar dirigido a alguma ação típica. Então, nós agregamos a ele toda uma subestrutura de sentimento, emoção, fantasia e ação que Bastian não incluiu na sua teoria.
A hipótese de Ludwig Laistner e mais tarde a de George Jakob (Mãrchen und Traum, Hannover, 1923), que escreveu um livro sobre contos de fada e sonhos, numa perspectiva muito próxima de Laistner, não tive­ram sucesso, nem as sugestões feitas por Karl von der Steinen foram aceitas. Bastian também foi desconside­rado no mundo científico em geral, que preferia seguir a linha da Sociedade Inglesa de Folclore e a Sociedade Finlandesa de Folclore. Após o aparecimento da obra de Antti Aarne, já mencionada, um trabalho enorme e muito útil feito por Stith Thompson foi publicado sob o título Motif Index of Folk Literature, constando atualmente de seis volumes.
Além desses trabalhos, novas formas de estudo surgiram, entre elas a chamada escola literária. A sua proposta é investigar a partir de um ponto de vista estritamente literário e formal a diferença existente entre os vários tipos de contos, a saber: o mito, a lenda, histórias cômicas, histórias com animais, histórias jocosas, e o que se pode chamar de contos de fada clássicos. (Veja, por exemplo, o trabalho de Max Lüthi, Das Europãische Volksmàrchen, Berna, 1947). Esse é um estudo de muito mérito. Com o método típico das escolas literárias, os pesquisadores começaram a comparar o herói da lenda com o tipo de herói no conto de fada clássico, e assim por diante. Surgiram resultados bastante interessantes, e eu recomendo esses trabalhos a vocês.
Um outro movimento moderno constitui-se de um grupo de etnólogos, arqueólogos e especialistas em mito­logia, e em história comparativa das religiões. Desse grupo, praticamente todos conhecem Jung e a psicologia junguiana, mas tentam interpretar os temas mitológicos omitindo a hipótese de Jung, e, logicamente, também o seu nome, apesar de fazerem um uso indireto de suas descobertas. Eles escreveram livros cujos títulos são: The Great Goddess, The Three fold Godhead e The Hero, mas não tomam como ponto de partida o ser humano e a estrutura psíquica que produziram tais símbolos, mas se instalam no meio do arquétipo, por assim dizer, deixan­do-o ampliar-se poética e "cientificamente".
Na mitologia existem nomes como Pettazone, Ju­lius Schwabe (Archetyp und Tierkreis), e em alguns pontos Mircea Eliade. Citamos, também trabalhando dessa maneira com os contos de fada Otto Huth, Robert Graves, e algumas vezes, Erich Fromm. Estes são apenas alguns dos nomes, mas há muito mais. Essas pessoas pecam por sua abordagem não-científica e ilegítima, caindo num terreno que não consideraram de antemão. Quando se aborda arquétipo dessa maneira, qualquer fato pode levar a tudo. Se você começa com a árvore do mundo, você pode facilmente provar que cada tema mitológico conduz finalmente à árvore do mundo. Se você começa com o sol, você pode facilmente provar que tudo é sol, e, finalmente, que tudo é um tema solar. E, então, você acaba se perdendo no caos das interconexões e dos significados sobrepostos que todas as imagens arquetípicas têm umas com as outras. Se você escolher a Grande Mãe, ou a Árvore do Mundo, ou o Sol, o mundo subterrâneo, ou o Olho, ou qualquer outra coisa, como tema, então, você pode compilar um material comparativo, indefinidamente, mas perde assim de modo radical o ponto de vista de Arquimedes para interpretação.
Num de seus últimos trabalhos, Jung mostrava que esta é uma grande tentação para o tipo intelectual, por­que os intelectuais tratam com desapreço o fator afetivo-emocional, que está sempre presente na imagem arquetípica. Uma imagem arquetípica não é somente um pensa­mento padrão (como um pensamento padrão ela está in­terligada com todos os outros pensamentos); mas ela é, também, uma experiência emocional — a experiência emocional de um indivíduo. Só se essa imagem arquetípi­ca tiver um valor emocional e afetivo para o indivíduo ela poderá ter vida e significação. Como disse Jung, podem-se compilar todas as Grandes Mães do mundo, e todos os santos, e tudo o mais, e o que se conseguir juntar signifi­cará absolutamente nada, caso se deixe de lado a experi­ência afetiva do indivíduo.
Isso é de fato uma dificuldade, pois todo o nosso treinamento acadêmico tende a descartar esse fator. Na faculdade, especialmente nas ciências naturais, quando um professor mostra um cristal, as meninas, particularmente, tendem a dizer "oh que cristal bonito!", e então, o professor diz: "Nós não estamos aqui para admirar a beleza do cristal, mas para analisar sua estrutura". Então, a gente está constante e habitualmente treinado, desde o começo, a reprimir nossas reações pessoais, emocionais, e a treinar nossa mente para aquilo que nós chamamos de objetivo. Bom, isso tem sua razão até certo ponto, com o qual concordo, mas não podemos tratar a psicologia da mesma forma, e como Jung disse, esta é a difícil posição da psicologia como ciência, pois a psicologia em contraste com todas as outras ciências, não pode desconsiderar o fator sentimento. Ela tem que levar em consideração o tom afetivo e o valor emocional de fatores internos e externos, incluindo também a reação afetiva do observador. Como se sabe, a física moderna aceita o fato de que o observador e a hipótese teórica que tem em mente, sob a qual ele monta um plano experimental, desempenham um papel no resultado de sua investigação. O que não é aceito, ainda, é que o fator emocional do observador possa também ter um papel. Mas os físicos têm que repensar isso, pois como assinalou W. Pauli, não temos uma razão a priori para rejeitá-lo, mas certamente podemos dizer que em psicologia temos que levar esse fator em consideração. Esta é a razão pela qual tantos cientistas acadêmicos consideram a psicologia junguiana não-científica, pois ela leva em conta um fator que tem sido, até agora, constante e intencionalmente excluído da visão científica. Mas esses críticos não veem que isto não é um simples capricho, que não somos tão infantis que não possamos reprimir nossas reações afetivas pessoais dian­te do material. Nós sabemos, a partir de um ponto de vista científico e consciente, que esses sentimentos são neces­sários e pertencem ao método da psicologia, quando se quer compreender um fenômeno de maneira correta.
Se um indivíduo tem uma experiência arquetípica, por exemplo, um sonho confuso de uma águia entrando através da janela, isto não é somente um "modelo de pensamento" sobre o qual pode-se dizer: "Oh! sim, a águia é um mensageiro de Deus, e era um dos mensageiros de Zeus e de Júpiter, e na mitologia norte-americana a águia aparece como um criador etc.". Fazer isto é intelectual­mente bastante correto, pois se amplia o arquétipo, mas também negligencia toda a experiência emocional. Por que é uma águia e não um corvo, não uma raposa, e não um anjo? Mitologicamente falando, um anjo e uma águia são a mesma coisa, um angelos, um mensageiro alado do céu, do além, do Deus Supremo; mas para o indivíduo que sonha, tem uma grande diferença se ele sonha com um anjo e tudo o que isso significa para ele, ou se ele sonha com uma águia e suas reações positivas e negativas que tem a respeito da águia. Não se pode simplesmente desaperceber as reações emocionais daquele que sonha, embora, cientificamente, Eliade, Huth, Fromm e outros, simplesmente dirão que ambos são mensageiros do Além. Em termos intelectuais é a mesma coisa, mas emocional­mente há uma diferença. Então, não se pode ignorar o indivíduo e todo o contexto onde a experiência se dá. Os representantes desta tendência tentam colocar todos os resultados da psicologia junguiana no velho contexto do pensamento acadêmico e pôr de lado o fator mais impor­tante que Jung introduziu na ciência dos mitos, a saber: a base humana a partir da qual tais temas florescem. Mas não se podem estudar plantas sem estudar o solo onde elas crescem: melões crescem melhor sobre esterco e não na areia, e se você for um bom jardineiro, você tem um conhecimento do solo tão bom quanto das plantas; e, em mitologia, nós somos o solo dos temas simbólicos — nós, os seres humanos. Este fato não pode ser ignorado sob o pretexto de que isto não existe, mas excluí-lo é uma tentação terrível para o tipo-pensamento e para os intelectuais, porque fazer isso é coerente com suas atitudes habituais.
Tomemos, por exemplo, o tema árvore. Suponhamos que eu seja um investigador que tenha um "complexo da árvore", de tal sorte que a árvore seja meu ponto de partida. Estando emocionalmente fascinada por ela, eu direi: "Oh! o Mito do Sol e o Mito da Árvore estão ligados, pois pela manhã o sol nasce a leste da árvore. Seja, por exemplo, a árvore de Natal, e toda árvore de Natal traz o nascimento da nova luz no momento do solstício do inverno. Logo, todos os mitos do sol são, também, os mitos da árvore. Mas, veja, a árvore também é maternal. Ainda hoje na Saxônia, diz-se que as meninas bonitas nascem debaixo das folhas das árvores, e eu posso lhes mostrar quadros ilustrando crianças que nascem das árvores; as almas das crianças não-nascidas farfalham sob as folhas, e esta é a razão pela qual há árvores no centro de todas as cidades alemãs, austríacas e suíças. A árvore é, consequentemente, a Grande Mãe. Mas, a árvore não é somente a mãe da vida, ela o é também da morte, pois é com as árvores que se fazem urnas funerárias, e há também os enterros feitos em árvores. Os Xamãs, das tribos do círculo polar e, em certas tribos norte-canadenses, enterram pessoas em troncos de árvore. Provavelmente, tam­bém os Zigurates babilônicos, as colunas nas quais os persas colocam seus mortos, são também uma espécie de árvore. E, então, já pensou na relação entre árvore e poço? Sob cada árvore há uma vertente. Assim, sob a árvore cósmica Igdrasil se encontra o poço Urd. Certos selos babilônicos trazem a imagem de uma árvore com um poço da vida sob ela, então poder-se-ia concluir que todos os temas da água-da-vida são realmente temas da árvore, de forma que toda vez que o tema da água-da-vida apare­cer nos mitos, ele representa a mitologia da árvore. Tudo isto é bem claro! Todo mundo vê isso! Mas ainda pode-se relacionar a lua com a árvore. Como a mãe, a árvore é feminina, mas também é o pai, pois a árvore é um símbo­lo fálico. Em documentos astecas, por exemplo, a pala­vra que exprime a terra original de onde emigraram os astecas e maias, representa uma árvore cortada, uma espécie de tronco de árvore, e tronco é imagem fálica, paternal. Existem histórias de mulheres que passan­do sob uma árvore, recebem uma semente da árvore no seu útero. Logicamente, então, a árvore é o pai e isso re­laciona a árvore com o sol, que é uma figura paternal. Isto é óbvio".
Se se tem o que poderia ser chamado de "complexo solar", então tudo acaba sendo solar, e se se tem o "complexo lunar", tudo é lunar.
No inconsciente todos os arquétipos estão contami­nados um pelo outro. É como se diversas fotografias fossem impressas umas sobre as outras; elas não podem ser separadas. Isto tem a ver, provavelmente, com a relatividade atemporal e a-espacial do inconsciente. É como um pacote de representações que estão simultanea­mente presentes. Somente quando o consciente olha para elas, um tema é selecionado, é como se colocasse uma lanterna acesa, e tudo depende de onde se coloca o facho de luz em primeiro lugar, pois, de alguma forma, sempre se obtém todo o inconsciente coletivo. Então, ocorre que para um cientista a mãe é tudo, para outro tudo é a vegetação, e para outro, o mito solar é tudo. O mais interessante é que todos esses intelectuais, quando veem a conexão, por exemplo, entre a árvore, o sol e o caixão, dizem "é lógico", "óbvio", ou ainda "naturalmente", assim, a árvore é obviamente a mãe. Eu paro para observar onde o investigador usa essas palavras. É uma tentação fácil, pois as conexões arquetípicas são óbvias e naturais, e então, o escritor diz "naturalmente" ou "obviamente", e está seguro que todos os seus leitores caminharão na mesma trilha. Somente o tipo intelectual é apanhado nessa armadilha. Outros, após certa revolta, percebendo que não é possível que tudo seja tudo, voltam-se para os valores das diferenças emocionais entre os símbolos.
Na realidade, pode-se interpretar um conto de fada com qualquer das quatro funções da consciência. O "tipo-pensamento" apontará a estrutura e a maneira pela qual todos os temas se conectam. O "tipo-sentimento" colocará todos numa ordem de valores (hierarquia de valores) que é igualmente racional. Com a ajuda desta função uma interpretação boa e completa de contos de fada pode ser feita. O "tipo-sensitivo" se contentará somente em olhar os símbolos e amplificá-los. O "tipo-intuitivo" verá todos os elementos na sua totalidade; ele será o melhor dotado para mostrar que o conto de fada, tomado em seu conjun­to, não é uma história discursiva, mas é realmente uma única mensagem com muitas facetas. Quanto mais dife­renciadas e desenvolvidas são as funções do consciente, melhor e mais rica será a interpretação feita, pois, a história será circundada, tanto quanto possível, pelas quatro funções. Quanto mais se tiver desenvolvido e treinado o uso das funções mais conscientes, melhor e mais colorida será a interpretação. É uma arte que tem que ser praticada. Não pode ser aprendida apesar de algumas indicações gerais que eu tento dar. Eu sempre digo aos estudantes que não aprendam somente com minhas aulas, mas que tentem eles mesmos interpretar os contos de fada, pois essa é a única maneira de se aprender. Interpretação é uma arte, na verdade um ofício, que depende unicamente da pessoa. Nas aulas em que cada um interpretar o mesmo conto de fada, ocorre quase uma confissão, uma espécie de teste de Rorschach. Isto é inevitável, e é normal, pois a pessoa tem que se colocar aí por inteiro.
Podem-se perguntar as razões pelas quais a psicolo­gia junguiana se interessa por mitos e contos de fada. O Dr. Jung disse, certa vez, que é nos contos de fada onde melhor se pode estudar a "anatomia comparada da psi­que". Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado obtém-se as estruturas básicas da psique humana através da grande quantidade de material cultural. Mas nos contos de fada existe um material consciente culturalmente muito menos especí­fico e, consequentemente, eles oferecem uma imagem mais clara das estruturas psíquicas.
Uma das objeções que outras escolas psicológicas nos propõem é que vemos arquétipos em todo canto, que nossos pacientes aparentemente sonham sobre arquéti­pos todas as noites, mas que os pacientes deles nunca pro­duzem tal material. Se o analista não sabe o que são te­mas arquetípicos, naturalmente ele nunca os notará; ele os interpretará pessoalmente ligando-os com memórias pessoais. A fim de que se possa iluminar um material arquetípico é necessário que se tenha um conhecimento ge­ral a respeito do mesmo. Esta é uma das principais razões pelas quais procura-se aprender de maneira aprofundada esses temas, bem como seus diferentes contextos.
Mas existe ainda uma outra razão que tem mostra­do ser ainda mais importante e que nos conduz a proble­mas mais essenciais. Se alguém lhe conta um sonho e você já fez a anamnese dessa pessoa (isto é, sua história de vida exterior e interior), mesmo se tenta se refrear, você acaba normalmente levantando uma hipótese geral a respeito do problema dessa pessoa: que ela ainda está ligada à mãe, ou que existe uma "fixação-paterno-filial", ou que é uma "mulher dominada pelo seu animus", ou Deus sabe lá o quê.
Suponha, por exemplo, que você tenha uma hipótese de que uma paciente em análise está bastante perturbada por seu animus, e quando ela lhe traz um sonho de um ladrão, que a atemorizou terrivelmente, então você tem uma reação do tipo: "Ah! Olha aí!". Você não nota que assim não interpretou o sonho, mas somente reconheceu nele aquilo que você já supunha. Você o ligou com aquilo que intuitivamente já imaginara ser o problema. Então você considera o ladrão uma figura do animus, e isso parece ser uma interpretação objetiva. Mas você não aprendeu de fato a interpretar o sonho de maneira cien­tífica, ou seja, não fazendo hipóteses a não ser a partir da­quilo que emerge dos próprios temas do sonho. Deveríamos observar os sonhos tão objetivamente quanto possível e somente então, permitir-nos tirar uma conclusão. O sonho fornece uma nova mensagem que nem o analista nem o paciente conhecem de antemão.
Este método objetivo pode ser melhor aprendido com a prática de interpretação sobre temas dos contos de fada, nos quais não há contexto pessoal e não se tem conhecimento pessoal da situação consciente correspon­dente.
Mas consideremos primeiro: como será que um conto de fada teve sua origem? Se formos realistas, devemos dizer que ele se originou num momento particular, numa certa época. Como pode acontecer? Eu elaborei sobre esse tema uma teoria pessoal que lhes proponho.
Max Lüthi em Die Gabe in Sage und Màrchen ("Os dons na saga e contos de fada") mostra que nas lendas e nas sagas locais o herói da história é o próprio ser humano.
Uma saga local é aquela espécie de história que começa desta maneira: 'Você está vendo aquele belo castelo lá em cima? Bem, existe uma história sobre ele. Era uma vez um pastor que num dia de verão muito quente levou seu rebanho para perto do castelo. De repente, tomado de curiosidade, pensou em entrar, apesar de ter ouvido que havia fantasmas ali. Então, com mãos trêmulas ele abriu a porta e viu uma serpente branca que lhe falou numa linguagem humana que ele deveria entrar e ficar com ela; e se ele conseguisse suportar três noites, ele poderia redimi-la"... ou algo assim. Isso é o que é chamado de saga local. Lüthi mostra, com muitos exemplos, que naquelas sagas locais o herói é um ser humano cujos sentimentos e reações são relatados. Por exemplo, fala-se que o coração do pastor batia violentamente quando ele abriu a porta do castelo e que ele se arrepiou quando viu a serpente e lhe deu um beijo gelado, mas que ele foi corajoso e permaneceu ali todo o tempo. A história é contada como se um ser humano comum estivesse tendo uma experiência sobrenatural ou parapsicológica. Mas se se considera os contos de fada clássicos — como por exemplo, O pássaro de ouro, de Grimm — aí o herói já não tem sentimentos. Se um leão o ataca, ele puxa sua espada e mata-o. Nada é dito se ele ficou com medo, tremeu e quando atravessou a espada pela garganta do leão, ele coçou a cabeça e se perguntou o que estava fazendo. É por ser um herói que ele mata o leão com esta naturalidade. Lüthi diz que o herói no conto de fada é uma figura abstrata e não humana. Ele é completamente preto, ou completamente branco, e tem reações estereotipadas: ele salva a dama e mata o leão, e não teme a velha da floresta etc. Ele é completamente esquemático.
Depois de ter lido isso, eu vim a ler uma história de uma crônica familiar do século 19, publicada na Suíça, num artigo sobre folclore (Schweiz, Zeitshrift für Volks­kunde, 1937).
A família ainda vive em Chur, a capital de Graubünden. O bisavô da família tivera um moinho numa cidadezinha solitária dos Alpes, onde vivia. Certa noite saiu para caçar raposa. Quando ele encontrou uma raposa e se preparou para atirar, esta levantou sua pata e disse: "Não atire em mim", e em seguida desapareceu. O moleiro voltou para casa bastante impressionado, pois raposas que falam nunca fizeram parte da sua experiência diária. Quando chegou encontrou seu moinho girando sozinho em torno da roda. Ele berrou, perguntando quem havia posto o moinho em movimento. Ninguém havia posto. Dois dias depois, ele morre. Esta é uma história típica que se encontra em relatos espíritas ou parapsicológicos. Em todo canto do mundo tais coisas acontecem por vezes prenunciando a morte de alguém: instrumentos comportam-se como se fossem vivos, relógios param como se fossem parte do seu dono que morre e muitas coisas estranhas acontecem.
Um homem que leu esta história nas crônicas desta família, resolveu ir até a cidadezinha e perguntar às pessoas sobre o moinho. O moinho propriamente dito está em ruínas. Algumas pessoas disseram: "Sim, havia um moinho lá, e havia alguma coisa inquietante sobre ele. Havia um fantasma lá". Então, pode-se notar o quanto a história se degenerou. Todos sabiam que aquilo (o moi­nho) tinha alguma coisa a ver com a morte e com um evento parapsicológico, mas eles não lembravam de qualquer coisa em especial. Neste ponto, a escola finlan­desa parece estar certa em dizer que contar a mesma história diversas vezes acaba por empobrecê-la. Mas, por outro lado, esse mesmo investigador encontrou pessoas mais velhas que lhe disseram: "Ah! sim, nos lembramos da história. O moleiro saiu para caçar raposas e uma raposa lhe disse: 'Moleiro, não atire em mim! Você se lembra como eu colhi o milho no sítio da tia Jette'! E então, na festa do funeral uma garrafa de vinho quebrou-se e a tia Jette, a tia do moleiro empalideceu, e todo mundo sabia que ela era a raposa e que havia matado o moleiro".
Há uma crença geral de que as bruxas tomam a forma de raposa. Crê-se que as bruxas saem à noite e tomam forma de raposa e fazem muitas maldades sob esta forma, e depois voltam para os seus corpos, que permaneceram deitados nas camas como mortos, nesse meio tempo. Isto pode ser "provado", pois por vezes, um caçador atira numa raposa e a fere na pata e então, na manhã seguinte, a Sra. Fulana de tal aparece com um braço na tipoia e quando se pergunta o que aconteceu, ela não responde. É "evidente" que ela era a raposa que estava agindo durante a noite. Há uma crença geral, de origem arquetípica, que se encontra tanto nos Alpes, na Áustria, como no Japão e na China, de que as bruxas e as mulheres histéricas têm almas de raposas. Então, um tema arquetípico universal foi associado com a nossa história da raposa, e a história foi enriquecida de modo a torná-la mais coerente. É como se as pessoas tivessem dito que a primeira história não era satisfatória — por que a raposa falaria com o moleiro antes dele morrer? Então, ela foi enriquecida com a história da bruxa, associada à da tia do moleiro, que se deu a perceber na festa do funeral. Uma outra velha senhora da aldeia contou a mesma história, mas juntou a ela ainda um outro detalhe — que quando o moleiro voltou para casa, viu uma raposa correndo em volta do moinho, fazendo-o girar.
Isto prova, para mim, que Antti Aarne estava erra­do ao pensar que as histórias sempre se degeneram, pois elas podem se desenvolver e ampliar enriquecendo-se através do acréscimo de temas arquetípicos. Se elas são contadas por pessoas dotadas de imaginação e de um talento de contador de histórias elas podem se tornar muito bonitas. Minha hipótese é que, provavelmente, as formas mais originais de contos folclóricos são as sagas locais e as histórias parapsicológicas, histórias miraculosas que acontecem devido a invasões do inconsciente coletivo sob a forma de alucinações em estado de vigília. Estas coisas ainda acontecem; os camponeses suíços experienciam-nas constantemente e elas formam a base das crenças folclóricas. Quando alguma coisa estranha acontece, ela é cochichada e corre, como correm os boatos; então, sob condições favoráveis, o fato emerge enriquecido de representações arquetípicas já existentes e progressi­vamente transforma-se num conto.
E interessante que nesta história somente uma pessoa lembrou o nome do moleiro. Em outras versões, ficou somente "um moleiro". Enquanto for o "moleiro Fulano de tal", é ainda uma saga local, mas quando se tornar: "Uma vez um moleiro saiu para caçar raposa...", então, começa a se tornar um conto de fada, uma história mais geral, que pode migrar de uma cidade para outra, pois não mais se refere a um moleiro específico, nem a um homem em particular. É muito provável que a afirmação de Lüthi esteja certa: os contos de fada são abstrações. São abstrações de uma saga local condensada, e cuja forma se cristalizou, o que permite ser mais facilmente contada e retida na memória, pois desta forma toca mais diretamente as pessoas.
Desde que comecei a desenvolver a ideia de que experiências parapsicológicas são a base das sagas locais, o mesmo foi descoberto e apresentado por J. Wyrsch, Sagen und Ihre seelischen Hintergründe (Innerschweiz, Jahrb für Heimatkunde, Luzern, 1943, bd. 7 e H. Burk­hardt, Psychologie der Erlebnissage, Diss. Zürich, 1951).
Vocês podem encontrar ainda mais na excelente tese de G. Isler, Die Sènnenpuppe, Diss. Zürich, 1970.
















2
Contos de fada, mitos e outras histórias arquetípicas
Parece-me que as histórias arquetípicas se origi­nam, frequentemente, nas experiências individuais atra­vés da irrupção de algum conteúdo inconsciente, que podem surgir em sonhos ou em alucinações em estado de vigília. Algum evento ou alguma alucinação coletiva acontece, e então, o conteúdo arquetípico irrompe na vida de um indivíduo. Isto é sempre uma experiência numino­sa. Nas sociedades primitivas praticamente nenhum segredo é guardado; então essa experiência é sempre comentada, ampliando-se por outros temas folclóricos existentes que a completam. Então, ela se desenvolve tanto quanto um boato.
Tais invasões do inconsciente coletivo no campo de experiências de um único indivíduo, provavelmente, de tempos em tempos criam novos núcleos de histórias e mantêm vivos os materiais já existentes. Por exemplo, aquela história do moleiro reforçará naquela região a crença nas "bruxas-raposas". A crença existia anterior­mente, mas esta história manterá viva, ou modernizará, ou, ainda, trará uma nova versão à velha ideia de que as bruxas sob forma de raposas saem matando ou enfeiti­çando pessoas. Estes eventos psicológicos, que sempre atingem um indivíduo em primeiro lugar, são, no meu modo de pensar, o ponto de partida e ao mesmo tempo o fator que mantém vivos os temas folclóricos.
Cogitou-se que as pessoas que conhecem certos temas de contos de fada e de histórias, adaptam-nas a situações locais. Digamos que exista uma moça numa cidade que se suicidou atirando-se de um penhasco. Dez anos mais tarde este suicídio, que ocorreu devido a um caso amoroso malsucedido, pode ser circundado por um conto com o tema clássico do suicídio. Eu acho que isso facilmente poderia acontecer, mas não encontrei até agora nenhum exemplo significativo onde se pudesse constatar e provar cada passo dessa transformação. Provavelmente temos que reconhecer os dois modos, podendo dizer que quando uma história está enraizada em algum lugar, ela é uma saga local; e, quando ela vagueia como uma planta aquática sem raízes, adquire a característica abstrata de um conto de fada, e que se uma vez mais adquirir raízes, torna-se novamente uma saga local. Pode-se usar a analogia de um cadáver, sendo o conto de fada os ossos ou o esqueleto, a parte que não é destruída, pois ele é o núcleo básico e eterno de tudo. Ele reflete com mais simplicidade as estruturas arquetípicas básicas.
O mesmo problema existe quanto à diferença entre uma história local e um conto de fada, aparece de outra maneira e com muita controvérsia quanto às relações entre o mito e o conto de fada. E. Schwizer, um clássico, mostrou, por exemplo, que o mito de Hércules foi cons­truído a partir de aventuras separadas, todas elas sendo temas de contos de fada. Ele demonstrou que este mito deve ter sido um conto que foi enriquecido e elevado ao nível literário de um mito. Numa teoria oposta, algumas pessoas contestam dizendo que os contos de fada são mitos degenerados. Elas creem que originalmente os povos tinham somente mitos e se a ordem social e religiosa de um povo decaísse, então as remanescências daquele mito sobreviviam em forma de contos de fada.
Existe uma certa veracidade nesta teoria do "mito decadente". Por exemplo, numa coleção intitulada The Fairy Tales of World Literature (Die Márchen der Welt Literatur), que consta agora de cerca de 35 volumes, pode-se encontrar no volume de contos gregos, episódios ligeiramente distorcidos da Odisseia: um príncipe viaja para uma ilha onde existe um grande peixe (ou um ogro) I ele cega esse ogro de um só olho e se esconde sob a barriga de um grande carneiro, conseguindo escapar da caver­na do monstro. Foi assim que Ulisses escapou da caverna de Ciclope; vê-se, portanto, que a história foi preservada até hoje.
Portanto não acho forçado dizer que este conto é remanescente da história de Ulisses. Ele sobreviveu sendo hoje em dia um conto folclórico comum na Grécia. Isto me convenceu que os grandes mitos podem decair com a civilização a que pertencem, e que os temas básicos podem sobreviver como temas de contos de fada, migrando ou então permanecendo no mesmo país. Do mesmo modo que analisei as sagas locais, eu considero duas possibilidades. Para mim os contos de fada são como o mar, e as sagas e os mitos são como ondas desse mar; um conto surge como um mito, e depois afunda novamente para ser um conto de fada. Aqui novamente chegamos à mesma conclusão: os contos de fada espelham a estrutura mais simples, mas também a mais básica — o esqueleto — da psique.
O mito é uma produção cultural. Se se pensar no mito de Gilgamesh está se pensando na civilização babi­lônico-hitita-suméria, porque Gilgamesh pertence a elas e não pode ser colocado na Grécia ou em Roma. Da mesma forma, os mitos de Hércules e Ulisses pertencem à Grécia e não podem ser imaginados no contexto de Maori. Se se estuda as implicações psicológicas dos mitos, vê-se que eles expressam em muito o caráter nacional da civilização onde se originaram e onde permanecem vivos. Têm uma forma bonita porque geralmente sacerdotes ou poetas (ou sacerdotes-poetas, pois em algumas civilizações são a mesma coisa), deram a essas histórias uma forma solene, litúrgica e poética. O mito apresenta, pois, conjuntos de expressões culturais conscientes, que facilitam sua interpretação, pois nele certas ideias são expressas de maneira mais explícita. Diz-se, por exemplo, que Gilga­mesh é favorecido por Shamash, o deus sol, a respeito do qual muito material pode ser coletado e unido numa ampliação, fornecendo tudo o que é necessário. Muitas vezes um herói de um conto de fada tem qualidades solares, mas estas podem estar indicadas somente por um pequeno detalhe — por exemplo, o fato dele ter cabelos dourados. Não há menção alguma do fato de ser ele favorecido por um deus solar específico.
Pode-se então dizer que a estrutura básica ou que os elementos arquetípicos de um mito são construídos numa expressão formal, que se liga ao consciente coletivo cultural da nação na qual se originou e que, de certa maneira, está mais próximo da consciência e do material histórico conhecido. Às vezes, ele é mais fácil de ser interpretado, pois é menos fragmentado. Frequentemente, é também mais bonito e mais impressionante na forma do que os contos de fada, e isso faz com que certos estudiosos fiquem seduzidos e digam que o mito é o mais importante e que o resto é somente um reles vestígio. Por outro lado, ao elevar-se tal tema arquetípico a um nível nacional e cultural, unindo-o a tradições religiosas e formas poéticas, expressa-se mais especificamente os problemas daquela nação naquele determinado período cultural, mas perde-se muito do seu caráter humano. Ulisses, por exemplo, é a essência do intelecto hermético-mercurial grego e pode ser facilmente comparado a heróis ardilosos de outras nações. Entretanto, o mito de Ulisses é mais específico e mais grego, perdendo desta maneira certos traços humanos universais.
O estudo dos contos de fada é essencial, para nós, pois eles delineiam a base humana universal. Eles são especialmente importantes quando se analisam pessoas do outro lado do mundo; se um indiano ou um australiano chega ao seu consultório, e se você estudou apenas alguns mitos, será difícil lançar uma ponte humana até esse homem. Se, entretanto, o analista conhece as estruturas humanas básicas, ele será capaz de contatá-lo. Eu ouvi, certa vez, um missionário das Ilhas dos Mares do Sul dizer que a maneira mais simples de entrar em contato com os habitantes de lá era contando-lhes contos de fada. É uma linguagem que todos entendem. Se ele houvesse contado a história de algum grande mito, não teria tido tão bons resultados. Ele tinha que usar o material básico na sua forma mais simples, porque esta é a expressão da estrutura mais geral, e ao mesmo tempo mais básica do ser humano. Isto também se deve ao fato de o conto de fada estar além das diferenças culturais e raciais, podendo assim migrar facilmente de um país para outro. A linguagem dos contos de fada parece ser a linguagem internacional de toda a espécie humana — de idades, raças e culturas.
Algumas vezes, quando não entendo um conto de fada, uso os mitos como paralelos, pois devido ao fato de o mito estar mais próximo da consciência, frequentemente ele me fornece uma ideia sobre o significado. Logo, não se pode deixar de lado os mitos, pois eles podem ser­vir de ponte quando o material de um determinado con­to de fada não for compreendido. E às vezes o conto está terrivelmente distante do nosso mundo coletivo cons­ciente.
Também temos que subdividir mitos religiosos, pois alguns estão ligados a um ritual, enquanto outros não. Numa certa ocasião, o mito é contado num certo festival, e canta-se a canção que pertence a certo evento mitológico. Ou, em algumas escolas — a escola Talmud, por exemplo — existem textos sagrados que são lidos em certas ocasiões, passando então a constituir-se numa espécie de liturgia. Por outro lado, existem mitos religio­sos que não se constituíram em liturgias, como, por exemplo, o Épico Gilgamesh, que era repetidamente recitado na corte do rei, mas nada indica que isto tenha se erigido em liturgia. Quanto a mitos religiosos que não são incluídos nem em liturgia, nem citados em ritual, e que não são veículos de conhecimento sagrado — oral ou escrito — seriam classificados na categoria anteriormente citada. Mas há o caso específico em que se deparam com mitos que constituem rituais religiosos, como liturgias ou canções entoadas por certos sacerdotes. Na minha opinião, tais mitos litúrgicos não são basicamente diferentes de outros, exceto por terem se tornado parte da tradição consciente da nação; eles passaram a integrar o corpo do conhecimento consciente daquela nação, sendo oficial­mente reconhecidos. Isto não os coloca de modo algum em segundo plano: significa somente que eles foram elabora­dos por um longo tempo. De modo geral esses mitos foram influenciados por tradições históricas; estes textos e canções sagrados são frequentemente ininteligíveis: fo­ram burilados de tal forma que fazem meramente alusão a algo que todo mundo já conhece. Por exemplo, algumas canções de Natal que conhecemos são assim; se você tivesse que pesquisá-las como apareceram há 2.000 anos atrás, e se você não conhece nada a respeito do cristia­nismo, não seria capaz de apreender o seu sentido. Uma canção de Natal alemã diz: "De uma raiz tenra uma rosa despontou", e então seguem-se algumas alusões remotas a respeito de uma Virgem intocada. Suponhamos que não se conheça nada sobre o cristianismo, e se descubra essa canção. Dir-se-ia que há algo sobre uma rosa e sobre uma virgem, mas o que isso significa? Para nós, a canção é inteligível, porque ela se refere a um mistério que nós todos conhecemos. A tradição cristã está totalmente inte­grada em nossa cultura, podendo tais canções aparecer sob uma forma alusiva; entretanto, somente os temas arquetípicos que são significativos para muitas pessoas, há centenas de anos, são tratados dessa maneira. Se o cristianismo tivesse sido confinado a uma seita local na Ásia Menor, ele teria morrido com o seu mito, e não teria atraído outros materiais simbólicos, e nem teria essa forma.
A elaboração extensiva do material original prova­velmente depende da importância do impacto que o evento nuclear arquetípico causa sobre as pessoas.
Há uma proposta de que, talvez, o cristianismo tenha se originado como saga local e, a partir desta, tenha se desenvolvido em um mito. Em seu livro Aion, Jung coloca que a personalidade de Jesus de Nazaré, tão desconhecida, misteriosa e impressionante, e sobre a qual nós conhecemos muito, muito pouco, atraiu uma enorme quantidade de projeções e símbolos, como, por exemplo, o símbolo do peixe, do cordeiro, e muitas outras imagens arquetípicas do SELF, tão bem conhecidas por toda a humanidade. Muitos desses símbolos não são sequer mencionados na Bíblia; por exemplo, o pavão, um símbolo do início do cristianismo, símbolo da ressurreição e do Cristo. Toda a rede de ideias mitológicas existentes na antiguidade remota foram vagarosamente sendo cristali­zadas em torno da personalidade de Cristo. Os caracteres específicos de Jesus de Nazaré foram de tal maneira obscurecidos, que nos confrontamos muito mais com o símbolo do "Deus-Homem", que em si mesmo está amplia­do por muitos outros símbolos arquetípicos.
Deste modo, se de um lado a figura de Jesus é generalizada, de outro ela é mais específica, como pode ser comprovado pelos primeiros Padres da Igreja que lutavam contra a tendência da época de se dizer que Je­sus Cristo era somente um outro Dionísio, ou Osíris. As pessoas diziam: "Ah! seu Jesus Cristo, nós o conhecemos, nós o veneramos sob a forma de Osíris". Os apologistas cristãos ficavam furiosos com isso, dizendo que Cristo não era nem Osíris, nem Dionísio: ele era uma nova mensa­gem. A partir daí, travou-se a luta sobre a nova mensagem — que tinha de ser analisada sob uma outra luz e — tais pessoas diziam — não devia ser juntada regressiva­mente a esses outros mitos. Sobre Jesus as pessoas diziam: "Mas este é Osíris! Este é o nosso Dionísio! Nós conhecemos o Deus sofredor e dilacerado há muito tem­po". E eles estavam parcialmente certos, pois o que viam era o mesmo modelo arquetípico geral. Mas os outros também estavam certos quando insistiam que agora esta era uma nova consciência cultural sob uma forma nova e específica.
O mesmo aconteceu quando os conquistadores na América do Sul descobriram o ritual da crucificação entre os aborígenes. Algum padre jesuíta chegou mesmo a dizer que o demônio havia posto aquelas coisas nas cabeças dos índios para despertar a possibilidade de conversão. Mas a hipótese da disposição arquetípica da psique humana simplifica muitas dessas questões, e torna-se desnecessá­rio que nos percamos em brigas por causa dos mitos religiosos. As diferentes versões são elaborações diferen­tes de várias formas do arquétipo. Pode-se dizer que onde quer que se constele um conteúdo arquetípico de impor­tância vital, ele tende a se tornar o símbolo central de uma nova religião. Entretanto, quando o conteúdo arquetípico pertence meramente aos afazeres do ser humano e não está especificamente constelado, ele é manipulado sob a forma de folclore. Mas na época de Cristo a ideia do Deus-Homem — que já existia há anos — tornou-se uma mensagem iminentemente importante—aquilo que agora teria que ser realizado a qualquer custo. E por isso que ela se tornou a "Boa Nova", a nova luz e seu impacto emocio­nal criou tudo isso que nós conhecemos como civilização cristã (assim como a iluminação de Buda criou tudo aquilo que se conhece agora como religião budista).
Há um outro problema ligado a este. Em seu livro: Primitive culture, Tylor, a partir de sua teoria sobre o animismo, tentou explicar os contos de fada a partir do ritual, dizendo que os contos deveriam ser considerados não só como remanescentes de determinada fé em deca­dência, mas principalmente como remanescentes de um rito antigo: o rito morreu, mas sua história permaneceu na forma dos contos de fada. Eu não acredito nisso, porque acho que a base não é ritual, mas uma experiência arquetípica. Entretanto, os ritos são tão antigos que o máximo que se pode fazer é imaginar como teriam se originado. Os melhores exemplos que encontrei de como um rito poderia ter se originado estão nas histórias que se seguem.
Uma das histórias é a autobiografia de Black Elk, um curandeiro pertencente à tribo de índios americanos dos Sioux Oglala. Ainda menino, Black Elk esteve muito doente, ficando quase em coma; foi quando ele teve uma visão ou revelação impressionante, na qual era transpor­tado para os céus, onde muitos cavalos vinham a ele dos quatro pontos cardeais, quando então encontrou o Espírito do Avô que lhe deu a planta medicinal para o seu povo. Profundamente abalado pela visão, o jovem guardou-a para si como qualquer pessoa normal o faria. Porém, mais tarde desenvolveu-se nele uma aguda fobia de tempestades e trovoadas, de tal modo que bastava aparecer uma nuvenzinha no horizonte para ele tremer de medo. Isso o forçou a consultar o curandeiro da tribo. Este lhe disse que a causa desse temor, dessa doença, era ele ter guardado para si a visão que teve e não a ter compartilhado com sua tribo. O curandeiro disse a Black Elk: "Sobrinho, agora eu sei qual é o problema! Você precisa fazer o que o cavalo baio, na sua visão, queria que você fizesse. Você precisa fazer uma apresentação desta visão para o seu povo na terra. Precisa primeiro fazer a dança do cavalo para que o povo veja. Então o medo o abandonará; mas se você não fizer isso, algo muito ruim irá lhe acontecer". Black Elk, que estava com 17 anos, seus pais e outros membros da tribo juntaram alguns cavalos; alguns eram brancos, outros pretos, outros alazões, mais alguns pardos e um cavalo baio para Black Elk montar. Black Elk ensinou as canções que ele ouvira durante sua experiência e quando a visão foi encenada, teve um profundo efeito na tribo inteira, chegando mesmo a ser um efeito curativo, fazendo com que um cego passasse a enxergar, um paralítico a andar e outras doenças psíquicas também foram curadas. A tribo decidiu encená-la novamente.
E creio que muito provavelmente isso teria conti­nuado como um ritual se, pouco depois, a tribo não tivesse sido quase que totalmente destruída pelos brancos. Por esse relato, estamos muito próximos de testemunhar as origens de um ritual.
Eu encontrei uma outra pista para a origem de um rito num conto esquimó, relatado por K. Rasmussem (Die Gabe des Adlers, Frankfurt, 1923). Certas tribos do círculo polar ártico celebram um festival da Águia. Eles enviam mensageiros com bastões que têm na ponta uma pena, para convidar as outras tribos para a grande festa. Os anfitriões constroem um grande iglu, algumas vezes uma grande casa de madeira. Uma vez por ano as pessoas aí chegam nos seus trenós puxados por cachorros. Na entrada da casa há uma águia empalhada; eles dançam, contam histórias, trocam esposas e comerciam. O festival da águia é o grande encontro semirreligioso, semiprofano, de todas as tribos.
A história sobre o festival é a seguinte: uma vez, um caçador solitário matou uma águia especialmente bonita. Ele a levou para casa, aparentemente com um certo sentimento de culpa; ele a empalhou e guardou-a, sentindo-se de tempos em tempos impelido a oferecer-lhe um pouco de comida como sacrifício. Aconteceu que certa vez estava ele com seus esquis caçando, quando entrou numa tempestade de neve. Ele se sentou e de repente viu à sua frente dois homens com bastões ornados de plumas. Os homens vestiam máscaras de animais e ordenaram-lhe que os seguisse e depressa. Então, apesar da nevasca, ele se pôs de pé e seguiu-os; eles iam muito depressa, deixando-o com uma grande exaustão. Foi quando, através da bruma, ele avistou uma cidadezinha da qual vinha um ribombar fantasmagórico. Ele perguntou aos homens o que aquilo significava, e um deles respondeu muito tristemente: "É o coração de uma mãe que está batendo". Eles levaram-no à cidade até uma mulher muito digna que estava de preto, e ele logo percebeu que era a mãe da águia que ele havia matado. A mulher — mãe da águia — disse que ele havia tratado seu filho tão bem, que ela queria lhe agradecer e queria pedir que continuasse fazendo assim. Em seguida, disse-lhe que o apresentaria ao seu povo, (as pessoas, na verdade, eram águias que temporariamente tomavam forma humana) e que lhe mostraria o Festival da Águia. Ele deveria memorizar tudo e quando voltasse à sua tribo deveria relatar-lhes o que vira e dizer-lhes que, anualmente, deveriam fazer essa comemoração. Depois dos "homens-águias" terem apresentado o Festival da Águia, tudo desapareceu repentinamente, e ele se viu novamente no meio da neve, tonto e quase congelado. Ele voltou à sua cidade, reuniu os homens e contou-lhes a mensagem, e desde então, diz-se que o Festival da Águia é celebrado, exatamente como foi prescrito. O caçador obviamente caiu em coma, quase congelado, e neste estado de profunda inconsciên­cia ele teve o que podemos chamar de visão arquetípica. Isso explica por que tudo desapareceu tão repentinamen­te e por que ele se viu tonto no meio da neve; este foi o momento em que voltou à consciência e viu as pegadas dos animais atrás dele — os últimos vestígios dos "mensa­geiros".
Podemos ver novamente como um rito passa a existir de modo paralelo àquele de Black Elk — isto é, a partir da experiência arquetípica de um indivíduo; e se o impacto é suficientemente forte, há necessidade de transmiti-lo, ao invés de guardá-lo para si mesmo. Eu encontrei em menor escala fatos similares na análise, quando um analisado tem uma experiência arquetípica e, natu­ralmente, guarda-a para si. Esta é a reação natural, pois é o segredo de uma pessoa que não quer que outros a minimizem. Mas então outros sonhos aparecem dizendo-lhe que não deve guardar a visão para si, mas contá-la para seu marido, ou sua mulher, dizendo-lhe: "Eu tive uma experiência e tenho que me ater a ela. E por isto que agora quero falar-lhe sobre ela, pois de outra maneira você não entenderá minha conduta. Eu tenho que ser leal à visão e agir de acordo com ela". Numa vida matrimonial não se pode mudar de comportamento de repente, sem qualquer explicação. Ou talvez, ela precise ser comunica­da a um grupo maior, como aconteceu à visão de Blak Elk, para quem o curandeiro disse que seus sintomas neuró­ticos mostravam que a visão de Black Elk era algo que pertencia à tribo e não um segredo seu, em particular.
A partir dessas duas histórias, eu concluí que esta é uma explicação provável de como um ritual passa a existir. Neste exemplo do esquimó, eles dizem isso para si mesmos. Vemos novamente que a base é uma invasão pelo mundo arquetípico da consciência coletiva temporal de um grupo, sendo um indivíduo o seu intermediário. Primeiro uma pessoa passa pela experiência e depois conta às outras. Além do mais, se realmente pensarmos bastante, de que outra maneira isto poderia ter aconteci­do? Essa é a maneira mais óbvia pela qual um ritual poderia ter se originado.
Mais tarde o rito poderá ser ainda modificado por incursões menos fortes no inconsciente e por sonhos. Existe um famoso ritual entre os primitivos australianos chamados Kunapipi, que já conta 30 anos de existência. Um etnólogo de mérito, Berndt, colecionou os sonhos que se referiam a esse rito. Os aborígenes dizem que eles sonham sobre o ritual e no seu livro Kunapipi ele nos dá uma coleção desses sonhos, todos eles com influência no ritual, seja alterando-o ligeiramente, seja acrescentando-lhe pequenos aspectos. O sonho é contado à tribo, e se a alteração for boa e pertinente, ela é acrescentada ao ritual. Analisando católicos, tenho observado que isso ocorre de alguma maneira. Alguém sonha com a missa, por exemplo, e o inconsciente dessa pessoa faz toda sorte de proposições para que alguma coisa possa ser acrescen­tada. Eu me lembro de uma freira que sonhou com a missa e toda a cerimônia seguia normalmente até que chegou o momento do "Sanctus" e, então, o sino tocou e houve uma interrupção. No momento mais sagrado da missa, o momento da transubstanciação, o bispo subiu ao púlpito e fez um sermão curto, prosaico e realista sobre o signifi­cado de Deus ter se tornado homem, após o qual a missa retomou seu curso. E como se o inconsciente da freira desejasse mostrar que uma parte importante do sentido do mistério havia sido perdida de vista.
Há, ainda, um outro tipo de história arquetípica que vale a pena mencionar. Se considerarmos o Fairy Tales of World Literature, observaremos que em certos relatos de etnólogos, o que é chamado de contos de fada são pratica­mente contos de animais, e mesmo na coleção de Grimm há muitos contos desse tipo. De acordo com Laurens van der Post, em The Heart of the Hunter, cerca de 80% dos contos dos bosquímanos são contos de animais. A palavra "animal" não é muito exata, pois embora os personagens sejam animais, todo mundo sabe que esses animais são, ao mesmo tempo, seres antropomórficos. Como acontece na história do Festival da Águia, no qual existem águias que são seres humanos e que dois minutos mais tarde são novamente águias, analogicamente acontece o mesmo com as histórias dos bosquímanos. Algumas vezes, eles mesmos dizem: "A hiena, que naturalmente é um ser humano, disse à sua esposa...". Nem sempre isso é dito de forma explícita, mas na história a hiena apanha um arco ou faz um barco, ou coisas semelhantes. Essas figuras são seres humanos com forma de animais, ou animais em forma de seres humanos; não são o que hoje em dia chamaríamos de animais.
Os antropólogos discutem se os animais estão dis­farçados em seres humanos, ou os seres humanos dis­farçados em animais. Mas para mim isto é uma besteira. Eles são o que são! São animais e seres humanos; nenhum primitivo iria se questionar sobre isso, não há contradi­ção. Do nosso ponto de vista eles são animais simbólicos, pois fazemos uma outra distinção: nós consideramos que o animal é o portador da projeção de fatores psíquicos humanos. Enquanto houver uma identidade arcaica e enquanto não se levar em conta a projeção, o animal e o que se projeta nele são idênticos; eles são uma e a mesma coisa. Consideram-se bonitas aquelas histórias de ani­mais que representam as tendências humanas arquetípicas. Eles são humanos porque naturalmente não repre­sentam os verdadeiros instintos dos animais, mas nossos instintos animais e, nesse sentido, eles são de fato antropomórficos. Digamos, por exemplo, que o tigre numa história represente a avidez; não é a avidez real do tigre que é representada, mas a nossa própria avidez de tigre. É quando nos tornamos tão ávidos quanto os tigres, que sonhamos com um tigre. Trata-se então de um tigre antropomórfico. Tais histórias com animais são extrema­mente frequentes, e há muitos pesquisadores que afir­mam que eles são o tipo mais antigo de história mitoló­gica. Estou muito tentada a acreditar que as formas mais antigas e básicas de contos arquetípicos têm esse molde — história sobre seres animais antropoides onde a raposa fala com ratos, e o coelho com o gato.
Por ser conhecida como alguém interessada em contos de fada, sempre sou forçada pelas famílias a contar histórias para suas crianças, e tenho observado que crianças abaixo de certa idade preferem histórias com animais. Quando se começa com histórias de príncipes e princesas que foram capturados pelo demônio, então as crianças perguntam: "O que é demônio?", e assim por diante. Elas precisam de muitas explicações. Mas se se inicia dizendo: "O cachorro disse para o gato...", então elas ouvem com muita atenção. Parece-me, pois, que esse é o material básico, a mais profunda e antiga forma de contos. Ocorre o mesmo na relação entre os contos de fada, sagas locais, fábulas de animais, ritos, mitos e contos religiosos. Eu menciono isso simplesmente pelo fato de haver tanta discussão e tantas hipóteses a esse respeito na literatura que trata de mitologia.
























3
Um método de interpretação psicológica
O problema que se segue é o método de interpreta­ção dos contos de fada. Como podemos nos aproximar do significado de um conto de fada? Ou antes, como seguir sua trilha? Com efeito, é como perseguir a pista de uma corça fugitiva e ágil. E por que interpretamos? Sempre e sempre os pesquisadores e especialistas em mitologia atacam os junguianos dizendo que os mitos falam por si sós; que se tem somente que desvendar o que ele diz e que não é necessária a interpretação psicológica; que a inter­pretação psicológica somente vê nele alguma coisa que não lhe pertence; que o mito, com todos os seus detalhes e amplificações é bastante claro por si mesmo. Isso é parcialmente verdadeiro. É tão verdadeiro quanto o sonho, que Jung diz que é por si mesmo sua melhor explicação. Isto significa que a interpretação do sonho sempre lhe é inferior. O sonho é a melhor expressão que existe para os acontecimentos interiores, podendo-se dizer o mesmo com relação aos mitos e aos contos de fada. Então, nesse sentido, aqueles que odeiam interpretações, dizendo que o mito é suficiente, estão certos. A interpretação é um escurecimento da luz original que brilha no próprio mito. Mas se alguém lhe conta um sonho maravilhoso, e está muito empolgado com ele, e você se senta calmamente e diz: "Sim, então você teve esse sonho!", e ele lhe dirá: "Mas eu quero saber o que significa!". Você, então, pode respon­der: "Bem, olhe para o sonho! Ele lhe diz tudo que possa ser dito. E essa é a melhor interpretação possível". Isso tem seu mérito, pois o indivíduo que sonhou vai para casa c pensará sobre o sonho até que de repente terá sua própria iluminação sobre ele. E isso acontece como esfre­gar uma pedra de churinga — isto é, tratar o sonho como se faz com uma pedra de churinga[1] ou talismã, até que este lhe dê alguma força — e esse processo não é interrompido por uma terceira pessoa que se interpõe.
Por outro lado, esse método não é suficiente na maior parte das vezes, pois as mensagens dos sonhos mais bonitas e surpreendentes não são captadas. Então, quem sonhou é como alguém que tem uma enorme conta bancária e não sabe disso, ou perdeu sua chave de segu­rança, ou o número de depósito. Então, qual a vantagem de tê-la? É bem verdade que se precisa ter tato, esperar e ver se o sonho fará ou não sua própria ponte de ligação com o consciente (do indivíduo que sonhou) e se esse processo pode ou não ocorrer por si só, pois certamente é mais genuíno e as pessoas ficam muito mais impressionadas com o que elas descobrem por si mesmas sobre seus sonhos do que se alguém lhes apresenta uma interpreta­ção, ainda que muito boa. Mas ocorre frequentemente, que aqueles milhões no banco não são usados, e as pessoas acabam empobrecidas. Há, ainda, uma outra razão por que a interpretação tem de ser praticada: as pessoas tendem a interpretar seus próprios sonhos e mitos dentro de um quadro específico de proposições conscientes. Por exemplo, um "tipo-pensamento" tenderá a extrair somente alguma espécie de pensamento filosó­fico que ele sente estar contido no sonho, e passará por cima da mensagem emocional, e das circunstâncias afe­tivas. E eu mesma tenho observado em homens, princi­palmente, que quando são cativos de sua própria anima (negativa), projetam essa sensação no sonho e veem, talvez, só os aspectos negativos.
O intérprete é útil porque ele diz: "Mas olhe aqui! O sonho começa muito ruim, mas observe, sua conclusão é muito boa. Certamente, ele lhe diz que você ainda é tolo ou meio cego, mas também lhe diz que há um tesouro". A interpretação traz um pouco mais de objetividade: o sonho ou o conto não trilham somente um estado de consciência já existente. É por isso que usamos interpretação em análise.
Como já sugeri, interpretação é uma arte ou ofício, que só pode ser aprendida pela prática e experiência. Entretanto, existem algumas regras para nos guiarem.
Da mesma forma que no sonho, nós dividimos a história arquetípica em vários aspectos, começando com a exposição (tempo e lugar). Em contos de fada o tempo e lugar são sempre evidentes porque eles começam com "Era uma vez" ou algo semelhante, que significa fora de tempo e de espaço — a "terra-de-ninguém" do incons­ciente coletivo. Por exemplo:
"Muito mais adiante do fim do mundo e mesmo além das montanhas dos Sete Cães, havia uma vez um rei...".
"Na extremidade da terra, lá onde o mundo termina com um muro..."
"Na época em que Deus ainda caminhava sobre a terra..."
Há muitas maneiras poéticas de expressar essa "terra-de-ninguém", esse tempo de "era uma vez", que, a partir de M. Eliade, muitos mitólogos chamam de illud tempus, que é essa eternidade atemporal de agora e de sempre.
Então, tomemos as dramatis personae (as pessoas envolvidas). Eu recomendo contar o número de pessoas que aparecem no começo e no fim da história. Se o conto começa: "O rei tinha três filhos", nota-se que há quatro personagens e que a mãe está sendo omitida. A história pode terminar com um dos filhos, sua noiva, a noiva do seu irmão e uma outra noiva, ou seja, quatro personagens também, mas numa outra disposição. Tendo-se observado que está faltando a mãe no início da história e que há três mulheres no final, poder-se-ia suspeitar que toda a história trata da redenção do princípio feminino, como acontece em uma das histórias que eu apresentarei mais tarde como ilustração.
Agora, nós continuamos com a exposição, ou seja, com o início do problema. Você o encontrará na forma do velho rei que está doente, por exemplo, ou o rei que descobre que toda noite são roubadas maçãs douradas de sua árvore, ou que seu cavalo é estéril, ou que sua mulher está doente e que precisa da água da vida. Algum proble­ma sempre aparece no início da história obviamente, porque se assim não fosse, não haveria história. Então define-se o problema psicologicamente e procura-se também entender sua natureza.
Em seguida, tem-se a peripetéia, que pode ser curta ou longa — os altos e baixos da história. Isso pode ocupar páginas e páginas, pois pode haver muitas peripeteiai; ou talvez tenha somente uma, e então geralmente se alcança o clímax, o ponto decisivo, onde ou todo enredo se desen­volve para uma tragédia ou ao contrário, dá tudo certo. Este é o ponto alto da tensão. Então, com raras exceções, há uma conclusão feliz ou catastrófica. Pode-se dizer, também, conclusão positiva ou negativa: ou o príncipe encontra sua noiva, casam-se e são felizes para sempre, ou eles caem no mar e desaparecem, e nunca mais ninguém ouve falar deles (esse último caso sendo positivo ou nega­tivo, dependendo do ponto de vista de cada um). Algumas vezes, em histórias muito primitivas, entretanto, não há conclusão feliz nem catástrofe, a história simplesmente cessa. De repente, torna-se estúpida e se vai exatamente como se o contador de histórias de repente perdesse o interesse e adormecesse.
E, ainda, pode haver um final ambíguo, algo que não se encontra em outras espécies de lendas ou mate­riais míticos: explicitando, um final feliz seguido de um comentário negativo do historiador. Por exemplo: "E eles casaram, houve uma grande festa e havia vinho, cerveja e um maravilhoso pedaço de carne; eu fui à cozinha, mas quando tentei pegar alguma coisa, o cozinheiro me deu um pontapé no traseiro e saí correndo tanto que cheguei até aqui para contar-lhe essa história".
Os russos algumas vezes terminavam assim: "Eles casaram e foram muito felizes. Beberam muito vinho e cerveja, mas eu não consegui beber tanto, pois o vinho sempre corria pela minha barba". Alguns ciganos dizem: "Eles casaram e viveram felizes e ricos até o fim de suas vidas, mas nós, pobres diabos, estamos aqui chupando o dedo e tremendo de fome!"; e então, eles passam o chapéu recolhendo dinheiro.
Esta maneira de finalizar um conto de fada é um rite de sortie[2], porque um conto de fada leva você para longe, para o mundo sonhador da infância, do inconscien­te coletivo, onde você não pode ficar. Agora imagine que você mora numa casa de camponeses e você permanece no clima do conto de fada, e então você tem de ir à cozinha. Se você não saiu da história, você certamente queimará a comida, porque você continuará a devanear sobre o prín­cipe e a princesa. Então, a história precisa ser terminada com um: "Sim, este é o mundo do conto de fada, mas nós estamos aqui numa realidade mais amarga. Nós precisa­mos voltar ao nosso trabalho cotidiano, e não ficarmos sonhando e questionando sobre a história". É preciso desligar o mundo do conto de fada.
O método consiste, pois, em observar a estrutura do material, a fim de que se possa pôr um pouco de ordem; e como eu disse, devemos especialmente lembrar de contar RS figuras e o simbolismo do número e o papel disso.
Existe um outro modo que eu algumas vezes adoto, mas que não pode ser feito com todas as histórias. Por exemplo, há uma história russa onde o czar tem três filhos e você pode colocá-la dessa maneira:
Primeiro existe um quarteto no qual a mãe é omitida, e o herói, o 4º do sistema, vai para o Além (para o inconsciente, nós podemos dizer, onde há três bruxas (Baba-Yagas) e a Princesa Maria, que fica com o herói. No fim, Maria é redimida pelo herói e eles se casam e têm dois filhos. Então, há um quarteto que é puramente masculi­no, um que é puramente feminino e no fim (representado no centro do esquema), um quarteto misto, de três ho­mens e uma mulher. Não se pode traçar esse tipo de esquema com todas as histórias. Há muitas histórias estruturadas dessa forma, entretanto é necessário verifi­car se existe tal esquema. Se não existe, isto também é revelador, porque a falta de uma estrutura é também significativa, como o é uma estrutura irregular nas ciências físicas. A exceção pertence também aos fenômenos, mas é necessário explicar por quê.
Para continuar com a sequência do nosso pensa­mento: nós simplesmente tomamos o primeiro símbolo. Digamos que havia um velho rei doente porque lhe faltava a água da vida, ou uma mãe que tinha uma filha desobediente; é necessário ampliar tais elementos, o que significa que nós precisamos procurar todos os possíveis temas paralelos. Eu enfatizo que é importante reunir todos aqueles que se possam encontrar, pois inicialmente é muito provável que não se encontrem muitos, quando você chegar ao número 2.000, então pode parar! No conto russo O filho do czar, por exemplo, a história começa com um velho czar e seus três filhos. O filho mais novo é o herói "inocente" da história. Eu comparei o comportamento do czar com aquele da função superior, e o filho com a quarta função, mas isso é discutível. Isto não pode ser provado a partir da história, pois o czar não é eliminado no final, bem como não luta com seu filho. Mas se você analisar histórias paralelas, então, torna-se muito claro que o czar representa a velha função superior e o terceiro filho é aquele que traz a renovação, isto é, a função inferior.
Então, é preciso que se analise o material compara­tivo, antes que possamos dizer qualquer coisa. Precisa­mos perguntar se aquele tema ocorre em outros contos, como ocorre, e tirar uma média, e somente então nossa interpretação pode ter uma base relativamente segura. Por exemplo, pode haver um conto da fada no qual uma pomba branca tem um mau comportamento e se é tentado a concluir que ela representa uma bruxa ou feiticeira. Nessa história isso pode ser verdade, mas se você procu­rar o que uma pomba branca usualmente significa, você se surpreenderá. Em regra geral, na tradição cristã, a pomba branca significa o Espírito Santo, e em contos de fada, em geral, significa uma mulher amante, tipo Vênus. Consequentemente, tem-se que perguntar por que algo que é usualmente um símbolo do Eros positivo, aparece negativamente nesta história. Tem-se uma visão diferen­te da imagem, se não se preocupar em consultar outras histórias. Imagine que você é médico fazendo sua pri­meira autópsia e encontrou um apêndice no lado esquer­do, e não sabe, pela anatomia comparativa, que normal­mente apêndice fica no lado direito. O mesmo acontece com contos de fada: é necessário que se conheça o contexto médio, no qual aparece um elemento, e, então, confrontá-lo com material análogo a fim de que se conheça o que chamo de "anatomia comparativa". Este estudo lhe per­mitirá compreender o que é específico, e somente então, você poderá apreciar, com consistência, o que é exceção. Amplificar significa alargar um tema através da junção de numerosas versões análogas. Quando já se colecionou bastante paralelos de um tema, então pode-se passar para 0 tema seguinte, e, deste modo, adentrar a história.
Existem ainda mais dois passos que devem ser dados; o próximo será construir o contexto. Digamos que no conto de fada existe um rato: amplificando-se o tema, nota-se que este rato comporta-se de uma maneira espe­cífica. Encontrou-se, por exemplo, que os ratos represen­tam as almas dos mortos e bruxas; que eles são animais de demônio, que são o animal de Apoio no seu aspecto infernal; que trazem a peste e também animais fantas­mas, pois quando alguém morre sai um rato de seu corpo, ou que a alma aparece sob a forma de rato etc. Analisando o rato da história e os das amplificações, verifica-se que algumas amplificações ajudam a entender e explicar o rato em questão, outras não. Então o que fazer? Em tais casos, eu primeiro considero aqueles ratos que explicam o "meu" rato, e deixo os outros de reserva no bolso do colete, pois, algumas vezes, no decorrer da história, outros aspectos do rato aparecem numa outra constela­ção e eu posso precisar deles. Digamos que em nosso conto ele é um rato positivo e que não há nenhum rato-bruxa por volta, mas, mais adiante, existe alguma coisa sobre uma bruxa. Então você diria: "Hum, hum. Existe uma conexão entre essas duas imagens; é muito bom que eu saiba que ratos são bruxas também."
Segue-se, agora, o passo essencial, que é a interpre­tação propriamente dita, ou seja, o trabalho de traduzir a história amplificada para a linguagem psicológica. Há um risco de se ficar no meio do caminho, ou seja, de ficar aprisionado no modo mítico de expressão e falar, por exemplo, sobre "a mãe terrível que é vencida pelo herói". Tal afirmação torna-se correta somente se a ela acrescentarmos: "A inércia do inconsciente é suplantada por um impulso em direção a um nível mais alto de consciência". Ou seja, precisa-se usar a linguagem estri­tamente psicológica e somente então saberemos o que é interpretação.
O leitor de espírito crítico dirá: "Tudo bem, mas o que se faz é simplesmente uma troca de um mito pelo outro que pode ser chamado de mito junguiano". Não há muito o que se responder a isso, a não ser dizer: "Sim, fazemos isso, mas conscientemente; sabemos o que esta­mos fazendo e, sabemos também que daqui a 200 anos alguém lendo nossas interpretações poderá dizer: 'Não é gozado? Eles traduziram o mito do conto de fada para a psicologia junguiana e pensaram que era só isso e pronto! Mas nós sabemos que...' ". E então, essas pessoas trarão uma nova interpretação e a nossa será arrolada entre tantas outras interpretações — uma ilustração de como tal material foi analisado na época. Estamos bastante conscientes dessa possibilidade e de quão relativas são nossas interpretações e de que elas não encerram a verdade última. Contudo, pela mesma razão que antiga­mente os contos de fada e mitos eram contados, nós hoje os interpretamos, ou seja: existe um efeito vivificante que provoca uma reação satisfatória, trazendo paz ao subs­trato inconsciente instintivo, sendo o mesmo tipo de sensação que os contos de fada provocam quando conta-os. Interpretação psicológica é o nosso modo de contar histórias, pois ainda necessitamos delas e ainda aspira­mos à renovação que advém da compreensão de imagens arquetípicas. Nós sabemos muito bem que a interpretação é o nosso mito. Nós explicamos X por Y, porque Y corresponde melhor ao nosso espírito atual. Um dia não será mais esse o caso e haverá necessidade de uma explicação Z. Isso nos leva a afirmar que nossas interpre­tações nunca deverão se apresentar como "Isto é assim", o que seria uma tapeação. Numa linguagem psicológica pode-se dizer somente que o mito parece representar isso ou aquilo, e então, modernizá-lo sob essa forma. O único critério correto seria perguntar: Essa interpretação é satisfatória? Em que medida tem significado para mim e para outras pessoas? e meus sonhos concordam com ela? Quando faço uma interpretação, eu sempre observo meus sonhos para ver se eles concordam. Se eles concordam, então, eu sei que a interpretação é a melhor que posso fazer— ou seja, que em relação à minha própria natureza eu interpretei o material de maneira satisfatória. Se minha psique não diz: "Está bem, porém você ainda não respondeu a isso", eu sei que eu não posso ir mais além. É possível que haja outras revelações na história, mas eu alcancei os meus próprios limites e não posso ir além de mim mesma. Tenho, pois, que descansar, satisfeita, e comer o que posso digerir. Há muito alimento no simbolismo do texto, mas eu ainda não posso digeri-lo psicologicamente.









4
A interpretação de um conto: "As três penas"
Vamos abordar, agora, problemas mais práticos de interpretação dos contos de fada. Por razões didáticas, eu escolhi um conto de Grimm bastante simples, não pen­sando em termos de fazê-lo interessante ou fascinante, mas, simplesmente, de expor o método de interpretação. Eu tentarei demonstrar como se deve proceder para se chegar ao significado de uma dada história. Eis o texto:
As três penas
"Era uma vez um rei que tinha três filhos. Dois eram espertos e inteligentes, mas o terceiro não falava muito e era simplório, por isso chamavam-no de 'Tolo'. O rei estava velho e fraco, pensava na proximidade de sua morte e não sabia qual dos seus filhos deveria herdar seu reino. Então, um dia, o rei disse a seus filhos que eles deveriam sair pelo mundo e aquele que trouxesse o tapete mais bonito se tornaria rei quando ele morresse. Para evitar qualquer briga entre eles, o rei os acom­panhou até a frente do castelo, assoprou três penas no ar e disse: Tara a direção que elas voarem, vocês deverão seguir'. Uma pena foi para o leste, outra para o oeste e a terceira voou só um pouco para a frente e caiu no chão. Logo, um irmão seguiu para a direita, outro para a esquerda e eles riram do Tolo que tinha que ficar onde a terceira pena caiu. O Tolo sentou-se no chão e estava muito triste, quando de repente ele notou que havia um alçapão ao lado da pena. Ele levantou-se e, abrindo-o, encontrou degraus que desciam; ele desceu as escadas para dentro da terra. Ali, encontrou uma outra porta, onde bateu e de dentro saiu uma voz que dizia:
— Senhorita-Rãzinha verde e pequenina, Encolha a perna, Encolha a perna do cachorrinho, Encolha para frente e para trás, Vá depressa ver Quem está a bater.
A porta se abriu; o Tolo viu uma rã enorme e gorda sentada com várias rãzinhas em volta, circundando-a. A Se­nhora-rã, então, perguntou-lhe o que queria, e ele disse que gostaria de ter o tapete mais fino e mais bonito. Ela chamou uma rãzinha e disse:
— Senhorita-Rãzinha verde e pequenina, Encolha a perna,
Encolha a perna do cachorrinho, Encolha para frente e para trás Vá e a caixa grande me trarás.
A jovem-rã, correndo, trouxe a caixa; a senhora-rã abriu-a e tirou de dentro um tapete tão lindo e tão delicado, que jamais poderia ter sido tecido na terra, e deu-o para o Tolo. Ele agradeceu e subiu novamente as escadas.
Os outros dois irmãos pensavam que o irmão mais novo, sendo tão tonto, nunca seria capaz de encontrar coisa algu­ma, e assim eles compraram mantas grosseiras que a primei­ra pastora que encontraram estava usando. Juntos chega­ram em casa os três irmãos, e quando o rei viu o tapete tão lindo do Tolo, disse: 'Por direito o reino deverá ser entregue ao mais jovem'. Mas, acontece que os outros dois irmãos não deixaram o pai em paz, dizendo ser impossível entregar o reino ao Tolo, pois ele era tão estúpido e pediram, então, que se fizesse outra prova.
Então o rei disse: 'Quem trouxer o anel mais bonito terá o reino'. E outra vez as três penas foram sopradas. Os irmãos mais velhos foram para leste e oeste, e para o Tolo a pena caiu em frente, no chão.
Como da vez anterior, o Tolo desceu até a sala onde estava a senhora-rã e disse-lhe que precisava do anel mais bonito. Ela abriu uma caixa, tirou de lá um anel cheio de pedras preciosas e tão lindo que nenhum ourives da face da terra seria capaz de fazê-lo. Os outros dois irmãos riram ao saber que o Tolo saíra em busca de um anel de ouro, e eles por sua vez não encontraram dificuldade na tarefa e se contentaram em trazer um anel de uma velha roda de carroça. Quando o Tolo mostrou seu anel de ouro, o rei falou que o reino lhe pertencia. Novamente, os dois irmãos não deixaram o rei em paz, e pediram-lhe que fizesse uma terceira prova. E o rei então disse: 'Quem trouxer a noiva mais bonita terá o reino'. Ele soprou as penas, e os filhos seguiram as direções das mesmas. O Tolo foi ao encontro da senhora-rã, e disse que agora precisava levar a mulher mais bonita para sua casa. 'Ah! disse a rã, a mulher mais bonita não se encontra à mão assim tão fácil, mas você a terá.' Ela, então, lhe deu uma cenoura com um buraco no meio e presos a ela seis ratinhos. E o Tolo, muito triste, disse: 'O que eu devo fazer com isso?' A rã respondeu-lhe que ele deveria colocar uma de suas rãzinhas dentro da carrocinha. Ele apanhou, ao acaso, uma das rãzinhas que circundavam a senhora-rã, e colocou-a na carrocinha. Mal ela se senta e já se transforma numa linda moça; a cenoura numa carruagem e os seis ratos em cavalos brancos. Ele a beijou e dirigiu a carruagem para o palácio. Os irmãos comportaram-se da mesma maneira que das vezes ante­riores e voltaram para casa com as duas primeiras camponesas que encontraram. Quando o rei os viu disse: 'O reino será do mais jovem quando eu morrer'. E, novamente, os dois irmãos come­çaram a reclamar dizendo que não deveria ser assim e, então, propuseram que aquele cuja esposa saltasse através da argola que estava pendurada no teto deveria ganhar o reino. Eles pen­savam que as duas camponesas tivessem mais chance de vencer, pois eram muito mais fortes que a esposa do Tolo, que era uma moça muito delicada. O velho rei concordou e as duas camponesas saltaram, mas elas eram tão desajeitadas que quebraram braços e pernas. Por outro lado, a mulher do Tolo saltou tão leve quanto um veadinho atravessando a argola. E, então, não foi possível mais fazer nenhuma objeção, os irmãos tiveram que aceitar a perda, e o Tolo ganhou a coroa e reinou com sabedoria por muitos e muitos anos."
Pode-se reconhecer nessa história, simples e clássi­ca, um acúmulo de temas bem conhecidos. Balte e Polivka (Anmerkungen zu den Kindar und Hausmãrchen der Brüder Grimm, vol. II, p. 30) dizem que esse conto de fada foi encontrado pelos Grimm em 1819, em Zwehrn, Alema­nha, e que existe uma outra versão alemã, proveniente da região de Hesse, com pequenas variações. Eu não vou repetir toda a história, mas nesta outra versão, o que se tem é que ao invés de tapete é um lençol, e quando o Tolo desce à terra ele não encontra rãs, mas uma linda jovem tecendo o lençol, o que muda um pouco o problema. Ela também lhe dá um tapete e somente vira rã quando vem para a superfície da terra. Isso significa que sob a terra ela lhe parece uma linda jovem, mas, tão logo ela vem à superfície com o Tolo ela se torna uma rã. E como uma rã, ela chega ao palácio do rei, numa carruagem e suplica em altos brados: "Beija-me e versenk Dick". "Versenken" quer dizer meditação intimista, ou seja, mergulhar na própria meditação — o que é uma expressão muito estra­nha para um conto de fada. A rã repete isso três vezes para o Tolo, que enlaçando-a pula num riacho com ela, pois ele entendeu "versenken" como significando que ele deveria mergulhar na água (o que também é um significado para essa palavra). No momento em que ele a beija e mergulha, ela se torna uma linda mulher.
Existem ainda outras variações em Hesse. Em uma outra, ao invés de três penas, tem-se três maçãs que rolam em diferentes direções. Na versão francesa, a única variação é que, ao invés de rã, existe um gato branco. Para não repetir todas as possibilidades, mencionarei algumas mais frequentes. O tema das penas, por exemplo, aparece muitas vezes como flechas que o pai atira em três direções. A noiva pode aparecer como uma rã, um sapo, um gato branco, uma maçã, um lagarto ou uma tartaruga e, algumas vezes, ocorre ser um objeto inanimado como uma meia comprida, uma boneca ou uma boina que salta.
No final de todas essas variações — entre as quais as russas são as mais interessantes — existe sempre uma nota curta, explicativa para o fato de soprar uma pena, que é uma forma de decidir a direção a seguir e é um costume comum de muitas cidades medievais. Não se sabendo aonde ir, ou estando perdido numa encruzilhada, e não tendo nenhum plano, então, o costume era apanhar uma pena, assoprá-la e caminhar para a direção que o vento a levasse. Esta era uma espécie de oráculo pelo qual as pessoas se guiavam. Existem muitas histórias medievais e mesmo expressões folclóricas, que se referem a isso, como, por exemplo: "Eu devo ir para onde a pena voar". Em países nórdicos e em certas versões russas e italianas, ao invés de penas e flechas, ou maçãs, aparecem esferas ou bolas.
Começaremos o nosso estudo com a análise das primeiras sentenças do conto. A exposição da história começou assim: "Era uma vez um rei que tinha três filhos. Dois eram espertos e inteligentes, mas o terceiro não falava muito e era simplório, por isso chamavam-no de Tolo. O rei estava velho e fraco, pensava na proximidade de sua morte e não sabia qual dos seus filhos deveria herdar seu reino". Isso mostra a situação psicológica de abertura. A última sentença propõe o problema, a saber, quem deverá suceder ao rei e herdar o reinado.
Esse tipo de situação de abertura — o rei e seus três filhos — é extremamente frequente. Considerando-se somente a coleção de Grimm, que é uma fração no mundo dos contos de fada, encontra-se ao menos 50 ou 60 histó­rias que se iniciam dessa forma. Esta não é uma família normal, pois não há nem mãe nem irmãs, sendo este contexto inicial puramente masculino. O elemento femi­nino que existe numa família completa não está represen­tado. Decorre daí que a ação principal refere-se ao fato de se encontrar a mulher adequada, da qual depende a herança do reino. Consequentemente, espera-se que o herói não realize nenhum dos feitos viris. Ele não é um herói no sentido próprio da palavra. Ele é ajudado o tempo inteiro pelo elemento feminino, que resolve todos os problemas para ele, e realiza todas as tarefas exigidas, tais como tecer o tapete, encontrar o anel e pular através da argola. A história termina com um casamento — uma união equilibrada dos princípios feminino e masculino. Em resumo, a estrutura geral da história indica a existên­cia de um problema, que é uma atitude masculina domi­nante, uma situação que omite o elemento feminino, e toda a trama mostra como esse elemento feminino é trazido à luz e restaurado.
Primeiro, devemos considerar o simbolismo do rei. Um estudo mais aprofundado sobre o rei encontra-se na alquimia num capítulo intitulado "Rex et Regina", do livro de CG. Jung, Mysterium Conjunctionis. O material cole­tado por Jung é muito extenso, mas farei uma condensa­ção breve do que ele diz sobre o rei.
Nas sociedades primitivas, geralmente o rei ou o chefe da tribo tem qualidades mágicas — ele tem mana. Certos chefes, por exemplo, são tão sagrados que não podem mesmo tocar a terra e por isso são carregados pelo seu povo. Em outras tribos, as vasilhas onde o rei come e bebe são jogadas fora e ninguém pode tocá-las — elas são tabu. Alguns chefes e reis também nunca são vistos por causa de um tabu — quem olhar a face do rei morrerá. De alguns chefes é dito que suas vozes são como trovões e que de seus olhos emanam raios. Em muitas sociedades primitivas, a prosperidade de todo o país depende da sanidade física e psíquica do rei: se ele se torna impotente ou doente, ele tem que ser morto e um outro rei tomar seu lugar, um novo rei cuja saúde e potência garantam a fertilidade das mulheres e do gado, tanto quanto a pros­peridade de toda a tribo. Frazer cita exemplos de socie­dades onde não se espera o rei chegar à impotência ou à doença, mas ao invés disso, o rei é morto após certo período de tempo — diga-se 5, 10 ou 15 anos — estando subjacente a mesma ideia, ou seja, que o rei deve ser reposto periodicamente. Em certas tribos prevalece a ideia de que, realmente, não se deve matar o rei, que incorpora uma espécie de espírito protetor e ancestral para a tribo, mas que haja uma sucessão: a velha casa é derrubada, de tal forma que o espírito possa se mudar para uma nova casa e continuar a reinar. A crença é que o mesmo espírito sagrado e totêmico continua reinando e que a morte do rei se faz necessária, pois propicia um melhor continente físico para esse espírito.
Pode-se dizer, em resumo, que o rei ou chefe incor­pora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. No seu corpo vive o espírito do totem da tribo. Consequentemente, ele tem muitas característi­cas que nos levariam a considerá-lo o símbolo do SELF, porque o SELF, de acordo com a nossa definição, é o centro do sistema autorregulado da psique, do qual depende o bem-estar do indivíduo. (Os nossos reis cristãos, frequentemente, carregavam uma esfera — a terra — com uma cruz sobre ela; e os reis, em geral, carregavam outros tantos símbolos pertencentes a vários contextos mitológi­cos que, como se sabe, representam o SELF.)
Em muitas tribos há uma separação entre o curandeiro (médico) e o rei ou chefe — isto é, entre os poderes terrestres e espirituais — a mesma coisa acontece em nossa civilização; por exemplo, na Idade Média, a terrível luta entre o sacerdotium e imperium (a Igreja e o Estado). Esses poderes chamavam a si o princípio divino, claman­do ser a encarnação dos símbolos do divino — ou, como pode-se dizer, símbolos do inexprimível arquétipo do SELF. Em todos os países e no simbolismo alquímico, relatado no livro de Jung, a ideia dominante é a de que o rei velho é de alguma maneira insatisfatório. Nas tribos primitivas, quando ele é impotente, do harém surgem os rumores, e a tribo, silenciosamente, decide matá-lo. Ele pode ainda ser insatisfatório sob outros aspectos: ele pode ser muito velho para realizar determinadas tarefas, ou seu tempo já se esgotou (ele já reinou 10 ou 15 anos); torna-se, então, inevitável a morte do rei.
Em civilizações mais adiantadas, como, por exemplo, no Antigo Império Egípcio, havia um ritual de renovação, uma morte e a ressurreição simbólica do rei, como o que era realizado na Festa de Sed. Em outros países havia o denominado rei do Carnaval. Um criminoso condenado a morrer tem o direito de viver seus três últimos dias como um rei. Ele se veste como um rei, com todas as insígnias, tiram-no da prisão e ele pode pedir o que quiser, pode ter todas as mulheres que quiser, pode realizar festins e tudo o mais e, depois de três dias, ele é executado. Existe também um ritual onde um boneco é "morto" no lugar do rei. Atrás de todas essas diferentes tradições, existe o mesmo tema: a necessidade de renovação do rei através da morte e do renascimento.
Se se aplica isso tudo à nossa hipótese — ou seja, de que o rei é um símbolo do SELF, pode-se perguntar: Por que um símbolo do SELF envelhece? Conhecem-se alguns processos psicológicos que correspondam a esse fato? A história comparada das religiões mostra a tendência dos rituais ou dogmas religiosos a tornarem-se superados depois de um tempo, a perderem seu impacto emotivo original, tornando-se fórmulas mortas. Embora adquiram qualidades positivas da consciência, como a continuidade, eles perdem o contato com a corrente irracional da vida e tendem a tornar-se mecânicos. Isso é verdadeiro não somente para as doutrinas religiosas e sistemas políticos, mas para quase tudo na vida, pois quando algo se torna consciente por muito tempo, é como o vinho que se esvai da garrafa; torna-se um mundo morto. Consequentemente, se nossa vida consciente quiser evitar uma petrificação, há necessidade de constante renovação pelo contato com a corrente da vida psíquica inconsciente; e o rei, sendo o símbolo dominante e mais central dos conteúdos do inconsciente coletivo, está naturalmente sujeito a esta necessidade.
Pode-se dizer que o símbolo do SELF está também exposto a esse processo e tem necessidade de renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e tornar-se uma fórmula puramente exterior. Nesse senti­do, pode-se dizer que um rei envelhecido representa um conteúdo dominante da consciência coletiva e está subja­cente a todas as doutrinas políticas e religiosas de um grupo social. No Oriente, para muitas camadas da popu­lação, este conteúdo aparece como o Buda, e para nós, até agora, como Cristo que, de fato, foi chamado de "Rei dos reis".
Na nossa história, aparentemente o rei não tem esposa, ou se tem, ela não aparece. O que representaria, então, a rainha? Se nós tomarmos o rei como representa­ção do conteúdo simbólico central e dominante da cons­ciência coletiva, então a rainha seria o elemento feminino correspondente, ou seja — as emoções, sentimentos ou ligações irracionais desse conteúdo dominante. Pode-se dizer que em cada civilização há uma cosmovisão com uma imagem central de Deus que domina a civilização, e com decorrentes hábitos ou estilos de vida, com uma certa forma de sentir e de viver o Eros, que influenciam o relacionamento das pessoas umas com as outras. A tônica do sentimento afetivo dessa coletividade seria represen­tada pela rainha, companheira do rei; assim, na Idade Média, a ideia gótica de Cristo se encarnava na figura do rei daquela época, enquanto as representações de Eros — encontradas nos poemas dos trovadores — cristalizavam-se em torno da Virgem Maria, a Rainha do Céu, relacionada com o Cristo-Rei. Ela estabeleceu um modelo de compor­tamento feminino, e um padrão para a anima do homem tanto quanto para a da mulher. Nos países católicos, as mulheres tendem ainda a se adaptar naturalmente a esse modelo, e os homens tentam educar a anima para se enquadrar neste estilo de relacionamento e comporta­mento erótico.
Pode-se, pois, observar a conexão íntima existente entre o rei e a rainha, o princípio do Logos dominando uma certa civilização e atitude coletiva, e o estilo de Eros acompanhando-o de uma forma específica. A ausência da rainha significa que esse último aspecto foi perdido e, consequentemente, o rei é estéril; sem a rainha, ele não pode ter mais filhos. Pode-se pressupor, então, que a his­tória trata da problemática de uma atitude coletiva domi­nante na qual o princípio de Eros — o relacionamento com o inconsciente, com o irracional, o feminino — foi perdido. Isto se refere à situação onde a consciência coletiva tornou-se petrificada e enrijecida em doutrinas e fórmulas.
Este rei tem três filhos; então, o problema se propõe sob a forma de quatro figuras masculinas, três das quais estão adaptadas ao que deveriam ser e a quarta está abaixo da média. As pessoas que conhecem a psicologia junguiana, naturalmente, concluirão que eles significam obviamente as quatro funções da consciência: o rei, a função dominante ou principal; os dois irmãos mais velhos, as funções auxiliares, enquanto que o Tolo seria a quarta função, ou seja, a função inferior. Isso pode ser correto, porém parcialmente, pois a teoria das quatro funções de Jung refere-se ao indivíduo. Nos contos de fada não se tem a história interior de um indivíduo e então não podemos olhar por esse ângulo. Devemos, sim, ampliar o tema da quaternidade masculina, e encontraremos na História da Humanidade temas, tais como os Quatro filhos de Horo, os Quatro evangelistas, e outros mais circundando o símbolo principal do SELF.
Estas quaternidades encontradas na história com­parada das religiões e na mitologia não podem, a meu ver, ser interpretadas como as quatro funções que aparecem no âmbito do indivíduo. Elas representam um padrão mais básico da consciência do qual a estrutura das quatro funções é derivada. Se nós sabemos como diagnosticar um tipo psicológico, podemos dizer que tal homem é um "tipo-pensamento" e que seu sentimento inferior traz tais e quais problemas, e que certos aspectos do seu comporta­mento são característicos desse tipo, enquanto outros são mais individuais. O problema das quatro funções sempre aparece para um indivíduo, num certo contexto, mas existem tendências gerais básicas subjacentes. Fi­nalmente, pode-se questionar por que a consciência humana tende sempre a desenvolver, em cada homem, as quatro funções. E a resposta é que pode haver uma dis­posição inata no ser humano para estruturar um sistema consciente quadrifuncional. Mesmo havendo pouca ou nenhuma influência numa criança, ela espontaneamente desenvolverá uma função, e se for analisada na idade de 30 ou 40 anos, ela apresentará uma estrutura quadri­funcional. A disposição geral subjacente é espelhada em muitos símbolos quaternários na mitologia, tais como os quatro ventos, os quatro pontos cardeais e também as quatro figuras reais desse nosso conto.
Para ser exato, dever-se-á dizer que o rei não repre­senta a principal função, mas é a base arquetípica da­quela função, no sentido de que ele é o fator psicológico que constrói as principais funções de todas as pessoas. Pode parecer que eu esteja me contradizendo, pois, pri­meiro, eu disse que o velho rei representava o conteúdo dominante da consciência coletiva e, agora, eu digo que ele simboliza aquela disposição responsável pelo surgimento da função principal. Como isso se relaciona? É uma contradição? Isto poderá parecer uma segunda interpre­tação, mas se refletirmos a respeito de como uma função principal se forma, observaremos então que ela se cons­trói na primeira metade da vida humana servindo geral­mente à adaptação coletiva. Tomemos, por exemplo, o caso de um menino, que ao brincar com coisas práticas, mostra-se habilidoso, e seu pai então lhe diz que ele será engenheiro mais tarde e o menino é, assim, encorajado; na escola tenderá a ser muito bom nas matérias ligadas a esse campo, enquanto será ruim nas outras, ficando orgulhoso do que ele pode fazer bem, e quererá fazer sempre melhor, porque há uma tendência natural para se fazer sempre aquilo que sai melhor e negligenciar o outro lado. Essa perspectiva unilateral, sem dúvida, aos poucos formará a função principal, que é aquela função com a qual as pessoas se adaptam às necessidades coletivas. Portanto, o dominante da consciência coletiva, também constela a função principal no indivíduo.
Retornemos ao homem medieval para quem a figura dominante do SELF é o Cristo. Se esse homem, por suas disposições, for um tipo-pensamento, ele meditará intelectualmente sobre a essência do Cristo; se sua ten­dência inata for o tipo-sentimento, ele será envolvido pelas preces que ouve e não pensará sobre o símbolo de Cristo, mas se relacionará com ele através de sua função principal, o sentimento. E, pois, assim que o rei represen­ta o conteúdo simbólico dominante de uma situação consciente coletiva, e que está, também, relacionado com a função principal de cada pessoa.
Os outros filhos, logicamente, têm que ser interpre­tados nessa mesma linha — isto é, os dois filhos que são inteligentes e bem dotados representam o fundamento básico para a construção das duas funções auxiliares no ser humano — e o Tolo representaria a base da construção da função inferior. Mas o Tolo não é somente isso, ele é também o herói, e toda a história está centrada nele. En­tão, nós precisamos considerar, ainda que brevemente, o que significa a figura do herói numa história mitológica, pois, lendo-se muitas interpretações psicológicas dos mitos, logo se percebe que há uma tendência constante a inter­pretar o herói ora como símbolo do SELF, ora como símbolo do "Ego". Alguns autores se contradizem no mes­mo tempo: eles começam como se o herói fosse um "Ego" e, depois, passam a interpretá-lo como sendo o SELF.
Antes de se discutir esse problema, é necessário ter-se claro o que se entende por "Ego". O ego é o complexo central do campo da consciência da personalidade. Mas como todas as pessoas têm um "Ego", então, falar em "Ego" já é uma abstração, pois está-se falando do "Eu" de todas as pessoas. Se se diz frases tais como: "O ego resiste ao inconsciente", então, está-se fazendo uma observação geral, algo que se aplica ao ego médio, desprovido das qualidades mais subjetivas e únicas.
Agora tem-se que ver o símbolo do herói nos mitos, o que normalmente ele faz. Frequentemente, ele é um salvador: ele salva seu país e seu povo de dragões, bruxas e de outros males. Em muitas histórias, é ele quem encontra o tesouro escondido. Ele liberta sua tribo e livra-a de toda a sorte de perigos. Ele restabelece as ligações de seu povo com os deuses e com a vida. Ele renova o prin­cípio da vida. É ele, também, quem navega pelos mares à noite, e que saindo fora da barriga da baleia, leva consi­go todos aqueles que foram engolidos antes dele. Em certos mitos, ele é excessivamente autoconfiante, che­gando mesmo a ser destrutivo. Então, os deuses, ou alguns poderes inimigos, decidem destruí-lo. Em muitos mitos o herói aparece como uma vítima inocente dos poderes malignos. Existe ainda uma figura de herói-trapaceiro, que tanto faz coisas boas como más, e que liberta seu povo, mas também coloca-o em algumas difi­culdades; ele ajuda certas pessoas e destrói outras por engano ou por distração; então, ele é semidiabólico, semi-salvador, e nestes casos ele pode ser ou destruído ou reformulado ou transformado no final da história.
Entre as figuras de herói existe uma grande varie­dade: o tipo "tolo", o tipo trapaceiro, o homem-forte, o inocente, o jovem belo, o feiticeiro, aquele que resolve os problemas e obstáculos através da mágica e aquele que os suplanta e resolve através de poder e coragem. Sabe-se pelos resultados de pesquisas na área da psicologia infantil, que nos primeiros 20 anos de vida (tomando-se uma estimativa ampla), a principal tendência do incons­ciente é construir um complexo de Ego forte, e que a maioria das dificuldades na juventude resultam de per­turbações ocorridas nesse processo, seja pela influência negativa dos pais, seja pela experiência traumática ou qualquer outro distúrbio. Em casos tais como os descritos por Michael Fordham, o complexo do Ego não é capaz de se construir. Mas, existem processos naturais observá­veis na psique da criança: os sonhos os espelham e é através dos sonhos que se pode observar o modo como o ego se forma. Ora, um dos fatores desta formação é o ideal do herói que desempenha o papel de modelo. O pai muitas vezes preenche esse papel, da mesma forma que os maquinistas de trens, policiais, irmãos mais velhos, ou os meninos maiores da sala de aula; são eles que recebem a transferência da criança. Nos seus sonhos secretos, a criança imagina que é aquilo que ela quer ser quando crescer. As fantasias de muitos garotinhos são aquelas de vestir uma capa vermelha e sinalizar os trens, de ser o chefe, o "chefão", o rei, ou chefe de polícia. Esses modelos são projeções produzidas pelo inconsciente; elas apare­cem naturalmente nos sonhos dos adolescentes ou são projetadas em figuras externas que captam a fantasia da criança e influenciam a construção do seu ego; toda mãe sabe disso. Por exemplo, se a mãe leva seu filho ao dentista, ela pode dizer: "Bem, olhe, agora você é o chefe de bombeiros, e como o chefe de bombeiros não chora, você não pode chorar quando o dente for arrancado!". Isso fortifica o ego do menino, de modo que ele tentará controlar suas lágrimas. Este é um método comumente usado para educar, e é um truque. Se um menino admira um amiguinho mais velho chamado Alberto, e comporta-se mal, a mãe dirá: "O Alberto não faria isso" e, então, o menino tentará se comportar melhor.
Esses são os processos psicológicos típicos que demonstram como, aos poucos, o complexo do ego — centro do campo consciente — é formado nas crianças. Se se observam mais atentamente esses processos, através dos sonhos ver-se-á que eles brotam do SELF e que é o SELF que constrói o ego. Uma representação gráfica mostraria a totalidade psíquica desconhecida de um ser humano como uma esfera e não um círculo — sendo a parte superior da esfera o campo da consciência; qualquer coisa neste campo é conhecida e o centro dele é o complexo do ego. Tudo o que não estiver ligado, por qualquer associação que seja, com o complexo do ego, é inconsciente. Antes desse campo da consciência existir, o centro regula­dor do SELF (o SELF é considerado como a totalidade e o centro regulador de toda personalidade, e parece estar presente desde o início da vida do indivíduo) constrói o complexo do ego através de certos processos emocionais ou outros. Estudando-se os simbolismos do complexo de ego e do SELF, observa-se que o ego tem as mesmas estruturas, e é, em grande parte, uma imagem espelhada do SELF. São bem conhecidas as representações do SELF nos mandalas, por exemplo, e o ego tem a mesma divisão quaternária que se vê no mandala. O centro do SELF vai progressivamente construindo o complexo do ego, que espelha este centro original e que, como todos sabem, frequentemente, sucumbe à ilusão de ser ele aquele centro. A maioria das pessoas que não são analisadas, naturalmente, acreditam (por suas convicções emocio­nais) em que Eu sou EU — que EU sou tudo. E até esta ilusão ocorre pelo fato de o ego ter sido formado a partir do centro da totalidade. Mas na infância há a tragédia da separação; por exemplo, o evento típico de ser expulso do Paraíso, o primeiro choque de se ver incompleto e de descobrir que alguma coisa perfeita foi para sempre perdida. Tais tragédias espelham o momento em que o ego começa a tornar-se uma entidade à parte do SELF e a estabelecer-se como um fator com existência pró­pria, perdendo-se parcialmente a conexão intuitiva com o centro.
Até onde se sabe, o ego funciona de maneira apro­priada somente quando ele consegue uma certa adapta­ção ao sistema psíquico. Isso significa que ele funciona melhor se uma certa plasticidade é conservada, ou seja, quando o ego não está petrificado ele pode, através dos sonhos, de humores etc., ser influenciado pelo SELF, adaptando-se, assim, a todo o sistema psíquico. É como se o ego significasse, pela própria natureza, ser, não um guia, mas um instrumento da totalidade do sistema psíquico, que funciona melhor quando responde às neces­sidades básicas instintivas dessa totalidade e, não, quan­do resiste a elas.
Imagine-se, por exemplo, diante de uma situação perigosa em que o instinto o manda fugir (não é preciso ter um ego muito consciente para isso). Se um touro corre atrás de você, você não necessita consultar o seu ego; é muito melhor você consultar suas pernas que sabem o que fazer. Mas, se o ego funciona com suas pernas, então, enquanto você está fugindo do touro, você também está procurando um bom lugar para se esconder, ou uma cerca para pular, então a situação é perfeita: seus instintos e seu ego funcionam de acordo um com o outro. Se, por outro lado, você for um filósofo cujas pernas querem correr, mas que pensa assim: "Pare, eu primeiro preciso pensar se é certo fugir do touro", então o ego bloqueia a necessidade instintiva, tornando-se autônomo, antinstintivo e destru­tivo, tal como se observa em todo indivíduo neurótico. A neurose pode ser mesmo definida com um ego cuja estrutura não é mais capaz de se harmonizar com toda a personalidade. Se, pelo contrário, o ego funciona de acordo com a totalidade da personalidade, essa o reforça deixando aparecer a sabedoria inata das estruturas instintivas básicas.
Por vezes, é necessário que o ego resista ao instinto. Imagine, por exemplo, os lemingues, espécie de rato do Ártico Norte que têm uma necessidade instintiva de migrar para uma outra região onde possam obter comida. Guiados por esse impulso instintivo, eles se reúnem e partem. Se, por azar, eles se defrontam com o mar ou com um rio, eles continuam sua marcha e morrem afogados aos milhares. Estou certa de que vocês conhecem essa história, que tem deixado perplexos os zoólogos, à medida em que demonstra a inadequação de alguns instintos naturais. Konrad Lorenz deu-nos, uma vez, uma confe­rência com muitos exemplos desse tipo; eu me lembro de um sobre um pássaro que, para agradar sua companheira na época da acasalamento, produz um enorme saco ver­melho no seu peito o qual lhe dá força para o canto de casamento. Este saco vermelho é tão pesado que ele não pode voar, então seus inimigos se juntam e atacam-no, trucidando-o. Como se vê, essa não é uma invenção muito boa! Um bonito rabo vermelho, ou um traseiro vermelho como o que tem o macaco babuíno seria bem melhor, pois o deixaria livre para voar se necessário. Pode-se observar, então, que os padrões instintivos nem sempre são positi­vos. Vamos imaginar que o lemingue pudesse se pergun­tar por que ele está agindo daquela maneira, pudesse refletir sobre a situação e perceber que ele não tem nenhuma vontade de se afogar e, ainda, que poderia voltar atrás; isso seria muito útil para ele. Essa talvez seja a razão do porquê da natureza inventar o ego como um novo instrumento para nós; nós somos um experi­mento novo na natureza, pois nós temos um instrumento adicional para regular os impulsos instintivos. Nós não vivemos apoiados somente sobre as estruturas de compor­tamento, mas dispomos de algo mais, de um estranho adi­tivo conhecido como ego. A situação ideal, tanto quanto possamos depreender, é quando o ego, com uma certa plasticidade, obedece à regulagem central da psique. Mas quando ele se endurece e torna-se autônomo, agindo de acordo com as próprias razões, geralmente aparece uma síndrome neurótica. Isto acontece não somente com o indivíduo em particular, mas também com a coletividade como um todo, razão pela qual fala-se em neuroses e psicoses coletivas. Grupos inteiros da espécie humana ao desviarem-se de seus padrões instintivos básicos podem cair nessa situação dicotômica e, então, o desastre está próximo. Essa é a razão por que, nas histórias de heróis, existe sempre um contexto situacional terrível; por exemplo, a terra está secando porque as rãs estão blo­queando a água da vida ou, ainda, algum inimigo sombrio chega do Norte, rouba todas as mulheres, deixando a região sem possibilidade de procriar. Seja quão terrível for a situação, o herói tem a tarefa de repará-la. O dragão pode ter exigido todas as jovens do rei para serem sacri­ficadas; todas as pessoas no reino já se vestem de preto e quando a última princesa vai ser doada ao dragão, então, sempre aparece o herói.
O herói é, consequentemente, o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então, que o herói é uma figura arquetípica que represen­ta um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF. Assim sendo, de certa forma, o herói parece ser o próprio SELF, pois ele serve de instrumento do SELF e realiza completamente tudo o que o SELF quer que aconteça. Dessa forma, ele é também o SELF, pois expressa ou encarna as tendências salvadoras que ele tem. Então, o herói tem esse estranho duplo caráter. Isso é captado de maneira mais simples e ingênua pelos sentimentos. Quando se ouve um mito heroico, pode haver identificação com o herói e ser-se contaminado pelo humor do herói. Digamos, por exemplo, que uma tribo esquimó está prestes a morrer de inanição: os resultados das caçadas têm sido ruins. Sabe-se que os primitivos muito facilmente desistem, abandonam a luta e morrem por falta de coragem, antes mesmo que isso seja física ou psicologicamente necessário. Então, surge um contador de histórias e conta que fulano teve contato com espíritos e que através disso salvou sua tribo da inanição etc. e tal. Isto pode colocá-los de pé, outra vez, simplesmente através do emocional. O ego adota uma atitude heroica, corajosa e cheia de esperanças, que salva a situação coletiva. Isto é a razão por que as histórias de heróis constituem uma necessidade vital em condições difíceis da vida. Se você retoma o seu mito-heroico, então você pode viver. Ele dá as razões de se viver e ao mesmo tempo restaura a coragem.
Quando se contam histórias de fada para as crianças, elas se identificam ingênua e imediatamente e captam toda a atmosfera e sentimento que a história contém. Se a história do pobre patinho é contada, todas as crianças que têm complexo de inferioridade esperam que no fim elas também se tornem princesas. Isso funciona exatamente como deveria ser; o conto oferece um modelo para a vida, um modelo vivificador e encorajador que permanece no inconsciente contendo todas as possibilida­des positivas da vida.
Há um costume muito bonito entre os aborígenes australianos: quando o arroz não está crescendo bem, as mulheres vão para os campos de arroz, ficam de cócoras e contam para o arrozal o mito da origem do arroz. Então, o arroz fica sabendo por que ele está lá e se põe a crescer. Isto é, provavelmente, uma projeção de nossa própria situação; conosco isto também é verdadeiro, pois se reto­mamos esses mitos, nós compreendemos as nossas razões de viver e isso muda toda a nossa disposição de vida, podendo muitas vezes mudar nossa própria condição psicológica.
Interpretando o herói dessa forma, então fica claro por que o Tolo é o herói. Sendo o rei o elemento dominante da atitude consciente coletiva que perdeu contato com o fluxo de vida, especialmente com o feminino (o princípio de Eros), o Tolo representa a nova atitude consciente, que é capaz de entrar em contato com o feminino, pois é ele que faz da rã uma princesa. De modo característico, é ele que é chamado de estúpido e que parece o mais azarado. Mas se se observar seu comportamento de perto, ver-se-á que ele é simplesmente espontâneo e natural; ele aceita as coisas como elas são. Por exemplo, os dois irmãos não são capazes de aceitar os fatos: cada vez que o Tolo vence, eles querem uma outra competição, dizendo que aquilo na está certo. Mas o mais novo simplesmente faz o que tem que ser feito, até mesmo quando tem que se casar com uma rã, o que não é lá muito agradável, mas é assim que as coisas são. Obviamente, essa é a qualidade enfatizada pela história.
Podem-se sempre considerar essas histórias como se consideram os sonhos das pessoas, perguntando-se qual situação consciente é compensada por tal mito. Então, claramente, vê-se que essa história compensa a atitude consciente de uma sociedade patriarcal, cujo esquema de deveres e obrigações predominam. Ela é regida por princípios rígidos, razão pela qual a adaptação espontânea e irracional aos eventos é perdida. Histórias como esta são, estatisticamente, mais encontradas nas sociedades do homem branco do que em outras e é óbvio por que isso acontece: nós somos povos que devido a um superdesenvolvimento da consciência perdemos a flexibilidade de aceitar a vida como ela é. Assim, as his­tórias de ingênuos ou de tolos são de especial valor para nós. Existe também um número muito grande de histórias em que o herói parece como um indivíduo completamente preguiçoso: ele contenta-se simplesmente em sentar-se perto de um fogo e ficar se coçando, e então, as coisas de que precisa caem no seu colo. Essas histórias são também compensatórias, no caso de uma atitude coletiva que enfatiza por demais a eficiência. Esses contos onde o herói é preguiçoso são, então, contados e recontados com um grande prazer — pois trazem em si uma mensagem be­néfica e de cura.
Retomando o conto, vemos que o rei não sabe a quem deixar seu reino. E nesse ponto ele se desvia do seu tipo provável de comportamento, pois ele deixa que o destino resolva quem deve herdar o reino. Essa não é uma maneira comum de agir; apesar de ser frequente no caso de rei velho, não é, porém, a única alternativa. Há outras histórias onde o velho rei fica sabendo, seja através de um sonho, seja de uma profecia, quem será o novo rei e, então, ele põe toda sua energia e paixão em prol da destruição do seu possível sucessor. Esse é um outro tipo de história e um exemplo pode ser encontrado em Grimm no conto O demônio e os três cabelos de ouro, mas desse tipo existem exemplos aos milhares. Algumas vezes ocorre no início da história que o rei dá uma chance aos seus possíveis suces­sores, mas se é eleito um sucessor que não está de acordo com seus planos, ele começa a opor resistência.
Há pessoas neuróticas cujas atitudes do ego diver­gem de sua natureza psicológica total, e que vêm para análise sem grande resistência, pois elas justamente querem saber o que vem depois e se seus sonhos produ­zem alguma vida nova, elas a aceitam e vão em frente, sem praticamente qualquer resistência. Com elas, a "sucessão do rei" — uma atitude do ego reposta por outra — é relativamente fácil. Mas existem outras que descre­vem seus sintomas e seus sonhos, mas se o analista sugere, ainda que timidamente, qual seria o problema, elas pulam na sua garganta e argumentam que pode ser tudo, mas que aquilo certamente não é. "Aquilo" elas sabem que está bem, e lutam contra qualquer argumen­tação em contrário. Esse é um exemplo típico de estrutura do ego endurecida a tal ponto que recusa qualquer possi­bilidade de renovação. Eu, frequentemente, digo a essas pessoas que elas têm a mesma atitude daquele indivíduo que vai ao médico e pede que esse o cure, mas que, por favor, não examine a urina porque é algo muito pessoal. Muitas pessoas fazem isso. Eles vão para a análise, mas guardam as informações principais no bolso do colete, pois "não é da conta de ninguém" o conhecimento daqueles aspectos. Em todas essas variações de comportamento você reconhece o velho rei — que num indivíduo significa o centro de sua consciência — resistindo à renovação.
Naturalmente, uma resistência desse tipo encon­tra-se, também, em situações coletivas. Uma sociedade inteira pode ser violentamente contrária a uma certa reforma religiosa e, depois, quase que instantaneamente passa a reconhecê-la. Só para mencionar um exemplo clássico, doze sentenças escritas por santo Tomás de Aquino, o grande pilar da Igreja católica, foram condenadas pelo Concilio de 1320. Então, pode-se observar que aquilo que posteriormente foi reconhecido como sendo nada hostil, a princípio sofreu resistência por causa do precon­ceito coletivo da época. Isso se estende às perseguições políticas ou religiosas, censuras nos jornais e persegui­ções nos negócios etc., — tudo isso que está ocorrendo agora, e que sempre ocorrerá em qualquer contexto social do mundo. Existe a fobia de que a coisa nova seja em si mesma terrível. Tudo isto é o comportamento caracterís­tico do velho rei. Essa atitude pode se radicalizar em desconfiança e conduzir a uma verdadeira tragédia, ou como acontece aqui, não se verificar nada disso. Nosso conto reflete a possibilidade de uma renovação ocorrer sem qualquer crise ou tragédia. E uma história mais moderada, sendo por isso não muito interessante, mas contém todas as facetas clássicas de que precisamos.
Vamos continuar, passando a seguir ao ritual das três penas. Este costume, comum na época, não difere muito daquele de jogar uma moeda para o alto. Quando a consciência não pode decidir racionalmente, recorre-se ao acaso e o que der é considerado como sendo a indicação. Que a moeda caia desse lado, ou que o vento sopre desse modo, é tão somente um aspecto que deve ser considerado como uma sugestão significativa. Isto é em si mesmo importante, pois é o primeiro movimento em termos de abandonar a determinação do ego, a racionalização cons­ciente do próprio indivíduo. Pode-se mesmo dizer que esse velho rei não é tão mau assim, pois embora saiba que morrerá em breve, e que deverá ter um sucessor, ele deixa para os deuses decidirem quem deverá suceder-lhe. Outra vez pode-se observar que isso também está de acordo com todo o contexto da história que não é dramática e não está formalizada sobre um conflito.
Continuando a ampliar o simbolismo, temos que na mitologia as penas representam algo muito semelhante àquilo que tem penas — o pássaro. De acordo com o princípio pars pro totto (a parte pelo todo), que é uma forma mágica de pensar, a pena significa pássaro e, pássaros, em geral, representam entidades psíquicas de caráter intuitivo e mental. Existem representações medievais, por exemplo, onde a alma deixa o corpo do morto em forma de um pássaro. Em certas vilas do Upper Wallis existe ainda hoje, no quarto dos pais, uma janeli­nha chamada a janela-da-alma — que é aberta somente quando alguém está morrendo, a fim de que sua alma possa sair. A ideia é que a alma, um ser volátil, sai como um pássaro que escapa de sua gaiola. Na Odisseia, Hermes reúne as almas dos inimigos de Ulisses e elas conversavam como pássaros (a palavra grega é Thrizein) e seguiam-lhe como o rumor de asas, como morcegos. Também no mundo subterrâneo, para onde vai Enkidu, o amigo de Gilgamesh, os mortos sentam-se em círculos e estão enfeitados com penas de pássaros. Então, pode-se dizer que os pássaros representam uma entidade sem corpo, habitantes do ar, do domínio do vento, associados sempre à respiração e, consequentemente, à psique humana. Essa é a razão por que é tão difundida a ideia (e em particular entre os índios americanos tanto do norte como do sul) de que colar penas em um objeto significa que ele é psicologicamente real. Existe mesmo uma tribo sul-americana que usa a palavra "pena" como sufixo para descrever tudo aquilo que existe só no plano psicológico, e não na realidade externa. Pode-se falar de uma "raposa-pena", um "arco-pena", ou uma "árvore-pena"; a palavra "pena" indica que a raposa, o arco e a árvore não estão contidos na realidade física, mas têm a ver com a realidade psíquica. Quando os índios norte-americanos e certas tribos de esquimós mandam mensagens convidando os outros para um festival religioso, os mensageiros carregam bastões com penas e estas conferem ao portador a qualidade de sacrossanto. Pelo fato de carregarem uma mensagem espiritual, tais mensageiros não podem ser mortos. Colocando penas no próprio corpo o primitivo marca a si mesmo como um ser psíquico e espiritual.
Por ser a pena muito leve, cada sopro do vento a carrega. Ela é aquilo que é muito sensível, podendo ser chamada de corrente espiritual, psíquica, imperceptível e invisível. O vento, na maioria dos contextos religiosos e mitológicos, representa o poder espiritual, de onde vem a palavra "inspiração". Assim, no Pentecostes, o Espírito Santo milagrosamente encheu toda a casa como um vento que soprava. Os espíritos provocam uma espécie de vento frio quando se manifestam e em geral a aparição de fan­tasmas se acompanha de sopros ou correntes de vento. A palavra spiritus tem a mesma raiz de spirare (respirar). No Gênesis, o Ruach Jahweh (o Espírito de Deus) pousa sobre as águas. Pode-se, então, concluir que um vento tão imperceptível, cuja direção descobre-se somente ao asso­prar uma pena, representaria uma tendência psíquica dirigida e uma finalidade, dificilmente detectável, e quase inconcebível, no fluxo da vida psíquica.
Isto é o que acontece quando alguém chega para a análise e conta todos os problemas e o analista diz: "Bem, eu não sou mais inteligente que você. Eu não vejo nada a partir disso, mas vejamos o que os sonhos dizem". E, então, os sonhos serão examinados sob o ângulo de sua finalidade e, aí, pode-se discernir para onde a corrente da vida se dirige nos sonhos. De acordo com Jung os sonhos não obedecem somente ao princípio da causalidade, mas apresentam também um aspecto de finalidade, através do qual observa-se para onde a libido tende a ir. Nós "assopramos uma pena no ar" e vemos que direção ela toma e, então, dizemos: "Vamos por esse caminho, pois há uma ligeira tendência nesta direção".
Isso é o que o rei faz: ele se coloca completamente flexível e consulta os poderes supranaturais. Uma pena vai para o leste, outra para o oeste e a pena do Tolo cai bem em frente, no chão. De acordo com algumas variações mais sutis, a pena cai em cima de uma pedra marrom bem a seus pés, e o Tolo diz: "Isso significa que eu não vou para nenhum lugar", e é assim que ele encontra o seu próprio caminho, aquele que está perfeitamente de acordo com o seu caráter. Muitas vezes procuramos por todos os cantos a solução de nossos problemas e não percebemos que ela está bem em frente do nosso nariz. Não somos humildes o suficiente para olhar para baixo, mas, ao contrário, mantemos o nariz bem levantado no ar. É por isso que Jung sempre gostava de contar a bela história do rabino que sempre que interrogado por seus alunos do porquê de no Antigo Testamento haver tantas aparições de Deus, enquanto que hoje em dia essas coisas não mais aconte­cem, dizia: "Porque hoje em dia ninguém é tão humilde para se curvar o suficiente". Mas o Tolo, por ser simples e sem sofisticação, tem uma atitude simples e sem pre­tensões diante da vida. Ele é naturalmente levado ao que está bem no chão e bem diante do seu nariz — e isso é tudo. Nós sabemos desde o início da história que o problema está na ausência do feminino e esse pode ser encontrado na terra e em nenhum outro lugar. Isto pertence à lógica interna da nossa história.













5
"As três penas"
(continuação)
Embora tenhamos ampliado o tema das três penas, não passamos ainda para o segundo passo que é o de expressar o sentido psicológico essencial de maneira concisa. Penas representam pensamentos ou fantasias, elas se colocam, pars pro totto, como pássaros, e o vento é um símbolo bem conhecido da inspiração espiritual do inconsciente. Então este tema significaria que alguém deixa a sua própria imaginação ou pensamentos vaga­rem, seguindo as inspirações que vêm do inconsciente. Precisa-se seguir esse ritual, se se está numa encruzi­lhada e não se sabe que direção tomar. Ao invés de decidir a partir de considerações do ego, espere-se por uma sugestão do inconsciente, deixando-o pronunciar-se acer­ca do problema. Pode-se compreender este aspecto do conto como uma compensação para a situação coletiva dominante, que parece ter perdido contato com o elemen­to irracional feminino; como consequência ocorre habi­tualmente uma atitude muito racional, muito ordenada e muito organizada. Junto com o feminino está o sentimen­to, o irracional e a fantasia e aqui, ao invés de dizer aos filhos onde ir, o velho rei tem um gesto que possibilita uma renovação, permitindo ao vento que decida. A pena do Tolo cai bem à sua frente, no chão, onde ele descobre um alçapão com degraus que o conduzem para as profundezas da Mãe Terra. No conto paralelo de Hesse, a princesa-rã diz-lhe que ele deveria "sich versenken"—ou seja, ir para as profundezas. O movimento de descida é sempre enfatizado.
Se há um alçapão com degraus conduzindo à terra, isso não é a mesma coisa que se houvesse uma cavidade natural. Aqui, os seres humanos deixaram suas marcas, talvez houvesse um prédio, ou ainda, um porão de um castelo, cuja parte superior tivesse desaparecido há muito tempo ou, mesmo, um esconderijo de uma civilização que não mais existe. Quando, em sonhos, as figuras descem para dentro da terra ou da água, habitualmente são interpretadas de maneira superficial, como um descensus ad inferos, como uma descida ao mundo subterrâneo, nas profundezas do inconsciente. Mas deve-se observar se é uma descida inconsciente de natureza virginal, ou se há traços de civilização. Esse último caso indicaria que houve elementos que foram uma vez conscientes, mas que mergulharam de volta ao inconsciente, como um castelo que pode cair em ruína e restar o porão, deixando marcas da forma de vida anterior.
Interpretando psicologicamente, isso significaria que o inconsciente não contém somente nossa natureza animal, instintiva, mas contém também as tradições do passado e é, parcialmente, formado por elas. É por isso que em análise os elementos das primeiras civilizações frequentemente reaparecem. Um judeu pode pouco se importar com o seu passado cultural, mas temas cabalísti­cos aparecem em seus sonhos. Uma vez, analisando os sonhos de um hindu que havia sido educado nos Estados Unidos e que conscientemente não tinha o menor interesse pelo seu passado cultural, notou-se que seus sonhos eram cheios de divindades hindus, bastante vivas no seu inconsciente. Há uma crença erroneamente difundida de que Jung tinha uma tendência de forçar as pessoas a uma volta ao seu passado cultural; por exem­plo, que ele insistia em que os judeus deveriam voltar aos seus simbolismos ortodoxos, ou que os hindus deveriam rezar a Shiva. De forma alguma é esse o caso. Não há absolutamente um "deveria", ou "precisaria"; é sim­plesmente uma questão de se querer reconhecer ou não tais elementos no inconsciente de uma pessoa, quando aparecem.
Como pode ter acontecido, em nossa história, que o elemento feminino tenha sido mais consciente numa determinada época e esteja agora submergido no incons­ciente? As religiões pagãs originárias dos germânicos e dos celtas tinham muitos cultos à Mãe Terra e a outras deusas da natureza, mas a superestrutura unilateral­mente patriarcal da civilização cristã aos poucos foi reprimindo esse elemento. Por consequência, se existe o problema de fazer ressurgir o elemento feminino e inte­grá-lo novamente, nós deveríamos (ao menos na Europa), encontrar traços de uma civilização passada na qual ele foi muito mais consciente. Na Idade Média, com o culto da Virgem Maria e com os trovadores, o reconhecimento da anima era muito mais vivo do que o foi no século XVI em diante, época essa que é caracterizada por um aumento de repressão do elemento feminino e da cultura do Eros, em nossa civilização. Nós não sabemos a data desse conto de fada, mas a situação da abertura mostra uma condição onde o elemento feminino não é reconhecido, embora, obviamente, ele o tenha sido numa época, o que vem facilitar o seu retorno. O Tolo desce na terra, passo a passo, e não cai de cabeça, nem mesmo se perde no escuro. No conto paralelo de Hesse, a escada está encoberta por uma tampa redonda com um anel sobre ela, como os anéis das tampas de bueiros das ruas. Há, aí, uma alusão não só ao símbolo da anima, mas também ao do SELF.
Quando o Tolo desce, encontra uma porta, bate e ouve um estranho versinho:
— Senhorita-rãzinha verde e pequenina encolha a perna encolha a perna do cachorrinho encolha para frente e para trás. Vá depressa ver quem está a bater.
Essa é uma espécie de rima infantil com uma combinação de palavras pouco compreensível, como um sonho.
Quando a porta abre, o Tolo vê uma enorme rã circundada de pequenas rãzinhas e quando ele diz que quer um lindo tapete, elas tiram-no de uma caixa.
Nós devemos primeiro ampliar o poema, e, princi­palmente, o símbolo da rã. Em muitas outras versões desse conto, ao invés de rã tem-se um sapo, então temos que entender o sapo também. Em geral, na mitologia, o sapo é tido como o elemento masculino, enquanto a rã é o feminino. Existe o príncipe-sapo nas histórias europeias, africanas e malaias, onde aparece como elemento masculino, enquanto praticamente em todas as civilizações a rã é feminina. Na China acredita-se que uma rã de três pernas vive na lua e, juntamente com uma lebre, produz o elixir da vida. De acordo com a tradição taoísta ela foi fisgada no "poço da verdade" e, como uma espécie de espírito protetor, trabalha com a lebre para produzir o elixir — que são pílulas que curam e prolongam a vida. Na nossa civilização, a rã foi sempre associada com a Mãe Terra, especialmente com sua função de auxiliar nos partos. Ela tem sido considerada como uma representação do útero. Nos países católicos, quando uma perna ou um braço ou qualquer outra parte do corpo é curada por um santo, uma imagem de cera representando aquela parte do corpo é feita e doada à igreja onde está o santo, como um ex voto — um sinal de que a graça foi alcançada. Mas se uma mulher tem uma doença do útero ou algum problema com o parto, ela não fará uma imagem de cera do útero; sua oferta ao santo será uma rã de cera, pois a rã representa o útero[3]. Em muitas igrejas e capelas da Bavária, a estátua da Virgem é circundada por rãs desse tipo. Aí a Virgem Maria tem a função da deusa grega, Artemis Eileithyia, a mãe positiva que ajuda a mulher na gravidez e na hora do parto, para que esse transcorra sem problemas. Esta analogia da rã e útero mostra como a rã, nesta conexão, realmente representa o útero materno — a mãe — exatamente o que está faltando na família real.
A senhora-rã sentada no centro pode ser vista como a mãe de todas as rãzinhas que a circundam. O Tolo se casa com a senhora-rã; ele escolhe uma do círculo, e ela se torna uma linda princesa, o que mostra mais claramente que a senhora-rã é a figura de mãe e, que de seu círculo o Tolo obtém a sua anima. Pois, como sabemos, a anima é uma derivação da imagem da mãe na psicologia mascu­lina. Aqui, a deusa Mãe Terra ocupa o centro.
A palavra encolher é bem mais difícil de compreen­der. Certamente na língua alemã, hutzel, a palavra origi­nal, está sempre associada à idade, velhice, antiguidade, alguma coisa que permanece por muito tempo. Pode-se imaginar o fato de que a deusa-mãe, tendo sido excluída do domínio da consciência e negligenciada, está agora encolhida no porão, como uma velha maçã.
Vejamos agora o significado para perna (Bein), que sou inclinada a interpretar mais como um osso do que uma perna, por causa do tão generalizado ritual dos amuletos de amor na Alemanha, na Suíça e na Áustria. De acordo com esse ritual, dever-se-á pegar um sapo ou uma rã e jogá-la viva num formigueiro. Em seguida, sair correndo para não ouvir os gritos que a rã ou o sapo podem dar, pois esses são gritos de maldição. As formigas vão comer o animal até sobrarem os ossos. Depois disso, dever-se-á apanhar um dos ossos da perna e guardá-lo e, quando roçar as costas de uma mulher com esse ossinho, sem ela perceber, ela se apaixonará perdidamente por você. Rãs e sapos são muito usados em bruxarias ou magia, como amuletos ou em poções afrodisíacas. No folclore, a natureza venenosa do sapo é também muito enfatizada. De fato, um sapo quando tocado solta um líquido que, embora não seja venenoso para o ser humano, pode causar um eczema ou uma leve inflamação na pele. Por outro lado, animais menores podem ser mortos por esse líquido. No folclore, esse fato é bastante exacerbado, o sapo é visto como um animal feiticeiro, e sua pele e pernas pulverizadas são usadas como um dos ingredientes básicos de praticamente todas as poções mágicas.
Resumindo, vemos que a rã (ou sapo) é uma deusa da terra, que tem poderes sobre a vida e sobre a morte; ela pode tanto envenenar como dar vida a alguém, e isso tem muito a ver com o princípio do amor. A rã (ou sapo) contém, pois, todos os elementos que estão omissos no contexto consciente de nossa história. Ela é verde, a cor da vegetação e da natureza. A terceira linha do verso fala de Hutzelbeins's Hündchen, ou seja, de um cachorrinho. A princípio parece estranha a associação com um cachorri­nho, o que fica mais claro se considerarmos a coleção de histórias paralelas de Bolte-Polivka. Aí encontrar-se-ão muitas outras versões, principalmente francesas, nas quais a princesa a ser redimida não é uma rã, mas um cachorrinho. Obviamente, há uma mudança ou um entre­laçamento de temas, pois muitas vezes ela é um cachor­rinho branco, ou ainda um gato, um rato ou um sapo. Se a princesa encantada ou não redimida fosse um cachor­rinho, ela estaria, obviamente, muito mais próxima da esfera humana do que se fosse um sapo. Ela teria sido negligenciada, porém, retornando ao inconsciente, num nível mais acima do que na condição de sapo ou rã, que é um nível mais baixo. Então, em algumas versões, o Tolo encontra o elemento feminino ausente em uma forma não-humana, como um animal de sangue frio e em outras versões, como um cachorro, ou seja, na forma de um animal de sangue quente.
A posição da senhora-rã circundada por rãzinhas mostra que não somente o símbolo do feminino, mas também o símbolo da totalidade estão constelados.
Agora, vejamos o simbolismo do tapete. Na civili­zação europeia, até seu contato com o Oriente, o tapete era desconhecido. As tribos nômades árabes, ainda hoje famosas pela confecção de tapetes, dizem que os tapetes que usam nas suas tendas representam a continuidade da terra, e que são necessários para manter o sentimento da continuidade do solo sob seus pés. Onde quer que se instalem, eles estendem um daqueles belos tapetes, usualmente com um padrão sagrado e, sobre esses, eles armam suas tendas. E a base sobre a qual eles ficam, como nós fazemos com a nossa terra. O tapete protege-os também das influências malignas do solo estranho.
Todos os animais de sangue quente e superiores na escala evolutiva, inclusive nós, têm uma forte ligação com seu próprio território. A maioria dos animais têm o instinto de posse e de defesa do seu território. Nós sabemos que os animais voltam para os seus próprios territórios. Foram feitos muitos esforços para exilar ratos a milhas de distância de suas casas, mas eles voltam, atravessando todas as dificuldades e perigos e só não o fazem quando a chance de sobrevivência é nula. Então, ele tenta ganhar um novo território, lutando e expulsan­do um outro rato do novo local. Em seu próprio território, o animal tem uma espécie de conhecimento íntimo e imediato de toda a situação, de tal forma que quando um inimigo aparece ele pode facilmente se esconder; por outro lado, em lugar estranho, se ele percebe a sombra de um falcão, ele tem que procurar um local para se esconder, e por questão de segundos, pode ser apanhado. Heinrich Hediger, professor de zoologia na Universidade de Zurique, aprofundou ainda mais essa questão e tentou estabelecer o fato de que o instinto de propriedade dos animais advém da ligação com a mãe. Ele afirma que o território original de cada animal é o corpo de sua mãe; o animal-filhote cresce e vive dentro do corpo da mãe, sendo o canguru o exemplo mais claro deste fato. Mais tarde esse instinto é transferido do corpo da mãe para o terri­tório. Nós sabemos que quando os animais são capturados e transportados, fazem um território-lar da jaula transportadora e se essa for destruída e eles forem colo­cados imediatamente numa nova casa, podem até mor­rer. A caixa ou a jaula que transporta o animal-filhote precisa ser sempre colocada no local que será seu novo lar, para que ele possa se aclimatar aos poucos e só então ela pode ser removida. Novamente é o útero materno, um habitat com uma qualidade maternal, o sentimento de que é vagarosamente transferido para um novo local.
Nós somos iguais. Se privarmos as pessoas idosas de suas raízes ou mudá-las de casa elas frequentemente morrem. Muitas pessoas permanecem ligadas ao seu território de uma maneira espantosa. Se se observa os próprios sonhos durante a época de mudança, pode-se perceber os problemas psicológicos que acontecem no seu próprio íntimo. A mulher, em especial, sofre de uma maneira tremenda quando perde seu próprio território. Essa é a razão por que Jung disse, certa vez, que tinha pena das mulheres americanas, que constantemente mudam-se de um lugar para outro. Os homens suportam isso muito melhor, pois eles têm uma tendência mais errante, mas para uma mulher isso é realmente difícil. Para nós também o território significa a mãe e, para algumas dessas tribos nômades norte-africanas, o tapete significa a mesma coisa, pois eles necessitam da continui­dade do solo maternal e não o tendo externamente, vivendo praticamente cada noite num lugar diferente, carregam o seu território simbólico com eles.
Os povos islâmicos, bem como os judeus, não fazem imagens do seu Deus, então os desenhos do tapete são, na sua maioria, abstratos, tendo um significado simbólico. A maioria são motivos geométricos, de gazela, de camelo, da árvore da vida, do paraíso, de uma lâmpada etc., que têm sido transformados em desenhos puramente geométricos. Especialistas em tapete são capazes de dizer se é uma gazela ou uma lâmpada que foi transformada num padrão esquematizado. A maioria dos elementos dos tapetes orientais refere-se a ideias religiosas: a lâmpada, por exemplo, significa a iluminação vinda da sabedoria de Alá e a gazela representa a alma humana à procura de Deus. Isso quer dizer que o tapete representa não só a Mãe Terra mas também a base interior da vida desses povos. E muito frequente aparecerem tapetes desta forma nos sonhos de pessoas de nossa época. Há também a frase de Fausto:
"So schaff ich am sausenden Webstuhl der Zeit Und wirke der Gottheit lebendiges kleid"[4]
(É o que o espírito fala quando visita Fausto, no início da I Parte). Eu acho que Goethe obteve esse tema do mito da criação de Pherekydes. Tal mito diz que a terra era uma espécie de linho enorme, com padrões tecidos e que foi espalhado num carvalho do mundo.
A partir dessas ampliações, pode-se notar que o linho ou tapete tecidos com desenhos são frequentemente usados para representar os modelos ("padrões") simbóli­cos da vida e os "desenhos" ou desígnios secretos do destino. O tapete figura, pois, como o esquema mais amplo da nossa vida, que nós ignoramos enquanto vivemos. Nós, constantemente, construímos nossa vida através de nossas decisões de ego e é somente na velhice, quando olhamos para trás, que compreendemos que tudo corres­pondia a uma espécie de plano. Algumas pessoas mais introspectivas percebem isso um pouco antes do fim de sua vida e intimamente estão convencidas de que as coisas têm um padrão, que elas são levadas, e que há uma espécie de desígnio secreto de cada ação e decisão efêmera do ser humano.
De fato, se nos voltamos para os sonhos e para o inconsciente é porque queremos saber mais e mais sobre nosso modelo ou padrão de vida, procurando errar menos, não cortando com nossas facas o nosso tapete interior, de maneira a completar o nosso destino ao invés de a ele resistir. Esta finalidade do modelo de vida que nos dá o sentimento do significado e do sentido é muitas vezes simbolizado no tapete. Geralmente os tapetes, especial­mente os orientais, têm padrões e arabescos complicados, tais como aqueles percebidos em estados oníricos, quando se sente que a vida está em altos e baixos e que há mudanças à volta. Somente olhando de longe, com uma certa distância objetiva, percebe-se que há um padrão de totalidade nisso tudo.
Consequentemente, não é fora de propósito que juntamente com os princípios femininos esquecidos, não haja na corte do rei bons tapetes e que, portanto, haja necessidade de um, pois eles precisam reencontrar o modelo da vida.
Desta forma, a história nos diz que a sutileza das invenções do inconsciente e os desenhos secretos tecidos no interior da vida humana são infinitamente mais inte­ligentes, mais sutis e superiores que aqueles que a cons­ciência humana possa inventar. Não se pode deixar de ficar maravilhado cada vez e sempre, diante da geniali­dade deste fato desconhecido e misterioso que é o inventor dos sonhos na nossa psique. Ele seleciona elementos das impressões diurnas, das leituras feitas no dia anterior, das lembranças da infância e faz uma espécie de agradável pot-pourri. E somente quando se vem a interpretar o sig­nificado do sonho que se pode perceber a sutileza e genia­lidade de cada composição onírica. Toda noite nós temos esse tapeceiro trabalhando dentro de nós, tecendo temas fantásticos, mas eles são tão sutis que, infelizmente para nós, muitas vezes, depois de uma hora tentando interpretá-los, desistimos por sermos incapazes de captar seu significado. Na verdade, nós somos muito inábeis e limitados para seguir o gênio desse espírito desconhecido do inconsciente que inventa os sonhos. Todavia, isso nos leva a compreender por que esse tapete é tecido com uma destreza superior a que o ser humano possa alcançar.
Naturalmente, este primeiro teste não foi aceito pelo rei nem pelos dois irmãos mais velhos e, então, um segundo teste é proposto e eles têm que encontrar o anel mais bonito. Segue-se novamente o ritual das penas, e os dois irmãos mais velhos trazem aros de carroça sem os pregos, bem ordinários, provando-se muito preguiçosos para buscarem algo melhor, enquanto o Tolo vai até a rã e obtém um lindo anel de ouro com brilhantes e pedras preciosas.
O anel, como um objeto circular, é um dos muitos símbolos do SELF. Mas nos contos de fada existem tantos símbolos dele que temos que encontrar qual é a função específica do SELF neste caso particular. Sabemos que o SELF, sendo o fator regulador central da psique inconsciente, tem um número enorme de aspectos funcionais diferentes. Ele preserva o equilíbrio ou, como vimos anteriormente com o símbolo de herói, ele constrói uma atitude de ego em equilíbrio correto com o SELF. O símbolo de uma bola representaria mais a sua capacidade de movimentar-se; para a mente primitiva a bola era obviamente aquele objeto com propriedade espantosa de se mover a partir da própria volição, de tal forma que os primitivos podiam suprir o pequeno fato de que um empurrão inicial é necessário, pois para eles a bola é considerada como tal quando se move por sua própria vontade, sem necessidade de um empurrão; por seu próprio impulso de vida ela se move e continua rolando através de todas as vicissitudes, obstáculos e dificuldades do mundo material. Como Jung constatou, ela representa aquela característica da psique inconsciente capaz de criar movimento por si mesma. Este fator psíquico não é um sistema que reage somente a partir de eventos externos, mas é capaz de agir por si mesmo, sem um impulso causai delineável, sendo capaz de produzir algo novo. É a capacidade para o movimento espontâneo, que em muitos sistemas filosóficos e religiosos é atribuído somente à Divindade — aquele que inicia o movimento.
A psique tem algo disso em si mesma; podemos, por exemplo, analisar alguém por um longo período de tempo e os sonhos parecem sempre mostrar algum aspecto óbvio dos problemas da vida e a pessoa sente-se muito bem assim, mas, de repente, ela tem um sonho completamente fora dos padrões, alguma coisa completamente nova. Uma ideia criativa, nova, que não se esperava, ou não se pode explicar, surge como se a psique tivesse decidido trazer algo novo. E esses são os grandes eventos psicoló­gicos, altamente significativos, que facilitam a cura. O símbolo da esfera ou da bola (lembre-se que as esferas ou bolas, ou ainda maçãs que rolam, frequentemente apare­cem no lugar das penas, nesse conto de fada) significam isso. Essa é a razão por que em contos de fada o herói segue uma maçã ou uma esfera que rola em direção a alguma meta misteriosa. Ele simplesmente segue a impulsão autônoma e espontânea da sua própria psique em direção a algum objetivo secreto. Eu ampliei o símbolo da bola para mostrar a sua diferença em relação ao anel e para mostrar que dizer que é "o símbolo do SELF" não especifica o suficiente, e que se precisa sempre adentrar a função particular de cada símbolo do SELF.
O anel tem, em geral, duas funções além da proprie­dade de ser redondo, que o faz uma imagem do SELF. Ele simboliza ou uma conexão ou um grilhão. O anel de casamento, por exemplo, pode significar uma aliança com o parceiro, mas também uma algema — é por isso que algumas pessoas tiram-no e o guardam no bolso quando viajam! Então, depende do seu sentimento em relação a ele para que seja ou um grilhão ou uma união signi­ficativa.
Se um homem dá um anel a uma mulher, ele expressa, saiba ou não, o desejo de se ligar a ela de uma maneira suprapessoal, de se ligar a ela não somente como um caso de amor efêmero. Ele quer dizer: "Isto é para sempre. É eterno". E significa uma conexão via SELF e não somente via caprichos do ego. No mundo católico, o casamento é um sacramento e a conexão não é somente aquela de dois egos decidindo ter o que Jung expressou como "uma pequena sociedade financeira para criar filhos". Se um casamento é mais do que isso, ele significa o reconhecimento de alguma coisa suprapessoal; ou, em linguagem religiosa, entre o aspecto divino que significa o "para sempre" num sentido muito mais profundo do que um estado apaixonado, ou algum cálculo que a princípio fez com que as pessoas ficassem juntas. O anel expressa uma ligação eterna através do SELF, e sempre que um analista lida com problemas de casamento ou acompanha um ser humano nos seus últimos passos em direção à guilhotina que é o dia do casamento, ele pode observar que sonhos muito interessantes aparecem indicando que o casamento deve ser realizado para salvar a individua­lização. Isso permite ter uma atitude básica profunda­mente diferente em relação aos problemas cotidianos que possam surgir. Sabe-se que, bem ou mal, esse é o destino através do qual deve-se trabalhar para uma conscien­tização mais elevada, e que não se pode simplesmente jogar fora o casamento diante dos primeiros problemas surgidos. Isso é expresso secretamente pelo anel de casamento que simboliza uma conexão através do SELF.
Em geral, o anel significa qualquer espécie de cone­xão e, consequentemente, ele representa aspectos dife­rentes em diferentes ocasiões. Para muitos rituais religio­sos as pessoas têm que tirar os seus anéis antes de iniciá-los. Não era permitido a nenhum sacerdote romano ou grego que realizasse qualquer cerimônia sacramentai com seus anéis. E isso significava que ele iria ligar-se a Deus e, para isso, precisava deixar de lado todas as outras conexões; ele precisava despojar-se de todas as outras obrigações para poder se abrir somente à influência divina. Nesse sentido, a imagem do anel significa (e no mais das vezes, de forma negativa, na mitologia) — estar ligado a alguma coisa que não deveria estar, estar escravizado por algum fator negativo tal como, por exemplo, o demônio. Em linguagem psicológica isso simbolizaria um estado de fascinação e de escravidão diante de algum complexo emocional inconsciente.
Ao ampliarmos o simbolismo do anel, podem-se levantar outras imagens que não significam somente o anel de colocar no dedo. Por exemplo, o círculo da bruxa, ou marchar em círculo ou carregar um aro. Em geral, o anel nesse sentido mais amplo, tem um significado do que Jung descreve como um temenos, o espaço sagrado prote­gido e delimitado, seja pela circum-ambulação, seja pelo traçado de um círculo. Na Grécia, um temenos era sim­plesmente um pequeno local sagrado num bosque, ou numa montanha no qual a pessoa não pode entrar sem que tome certas precauções, um local onde as pessoas não podem ser mortas. Se alguém que está sendo perseguido refugia-se num temenos, ela não pode ser nem capturada, nem morta, enquanto estiver lá. Um temenos é um asilo, e dentro dele a pessoa é um asulos (inviolável). Como um lugar do culto divino, ele significa o território que pertence a Deus. Os círculos das bruxas têm um significado semelhante; existe um pedaço de terra delimitado, um local redondo reservado para um propósito arquetípico e numinoso. Tal local tem uma função dupla: de proteção e de concentração para o que está dentro e exclusão do que está fora. Este é o significado geral que é encontrado sob diversas formas. A palavra temenos vem de temno — cortar. Indica cortar o aspecto sem significado e profano da vida—uma parte cortada fora, isolada para propósitos especiais. Mas eu não creio que isso seja particularmente relevante para nossa história, na qual nós temos um anel para o dedo.
O anel de nossa história é de ouro. O ouro, como um metal dos mais preciosos, tem sido associado em nosso sistema planetário com o sol e está geralmente relaciona­do à incorruptibilidade e imortalidade. Ele é o mais duradouro dos metais e, nos tempos primitivos, era o único metal conhecido que não se decompunha, nem ficava preto, nem verde e que resistia a todos os elementos corrosivos. Os tesouros de ouro podiam ser enterrados e desenterrados após muitos anos, que eles permane­ciam os mesmos, o que não acontece com o cobre, a pra­ta ou o ferro. Então, ele é considerado um elemento imortal e transcendental que supera a existência efê­mera — ele é eterno, divino e o mais precioso, e qualquer coisa que tenha sido feita de ouro é vista como tendo uma qualidade eterna. É por isso que o anel de casamento é feito de ouro, pois significa sua duração para sempre, e que não deve ser corrompido por quaisquer influências negativas terrenas; as pedras preciosas enfatizam ainda mais isso. As pedras preciosas significam, em geral, os valores psicológicos.
O velho rei e os dois irmãos mais velhos na corte do rei não aceitaram o fato de que o irmão mais novo tivesse ganho novamente o teste. Então uma terceira prova é proposta. Agora o reino será daquele que trouxer a mais bela esposa. O Tolo desce até a rã e desta vez ela não o atende tão prontamente. Ela diz: "Bem, bem, a mais bela esposa! Isso não é algo que está tão à mão, mas ainda assim você a terá!" Parece, então, haver um pouco mais de dificuldade desta vez, e ela lhe dá uma cenoura amarela com forma de uma carruagem puxada por seis ratinhos. Ele toma uma das rãzinhas, coloca-a sentada na carrua­gem, e tão logo ela se senta e eles começam a se mover, ela se torna uma linda princesa. Então, para que ele obtivesse a mais linda mulher, ele não poderia simplesmente tomá-la como ele fez com o tapete e com o anel, mas um veículo especial foi necessário. A rãzinha se transforma enquanto se senta na carruagem de cenoura e essa começa a se locomover, carregando-a para o palácio do rei, onde somente então ela se transforma totalmente.
Em outras versões aparece uma linda moça desde o início. Se você se lembra, na versão de Hesse, o Tolo encontra uma linda moça fiando sob a terra e é somente quando sai do mundo subterrâneo e chega à superfície, que ela se torna uma rã. Isso é muito estranho, pois algumas vezes ela é uma rã, algumas vezes um sapo que assim se transforma quando sobe em direção ao mundo humano, enquanto que em nossa história ela se torna um ser humano quando já está em cima da terra. Naquela versão ocorre que embaixo da terra ela é uma pessoa muito bonita e em cima, no mundo comum, ela é um sapo. E ela só se transforma em ser humano quando o Tolo pula com ela numa lagoa. Esta é uma variação relativamente frequente: sob a terra ela já é um ser humano, mas na esfera superior aparece como um sapo, uma rã ou um cachorro. Consequentemente, nós temos que adentrar neste simbolismo ainda um pouco mais. Nós já havíamos concluído, a partir das marcas e da construção produzidas pelo homem, na terra, que o culto da mãe, ou a relação com o princípio maternal, em outros tempos, deve ter sido integrado no domínio da consciência humana e mais tarde regressado à terra. Nossa história refere-se ao surgimento de algo que já fora uma vez percebido no domínio humano. As diversas variações onde uma bela moça está sentada sob a terra, esperando por sua reden­ção, confirmam essa hipótese.
A anima — que significa para um homem o domínio da fantasia e o modo como ele se relaciona com o incons­ciente — foi, uma vez integrada no campo da consciência, tendo chegado a um nível humano, mas agora, sob cir­cunstâncias culturais desfavoráveis, foi abolida ou repri­mida no inconsciente. Isso explica por que esta linda princesa está no porão esperando que alguém apareça e a retire de lá. E explica, também, por que ela é vista, ou aparece como uma rã. Sobre a terra, na corte do rei, uma atitude consciente faz com que a anima seja vista somente como uma rã. Isso significa que no domínio do incons­ciente prevalece uma atitude de desconsideração e "de senões" quanto ao fenômeno de Eros; e, nestas circuns­tâncias, a anima aparece aos olhos destes homens da corte do rei como uma rã. Nós temos um exemplo moderno disto na teoria freudiana na qual o fenômeno de Eros está reduzido tão-somente as funções biológicas do sexo: tudo o que surge, ou vem à tona, é explicado com os "senões" da teoria racional. Freud, reconhecendo muito pouco o ele­mento feminino, explica-o sempre como sexo. Do ponto de vista freudiano, uma catedral gótica não poderia ser considerada senão como uma compensação mórbida da sexualidade não vivida, e isso é provocado pela forma fálica das torres! Sob tal perspectiva, a esfera da anima não pode existir. Entretanto, não somente a atitude freudiana que faz isso com a anima, pois um preconceito ou uma repressão do princípio moral contra Eros, ou ainda, uma repressão do princípio de Eros por razões políticas ou outras, são exemplos de atitudes que também levam à desconsideração da anima. Todas essas atitudes, enfim, reduzem a anima a um sapo ou um piolho, ou qualquer outra forma, conforme o nível em que foi repri­mida, e então, a anima do homem se torna tão subdesen­volvida quanto a função de Eros de uma rã.
Uma rã, entretanto, de algum modo é contatável. É possível domesticar rãs e pode-se mesmo treiná-las para comer em nossa mão; elas têm uma certa capacida­de de se relacionar. Homens com uma anima de "rã" po­dem comportar-se da mesma maneira. E por isso que na versão de Hesse é necessária uma operação suplementar para restaurar a natureza humana da anima. Em nossa história isso acontece de outra maneira. A anima aparece debaixo da terra como uma rã, necessitando de uma cenoura como veículo para trazê-la à tona, e assim tornar-se ser humano.
Na versão russa, a "princesa-rã" tem que ser apre­sentada pelo Tolo, como a sua noiva na corte do Czar. Ele imagina que não será muito agradável aparecer com essa moça que pode sair pulando em forma de rã. Ela, então, pede ao Tolo que confie nela dizendo que quando ele ouvir um trovão, ele saberá que ela está colocando o seu vestido de noiva, e quando ele enxergar raios, saberá que ela terminou de se vestir. Tremendo de horror, ele espera pela tempestade para sua noiva-rã aparecer. Enfim, ela chega, e é uma linda moça numa carruagem puxada por seis cavalos pretos. Ela se transformara durante a tempes­tade.
Nessa versão russa, o Tolo tem somente que confiar na "princesa-rã" e estar pronto para recebê-la, mesmo se ela aparecer numa forma não-humana e ridícula. Em outras versões, aparecem contaminações com o tema do "príncipe-sapo", ou seja, como o famoso príncipe-sapo, ela pede para ser aceita, comer no mesmo prato, ser levada para a cama, enfim, ser plenamente aceita na vida pri­vada como se fosse um ser humano. Embora colocando o herói em situações bastante bizarras, ela faz todas as exigências e, só então, se transforma num ser humano.
Pode-se, portanto, concluir que ela é redimida pela con­fiança, aceitação e amor incondicionais. Porém, na nossa história, a sua aceitação não se dá dessa maneira, ou seja, a confiança não é pedida, e ela é carregada por um veículo-cenoura. Nós temos que entender o simbolismo da cenou­ra. No Handwõrterbuch des Deutschen Aberglaubens você encontrará a cenoura como um símbolo fálico. Em Baden, conta-se que quando se semeiam cenouras, diz-se: "Eu semeio cenouras, meninos e meninas, mas se alguém roubar algumas delas, que Deus permita que tenhamos tantas que nem mesmo possamos notar". Fica bastante claro que semear sementes de cenoura é como semear meninos e meninas. Em alguns países, diz-se: "Agora eu semeio cenouras para os meninos e meninas..." e continua da mesma forma. Existe uma série de alusões interessan­tes, referentes ao fato de se semear cenouras, sendo que em todas aparecem as cenouras como sendo alimento para pessoas muito pobres. Portanto, quando se semeia cenoura deve-se sempre ser generoso e dizer: "Eu semeio estas cenouras, não somente para mim, mas também para todos os meus vizinhos", e então, a colheita será farta. Uma vez, entretanto, um homem muito avarento disse: "Eu semeio cenouras para mim e para minha esposa", e quando ele foi colher havia somente duas cenouras! As cenouras contêm muita água, provavelmente essa é a razão de serem chamadas em dialeto de "pissenlit" (xixi na cama).
Por tudo isso, pode-se perceber que a cenoura, como a maioria dos vegetais, tem um significado erótico e especificamente sexual. Pode-se dizer que o veículo que traz a anima é o sexo e a fantasia sexual, que é no homem o modo frequente do mundo de Eros se revelar na sua consciência. Primeiramente o mundo de Eros é trazido, como o foi, pelas fantasias sexuais.
Os camundongos têm de alguma forma um signifi­cado similar. Na Grécia, juntamente com o rato, eles pertencem ao Deus-Sol, Apoio, na sua fase boreal ou invernal e simbolizam, então, o aspecto sombrio do prin­cípio solar. Em nosso país[5], os ratos pertencem ao diabo, que é o chefe tanto dos camundongos como dos ratos. Em Fausto, Goethe assim o expressa: "Der Herr der Ratten und der Mãuse". No Handwõrterbuch des Deutschen Aberglaubens, pode-se ver que os ratos são considerados como os "animais-espíritos". Na nossa linguagem eles, em geral, representam a parte inconsciente do ser humano. Por exemplo, como eu mencionei acima, um pássaro deixando um corpo significa a alma deixando o corpo. Pode acontecer também que a alma deixe o corpo na forma de um camundongo. Em certos poemas ou ritos diz-se que não se deve ferir ou insultar camundongos porque pobres almas podem estar habitando neles. Na literatura chinesa existe um poema de um dos mais famosos poetas chineses, que, para mim, descreve de uma forma muito bonita o que um rato significa (camundongos têm signifi­cado análogos):
Rato no meu cérebro
Eu não posso dormir; dia e noite
Tu me corroes e removes de mim a vida.
Eu estou me apagando, lentamente,
Oh! rato no meu cérebro,
Oh! minha consciência má,
Tu não me darás a paz, novamente?
Apesar de o rato e o camundongo não significarem, necessariamente, a consciência má, o poeta parece querer falar sobre um pensamento qualquer, inquietante, que continuamente rói e corrói de maneira autônoma, minan­do a atitude de uma pessoa. Provavelmente você já passou por isso; são noites sem sono quando se está preocupado com algo e, então, cada coisinha que surge no pensamento torna-se uma montanha de dificuldades — não se consegue dormir e as coisas giram na cabeça como um moinho. Isso é análogo ao fato de ser perturbado por ratos. Essas criaturas danadas roem e mascam durante toda a noite: você bate na parede e, por um tempo, parece haver paz, mas, aí, elas começam outra vez. Se, alguma vez, já lhe aconteceu isso, você pode facilmente reconhecer a analogia do camundongo com os pensamentos obsessivos — um complexo que não lhe dá paz. O camundongo representa, então, estes pensamentos noturnos ou uma fantasia que lhe mordem quando você quer dormir. No mais das vezes, o camundongo também tem uma qualidade erótica — é o que se pode observar nos desenhos em quadrinhos em que a mulher está em cima de uma mesa com a saia levantada, e em baixo um ratinho correndo. Os freudianos, geralmente, interpretam os camundongos como fantasias sexuais. Isso é verdadeiro quando o pensamento que corrói é uma fantasia sexual, mas, na realidade, isso pode significar qualquer espécie de obsessão que constantemente perturba a consciência de um indivíduo. A cenoura, significando sexo, e os ratinhos, significando as preocupações noturnas e as fantasias autônomas, trazem a anima para a luz; eles parecem ser a subestrutura da anima.
Quando o Tolo traz a rãzinha juntamente com o veículo, ela se torna uma linda jovem. Isso significaria, praticamente, que se um homem tivesse a paciência e a coragem de aceitar trazer à tona, à luz, suas fantasias sexuais noturnas, para ver o que elas carregam, deixan­do-as prosseguir, desenvolvendo-as e, posteriormente, escrevendo-as, possibilitando, assim, uma ampliação maior, então, toda sua anima viria à tona. Se, quando estiver rabiscando um desenho, disser: "O que estou fazendo aqui?" e desenvolver, então, a fantasia sexual que expressou em seu desenho, toda a problemática da anima emerge, e muito provavelmente, a anima será mais humana e menos semelhante a um animal de sangue frio. O mundo feminino reprimido emerge com ela, mas o primeiro fator desencadeante é, frequentemente, uma fantasia sexual, ou uma obsessão como olhar as curvas das mulheres quando se está num ônibus, assistir a strip­teases etc. Se o homem deixar tais pensamentos aparecerem com todo os conteúdos paralelos, ele poderá descobrir sua anima ou redescobri-la, se por um tempo ele a reprimiu. Mas, se o homem negligenciar essa relação, ela submergirá de vez e, a anima descendo para o inconsciente, de pronto torna-se obsessiva, uma fantasia importuna, ela se transforma, por assim dizer, num camundongo.
Também o terceiro teste não convenceu nem o rei nem os dois irmãos mais velhos — e aqui tem-se um tema clássico — ou seja, os contos de fada apresentam sempre três etapas e mais um final. Pode-se observar que o número três tem um papel importante nos contos de fada, mas quando eu conto normalmente dá quatro. Aqui, por exemplo, existem três testes, é verdade: o tapete, o anel e a dama. Mas existe o teste final que é pular através do anel. Se se observa mais apuradamente, então, pode-se ver que esse é o ritmo característico dos contos de fada. Existem três ritmos semelhantes e, então, uma ação final: por exemplo, uma moça perde seu amado e tem que encontrá-lo nos confins do mundo. Ela vai primeiro ao sol, que lhe mostra o caminho da lua, que lhe mostra o caminho dos ventos da noite e, então, ela encontra, como quarto estágio, o seu amor. Em outros casos, o herói encontra três eremitas, ou três gigantes, ou tem que vencer três obstáculos. São sempre três unidades claras — 1,2,3 — com uma certa repetição semelhante, porque a quarta unidade, sendo distinta, é ignorada. A quarta unidade não é um outro número adicional, não é uma outra coisa da mesma espécie das três primeiras, mas algo completamente diferente. É a mesma coisa que se contar 1, 2, 3 — já! O um, o dois e o três levam ao verdadeiro desfecho que é representado pelo quatro. O quarto é, em geral, um estado estático; não há mais o movimento dinâmico dos três elementos anteriores, mas alguma coisa se estabiliza.
No simbolismo numérico, o número três é conside­rado masculino (todos os números ímpares o são). Na realidade ele é o primeiro número masculino, pois o número um não é considerado como número, pois o um é a coisa única e consequentemente, não é uma unidade contável. Logo, o três é o primeiro número ímpar — masculino — e representa o dinamismo do número um. Jung trata do simbolismo dos números no seu artigo: "A Psychological Approach to the Dogma of the Trinity" (Psychology and Religion West and East — C. W. 11[6].) Sintetizando sua proposta, podemos dizer que o três, em geral, relaciona-se com o curso do movimento, e, portanto, com o tempo, pois não há tempo sem movimento. Há, por exemplo, as três parcas que representam o passado, o presente e o futuro. Os demônios do tempo são, na maioria, formados em tríades. O três têm sempre o simbolismo do movimento, porque para o movimento necessita-se de dois pólos entre os quais circula a energia, como a corrente elétrica que passa pelos pólos positivo e negativo tendendo a equalizar a tensão.
Frequentemente, encontra-se na mitologia uma figura que é acompanhada por dois acólitos ou dois acompanhantes: Mitras e dadophores (portadores de tochas); Cristo entre os dois ladrões etc. Tais formações mitológicas de tríades significavam a unidade e suas polaridades, o centro unificador entre os dois pólos opos­tos. Uma certa diferença tem de ser feita entre três elementos da mesma espécie, e um grupo de três onde existe um elemento central e dois opostos. Neste último caso, os dois opostos aparecem como ilustração do que está contido na totalidade, ou seja, há um dualismo que um terceiro elemento unifica. Basicamente, não nos afasta­mos nunca da linha central, se mantivermos em mente que o terceiro elemento relaciona-se com movimento e tempo, e em particular, com o movimento inexorável e irreversível da vida. Essa é a razão por que nos contos de fada, a história — toda a peripécia — aparece quase sempre dividida em três fases para depois aparecer a quarta como uma solução feliz ou catastrófica. A quarta fase conduz a uma nova dimensão, que não é comparável com as três etapas anteriores.

























6
"As três penas"
(conclusão)
O Tolo traz para casa sua noiva que ao sentar-se na carruagem-de-cenoura tornou-se uma linda princesa. Mas, novamente, quando chega à corte do rei os dois irmãos não aceitam a solução e pedem que haja uma quarta e última prova. Um aro é suspenso no teto, no centro de uma sala e as três noivas devem pular através dele. As mulheres camponesas que os dois irmãos trouxeram pularam, mas caíram quebrando braços e pernas. Mas a noiva do mais jovem (provavelmente por conta de sua vida anterior, como rã ou sapo), saltou através do aro com grande elegância. Então não pode haver mais protestos e o filho mais jovem ganhou a coroa e com sabedoria reinou por longo tempo.
Nós encontramos no decorrer de nossa história o anel como símbolo de união. Em seu aspecto positivo, ele significa uma obrigação escolhida conscientemente atra­vés de algum poder divino, isto é, através do SELF; em seu aspecto negativo, ele significa sentir-se aprisionado ou estar fascinado; aqui, tem uma conotação negativa — por exemplo, sentir-se aprisionado pelas próprias emoções ou complexos, sentir-se preso num "círculo vicioso".
Tem-se, então, um outro tema — saltar através do aro. Isso exige uma dupla ação, a saber, pular alto e ao mesmo tempo ser capaz de atingir o centro do aro e passar por ele. No folclore menciona-se que, nos antigos festivais da primavera dos países germânicos, um jovem montado num cavalo tinha que atingir o centro de um aro com uma lança. Era o ritual de fertilidade da primavera e ao mes­mo tempo uma prova acrobática para os jovens cavaleiros. Novamente, aparece o tema de atingir o centro de um aro numa competição. Isso nos leva ao significado de atingir ou atravessar o centro de um aro. Ainda que pareça bastante remota, pode-se fazer uma vinculação com a arte de atirar com arco e flecha do zen-budismo, onde a ideia é atingir o centro, não da forma exteriorizada como os ocidentais fazem, por habilidade física e concentração mental, mas através de uma profunda meditação, atra­vés da qual o arqueiro se coloca no seu próprio centro (o que poderíamos chamar de SELF) e, consequentemente, podendo atingir o alvo externo. Então, nas execuções mais difíceis, mais elevadas, os arqueiros zen-budistas podem acertar o alvo sem grande esforço, estando com seus olhos tapados. Toda a prática envolve uma ajuda técnica para encontrar o próprio caminho do centro inte­rior sem ser dispersado por pensamentos, ambições < impulsos do ego.
Por sua vez, pular através de um arco incandescente não é uma arte comumente praticada — tanto quanto eu saiba — a não ser nos circos, onde esse é um dos números mais populares. Tigres ou outros animais selvagens são treinados para pularem através de círculos de fogo. Quanto mais feroz for o animal, mais interessante e excitante é vê-lo pular através do aro, tema esse que retomarei mais tarde.
Atravessar o centro do aro com precisão não é um símbolo tão difícil de interpretar. Poderíamos dizer que, embora exteriorizado por uma ação simbólica, esse é o segredo de se encontrar o centro interior da personalida­de e é análogo à arte de arco-e-flecha zen-budista. Mas existe uma segunda dificuldade: a pessoa que salta tem que deixar a terra — a realidade — e atingir o centro num movimento, atravessando o arco. Então a anima na figura de princesa, quando atravessa o centro do anel fica suspensa no ar e é enfatizado que ela consegue fazer isso de maneira boa e correta. As camponesas, entretanto, eram tão pesadas e tão desajeitadas que não podiam fazer isso sem cair e quebrar as pernas, visto que a força da gravidade da terra era muito forte para elas.
Isso revela um ponto muito sutil no que se refere à realização da anima. As pessoas que não sabem nada sobre psicologia tendem simplesmente a projetar a anima sobre uma mulher real e experienciam-na exteriormente. Mas através da introspecção psicológica, podem perceber que a atração exercida sobre elas, pela anima, não é somente um fator externo, mas é alguma coisa que carregam dentro de si mesmas, uma imagem interior de um ser feminino verdadeiro ideal e guia da alma. Em seguida, então, o ego levanta um novo problema, ou seja, o pseudoconflito entre o domínio interior e o exterior. A pessoa diz: "Eu não sei se esta é a minha anima interior, ou se é uma mulher real exterior. Eu deverei seguir a fascinação da anima procurando-a no mundo externo, ou deverei introjetá-la e entendê-la puramente como simbó­lica?" Quando alguém-diz isso, existe subjacente uma atitude cética do tipo: "Isso não é nada mais que uma coisa puramente simbólica." Com essa forte descrença na rea­lidade da psique as pessoas ainda acrescentam: "Eu devo percebê-la somente como uma realidade interior? Ou devo procurá-la na realidade externa também?" Então, pode-se ver que a consciência, com seus extravios e vieses, entra num conflito falso entre a realização "exterior-concreta" e a "interior-simbólica", dividindo, artificialmente, o fenômeno da anima em dois.
Isso ocorre somente quando um homem não conse­gue "levantar sua anima da terra", ou seja, se ela não for capaz de pular como a princesa-rã, manifestando-se como uma camponesa idiota. Entrar nesse conflito indica falta de realização afetiva; este é um conflito típico, que emerge não pela função do sentimento, mas pela função do pensa­mento, que cria uma contradição artificial entre interior e exterior e entre o sujeito e o objeto. Na realidade, a res­posta a esse dilema é que a anima não está nem dentro, nem fora, pois ela está relacionada à realidade da psique em si mesma e esta não é nem interior nem exterior: ela está em ambos e não está em nenhuma. A anima precisa ser percebida como uma realidade em si mesma. Se ela, a anima, gosta de vir do exterior, deve ser aceita aí. Se ela gosta de vir de dentro, é aí que deve ser aceita. O erro está em fazer qualquer diferença artificial e desajeitada entre esses dois domínios: a anima é um fenômeno único, o fenô­meno da vida. Ela representa o fluxo da vida na psique masculina e ele deve seguir os seus caminhos tortuosos que se movem, de maneira bem específica, entre as duas margens, a do "interior" e a do "exterior".
Um outro aspecto desse pseudoconflito pode ser observado quando a pessoa pergunta: "Eu preciso pensar na minha anima como uma devoção espiritual? Por exem­plo, rezar à Virgem Maria ao invés de olhar para as pernas de uma mulher bonita desejando-a sexualmente?" Não existe tal diferença! Tanto o mais alto como o mais baixo são uma e única coisa e, como todos os conteúdos do inconsciente, abarcam todo um repertório do que podemos chamar de manifestações instintivas e espirituais. Basicamente, na forma arquetípica, esses dois fatores formam uma unidade e é a consciência que os separa em duas partes. Se um homem, de fato, aprendeu a estar em contato com sua anima, então, todos esses problemas caem por terra, pois a anima se manifestará imediata­mente, e ele estará sempre concentrado na realidade que ela propõe, afastando tais pseudos conflitos que emergem em torno dela. Colocando isso de maneira simples e com um vocabulário claro, ele tentará constantemente seguir seus sentimentos, o seu aspecto do Eros, sem considerar quaisquer outros elementos e, desta forma, caminhar através de mundos aparentemente incompatíveis como sobre um fio de navalha. Saber se manter dentro do que o Dr. Jung chamava de realidade da psique é comparável a uma prova acrobática, pois nossa consciência tem a ten­dência natural de se deixar levar por interpretações unilaterais, formulando sempre um programa ou uma receita ao invés de, simplesmente, manter-se entre os opostos com o fluxo da vida. Existe, em tudo isso, somente uma lealdade ou constância: a lealdade à realidade interior da anima. Isso é expresso belamente no salto através do aro: a anima suspensa no ar, nem muito alta nem muito baixa, atravessa o obstáculo, passando exatamente no centro.
Um outro conflito típico da anima suscitado pelo in­consciente para forçar o homem a diferenciar o seu Eros, é a situação triangular no casamento. Quando ele entra nesse conflito, ele se coloca, muito provavelmente, diante da seguinte questão: "Se eu terminar com a outra mulher, eu estarei traindo meus próprios sentimentos, simples­mente pela pressão social convencional. Se eu fugir da minha mulher e dos meus filhos para ficar com outra mu­lher onde está a projeção da minha anima, então eu esta­rei me comportando de maneira irresponsável e seguindo uma paixão que entrará em colapso muito em breve, como todo mundo sabe. Eu não posso fazer ambas as coisas e também não posso prolongar para sempre essa situação impossível". Se a anima quer se impor à consciência de um homem, ela frequentemente faz aparecer tal conflito. O animus de sua esposa dirá: "Você precisa tomar uma decisão"! E o animus da outra mulher dirá: "Eu não posso ficar pendente desse jeito". As duas, os acontecimentos e tudo o mais empurram-no para decisões erradas.
Aqui, novamente, a lealdade à realidade da psique é o único caminho que levará a uma possível solução e, geralmente, a anima tende a manobrar o homem colocando-o numa situação que parece ser sem saída. Jung disse que estar numa situação que não tem saída, ou estar num conflito onde não há solução é o começo clássico do processo de individuação. A situação parece ser sem solução: o inconsciente quer um conflito sem esperanças a fim de colocar a consciência do ego contra a parede, de tal forma que o indivíduo perceba que tudo o que ele fizer estará errado, e qualquer caminho que tomar será falso. Isso significa quebrar a superioridade do ego, que sempre age com a ilusão de que tem a responsabilidade da decisão. Evidentemente, se um homem disser: "Está bem, então eu vou deixar tudo, andar sozinho e não tomar nenhuma decisão, mas simplesmente me deixar enlevar e prender por tudo", é igualmente falso, pois dessa forma também nada acontece. Mas se ele for ético o suficiente para sofrer até o âmago de sua personalidade, então, por haver a insolubilidade da situação consciente, o SELF se manifesta. Em linguagem religiosa poder-se-ia dizer que a situação sem saída é a que força o homem a contar com Deus. Em linguagem psicológica a situação sem saída, que a anima arranja com grande habilidade na vida do homem, significa levá-lo a uma condição na qual será capaz de experienciar o SELF. Nessa condição ele estará aberto interiormente à interferência do tertium quod non datur (o terceiro que não é dado, isto é, o desconhecido). Desta forma, como Jung disse, a anima é o guia para a realização do SELF, mas algumas vezes de uma maneira muito dolorosa. Ao pensarmos na anima como um guia da alma, podemos pensar em Beatriz conduzindo Dante ao Paraíso; mas não devemos esquecer que ele experienciou isso somente depois de ter passado pelo Inferno. Normalmente, a anima não conduz o homem diretamente ao Paraíso; ela o coloca primeiro num caldeirão quente onde ele é muito bem cozido por um certo tempo.
Na nossa história a anima visa atingir o centro, enquanto as mulheres camponesas representam uma atitude desajeitada, muito imbuída de ideias da realidade concreta, uma atitude muito primitiva e indiferenciada do ponto de vista afetivo, que faz com que não aguentem a prova e se estatelem no chão.
Eu recomendaria para esse assunto a leitura da conferência que Jung fez em 1939, intitulada "The Symbolic Life" (Guild of Pastoral Psychology Pamphlets -nº 80). Jung tenta, então, explicar o que significa a vida simbólica. Ele diz que nós nos encontramos, atualmente, presos pelo racionalismo, e que nossa maneira de encarar a vida é racional e implica ser "razoável", o que exclui todo simbolismo. Ele continua mostrando quão rica é a vida para as pessoas que ainda estão impregnadas do simbo­lismo vivo nas suas formas religiosas. Como o próprio Jung descobriu, é possível encontrar o caminho de um simbolismo vivo, porém, não o simbolismo perdido, mas a função ainda viva que o produz. Nós chegamos a isso através do inconsciente e de nossos sonhos. Se se leva em consideração os próprios sonhos por um longo período de tempo, o inconsciente do homem moderno pode recons­truir a vida simbólica. Mas isso pressupõe que não se interprete os sonhos de maneira puramente intelectual e que realmente se os incorpore à própria vida. Então, deverá haver uma restauração da vida simbólica, não mais segundo o quadro de uma forma ritualista coletiva, porém, mais colorida e moldada segundo a própria indi­vidualidade. Isso significa não mais viver meramente segundo as decisões "razoáveis" do ego, mas viver com o ego embebido no fluxo da vida da psique que se expressa em forma simbólica e exige uma ação simbólica.
É necessário observar o que a própria psique propõe como uma forma de vida simbólica, segundo a qual deve-se viver. Sobre isso, Jung insiste em algo que ele fez na sua própria vida: quando um símbolo onírico emerge numa forma dominante, deve-se ter o trabalho de repro­duzi-lo, seja em desenhos, ainda que não se saiba desenhar, seja em escultura, ainda que não se saiba esculpir, ou de qualquer outra maneira, contanto que se estabeleça uma relação concreta com ele. Não se deve sair de uma sessão analítica esquecendo-se tudo sobre ela, deixando o ego organizar o resto do dia; ao contrário, deve-se perma­necer com os símbolos dos próprios sonhos durante todo o dia, tentando descobrir por onde eles querem entrar na realidade da vida. Isto é o que Jung quer dizer quando ele fala em viver a vida simbólica.
A anima é o guia, é a própria essência desta reali­zação da vida simbólica. Um homem que não compreen­deu nem assimilou o problema da anima é incapaz de viver este ritmo interior; seu ego consciente e seu intelecto são incapazes de comunicar-lhe algo sobre isso.
Naquela variação germânica que eu mencionei anteriormente, o sapo não se transforma numa linda mulher que aparece na corte; ao contrário, ela aparece sob a forma de sapo no mundo superior, enquanto no mundo inferior ela é uma moça bonita. Também aí, existe um teste final; o sapo pede: Umschiling Mich (abrace-me) e versenk dich (mergulhe). Versenken implica uma ação de afundar alguma coisa na água ou na terra. E também significa — especialmente quando é sich versenken — entrar em profunda meditação, sendo uma expressão usada na linguagem mística. Naturalmente, isso significa afundar na nossa água, terra, ou abismo interior, mergulhar nas nossas profundezas interiores.
A anima-sapo faz esse apelo misterioso, e o Tolo o compreende. Ele abraça a rã, e pula com ela dentro de uma lagoa e neste momento ela se transforma numa linda mulher e eles saem dali juntos como um casal humano.
Se analisarmos isso de maneira simples, podemos dizer que o Tolo deve segui-la até o seu reino, aceitando o seu modo de vida. Ela é uma rã que pula constante­mente na água, que nada e que gosta disso. Se ele a abraça e pula com ela na água, então ele aceita a sua vida de sapo.
Pode-se, pois, dizer que o noivo segue a noiva até a casa desta, ao invés de ocorrer o contrário. Sendo aceita tal como é, ela pode se transformar num ser humano. A aceitação da rã e de sua vida implica saltar para o mundo interior, mergulhando na realidade interna e aqui volta­mos ao mesmo ponto e à mesma conclusão: a intenção da anima é converter a consciência racional a fim de que essa aceite a vida simbólica, mergulhando nessa vida sem quaisquer senões, críticas ou objeções racionais, mas com um gesto de generosidade, dizendo: "Seja o que Deus quiser, mergulharei e a vislumbrarei"! Para isso é neces­sário coragem e ingenuidade — significa o sacrifício da atitude racional e intelectual, o que é difícil para as mulheres, mas muito mais difícil para os homens, parti­cularmente os ocidentais, pois isso vai contra suas ten­dências conscientes.
A anima, tornando-se humana, ocasiona o encontro dos opostos: ele vai ao encontro dela e ela vai ao encontro dele. Pode-se observar sempre que, quando existe uma forte tensão entre a situação consciente e o nível muito baixo dos conteúdos inconscientes, qualquer gesto de um dos lados ajuda a melhorar o outro também. Por exemplo, ocorre, muitas vezes, o homem sonhar com sua anima como uma prostituta, ou algo equivalente. Ele dirá que ela é muito abjeta, e que ele não pode descer a tal ponto, pois isso é contra seus princípios éticos. Ocorre, porém, que se ele conseguir superar essa rigidez preconceituosa e tiver generosidade para com a parte mais baixa de sua personalidade, com seus impulsos, haverá, de repente, uma transformação e a anima se elevará a um nível mais alto. Não se pode dizer entretanto essas coisas às pessoas, pois isso diminuiria o mérito do sacrifício que tem que ser feito com coragem e absolutamente sem cálculo. Se a pessoa tiver tal coragem e confiança, então o milagre pode acontecer, ou seja, essa parte da personalidade chamada de "mais baixa" (que somente chegou a esse estado pela atitude de desdém do consciente), ascende a um nível humano.
Uma terceira versão de nossa história, que apre­senta um prolongamento e uma forma diferente de re­denção da dama-rã, lança uma nova luz sobre o que quero exprimir por vida simbólica. E a versão russa chamada A filha-rã do czar (Die Mãrchen der Welt Literatur, vol. V, Russian Fairy Tales).
A filha-rã do czar
"Era uma vez um czar e sua esposa. Eles tinham três filhos que eram como falcões, homens jovens e belos. Um dia, o czar chamou os três filhos e disse: 'Meus filhos, meus falcões, chegou o tempo de vocês encontrarem suas esposas'. Disse-lhes, então, que deveriam tomar seus arcos de prata e suas flechas de cobre, devendo atirá-las em direção a terras estrangeiras, e onde a flecha caísse, lá então eles encontrariam suas respecti­vas noivas. Assim eles fizeram. Duas flechas caíram na corte do czar, e aqueles filhos encontraram moças muito boas. Mas a flecha de Ivan Czarevitsch caiu perto de um alagado, e indo até lá, ele encontrou uma rã com sua flecha. Ele disse: 'Devolva a minha flecha', ao que ela respondeu: 'Eu só devolverei com uma condição: se você casar comigo'. Ivan Czarevitsch voltou para a corte e, chorando, contou o que lhe havia acontecido. O czar disse: 'Bem, esse azar é seu, e você não pode escapar dessa. Você deverá casar-se com a rã'. O irmão mais velho casou-se com a filha do czar, o segundo irmão casou-se com a filha do príncipe, e Ivan casou-se com uma rã do pântano."
Nessa história muitas coisas são diferentes: há a influência feminina na corte, portanto, o rei não é de todo hostil ao casamento com a rã; não há tensão muito grande entre o masculino e o feminino, ou entre a aceitação e não aceitação de se levar uma vida de sapo.
"Mas, apesar disso, Ivan ficou, naturalmente, muito triste e infeliz. Então, um dia, o czar quis verificar a capacidade de suas noivas de tecer uma bela toalha. Ivan vai para casa e chora copiosamente, mas a rã, pulando atrás dele, diz-lhe que não se preocupasse e pede que ele se deite e durma que tudo dará certo. Tão logo ele adormece, ela tira sua pele de rã e vai até o quintal, assobia chamando as suas três empregadas que logo aparecem e tecem as toalhas. Quando Ivan acorda, ele recebe as toalhas de sua esposa, que retornara à forma de rã. Ivan nunca havia visto toalhas tão lindas. Ele as levou para a corte e todos ficaram profundamente impressionados.
Uma outra prova é proposta pelo rei. Ele pede o melhor bolo. Novamente Ivan adormece e durante a noite o bolo é feito. O czar, então, convida seus filhos e esposas para um jantar. Ivan novamente vai para casa chorando, mas sua noiva-rã diz que ele não deve se preocupar e ir em frente. Quando começar a chover ele deverá saber que sua esposa está se lavando. Quando relampejar, ele deverá saber que sua esposa está se vestindo para ir à corte. Quando trovoar, ela estará a caminho. O jantar na corte começa e as esposas dos irmãos mais velhos estão lindamente vestidas. Ivan está muito nervoso; então, uma terrível tempestade começa. Todos caçoam dele e perguntam-lhe do paradeiro de sua esposa. Quando a chuva começa, ele diz: 'Agora ela está se lavando', e quando relampeja, diz: 'Agora ela está pondo seu vestido real'. Ele mesmo não acredita nisso e está desesperado, mas quando ouvem-se trovões, diz: 'Agora ela está vindo' e, nesse momento, uma linda carruagem com seis cavalos se aproxima e dela desce a mais linda moça, tão bonita que todos silenciaram e ficaram tímidos.
Na mesa do jantar, as duas cunhadas notaram que ocorria algo muito estranho, pois a linda moça colocava parte da comida na manga do seu vestido. Mesmo achando estranho, as duas pensaram ser isso nova moda de boas maneiras e fizeram o mesmo. Quando o jantar terminou, começou o baile. A moça linda dançou com Ivan e ela dançava tão suavemente e tão bem que mal parecia tocar o chão. Enquanto ela dançava, balançou seu braço direito, de onde caiu um pedaço de comida que imediatamente se transformou num jardim com um pilar no centro; em volta deste um gato ficava rondando e em seguida subia no pilar e começava a cantar canções folclóricas.
Quando ele descia, ele contava contos de fada. A moça continuou dançando e aí balançou seu braço esquerdo e, então, apareceu um lindo parque com um riozinho onde nadavam lindos cisnes. Todos estavam muito admirados e boquiabertos com os milagres, como se fossem crianças. As outras cunhadas começaram a dançar, mas quando elas balançaram os seus braços direitos um pedaço de osso caiu e bateu na testa do czar, e quando elas estavam balançando o braço esquerdo, saiu um jato de água que foi parar nos olhos do czar.
Ivan olhava sua esposa com muito espanto e se pergun­tava como de uma rã verde poderia surgir uma linda moça. Ele vai então até o quarto onde ela dormia, e vê ali a pele de rã. Ele apanha a pele e atira-a ao fogo. Então, ele volta à corte e continuam na festa até amanhecer, quando Ivan volta para casa com sua esposa.
Quando chegou, a sua esposa-rã procura a sua pele e não a encontrando chama Ivan e pergunta-lhe se ele a viu, ao que ele responde: 'Eu a queimei'. 'Oh! Ivan', ela diz, 'por que você foi fazer isso? Se você não a tivesse tocado, eu seria sua para sempre. Mas, agora, nós precisamos nos separar — talvez para sempre'. Ela chora e chora e aos prantos lhe diz: 'Adeus! Procure-me no décimo terceiro Reino do czar, no décimo terceiro reino estrangeiro, onde habita Baba-Yaga, a grande bruxa e seus ossos'. Ela bate palmas e se transforma num cuco e sai voando pela janela.
Ivan sofre amargamente e, então, ele apanha seu bornal de prata, enche-o com pão, pendura alguns cantis no ombro e parte em sua longa busca. Ele caminha por anos. Um dia ele encontra um velho que lhe dá uma bola de barbante e lhe diz que deve segui-lo até a Baba-Yaga. Em seguida, ele salva a vida de um urso, um peixe e um pássaro. Ele encontra toda espécie de dificuldades, mas o peixe, o falcão e o urso ajudam-no, até que, finalmente, ele chega aos confins do mundo, ao décimo terceiro Reino. Aí ele encontra uma ilha onde existe um bosque e um castelo de vidro. Ele vai até o palácio e abre a porta de ferro, mas não há ninguém; então, ele abre a porta de prata, mas também não encontra ninguém nessa sala; então, ele abre uma terceira porta, que é de ouro e encontra sua esposa sentada fiando linho. Ela está tão arrasada pela dor e tão maltratada pelos trabalhos, que é desolador vê-la. Mas quando ela vê Ivan, enlaça-se ao seu pescoço e diz: 'Oh! meu querido, como eu tenho te esperado! Tu chegaste na hora exata. Se chegasses um pouco mais tarde, talvez não me visses nunca mais!' Embora Ivan não soubesse se ele estava neste mundo ou em outro, eles se abraçaram e se beijaram. Então ela se transforma novamente num cuco, põe Ivan debaixo de suas asas e voa de volta para casa. Quando eles chegam, ela se transforma definitivamente na forma humana e conta a Ivan: 'Foi meu pai que me castigou e que me deu como serva a um dragão para que eu o servisse por três anos, mas agora eu já cumpri a pena'. Então eles viveram felizes para sempre e oravam a Deus que sempre os ajudou muito."
Nessa versão russa, ao invés de pular através do anel, a figura da anima realiza mágicas fantásticas com a comida que ela coloca nas mangas. Primeiro aparece o jardim com o gato que entoa canções e conta contos de fada. Depois, cria o paraíso com sua mão esquerda. Deste modo, pode-se perceber ainda mais claramente que a anima cria a vida simbólica, pois ela transforma o ali­mento comum, que é para o corpo, em alimento espiritual, através da arte criativa e dos contos mitológicos; ela restaura o paraíso, uma espécie de mundo arquetípico da fantasia. O gato representa o espírito da natureza que é o criador de canções folclóricas e contos de fada. Fica clara, também, a relação da anima com a capacidade do homem para o trabalho artístico e para o mundo imagi­nário. Um homem que reprime sua anima geralmente reprime sua imaginação criativa. Dançar e criar uma espécie de fata morgana, um mundo de fantasia, é um tema paralelo ao de saltar através do anel. É, ainda, um outro aspecto da criação da vida simbólica, que se vive ao seguir os próprios sonhos, as fantasias diurnas e os impulsos que vêm do inconsciente, pois a fantasia dá à vida um brilho e uma coloração que o olhar muito racional destrói. Fantasia não é um capricho do ego, algo sem sentido, mas emerge realmente das profundezas; cons­tela situações simbólicas que dá à vida uma significação e uma realização das mais profundas. Aqui, novamente, as duas outras mulheres compreendem as coisas de uma maneira muito concreta. Da mesma forma que aconteceu com as camponesas que não conseguiram pular através do círculo, as duas esposas dos irmãos mais velhos, nessa história, colocam alimentos nas mangas por motivos errados, como, por exemplo, por ambição e, como as outras, se dão mal.
Na história russa, porém, algo mais acontece: Ivan comete um erro muito grande ao queimar a pele de sua esposa-rã. Este é um tema mais difundido, encontrado em contextos completamente diferentes e em muitos outros contos de fada. A anima aparece primeiramente em pele de animal, seja como peixe, seja como sereia, ou, mais frequentemente, como um passarinho, e só depois é que ela se transforma num ser humano. Geralmente o seu amado guarda sua antiga pele de animal ou de pássaro numa gaveta. A mulher tem filhos e tudo parece estar muito bem, quando acontece de o marido insultar sua mulher, chamando-a de gansa ou sereia, ou de qualquer outra coisa que ela havia sido anteriormente. Ela, então, apanha sua antiga vestimenta e desaparece. E agora ele tem que procurá-la por um bom tempo até encontrá-la ou, em algumas versões, ela desaparece e ele morre. Em tais histórias, pode-se até achar que seria preferível o homem ter queimado a antiga pele da esposa, pois assim ela não fugiria. Mas aqui é exatamente o oposto que ocorre. Ivan queima a pele, o que poderia parecer bom, mas não é. Em outros contos de fada, como, por exemplo, no conto de Grimm chamado "Hans, o ouriço", a pele do animal é queimada. Um príncipe foi castigado e tornou-se um ouriço e os servos da noiva queimam a pele do ouriço libertando o príncipe, que dá graças por ter sido redimido. Então, queimar a pele do animal não é necessariamente destrutivo, dependendo do contexto.
Em nossa história não se compreende por que o fato de queimar a pele da esposa faz com que ela desapareça voando. Pode-se imaginar que seu pai a castigou e que ela deve permanecer dentro da noite e da obscuridade pa­gando os seus pecados e, pelo fato de ter sido interrompido o processo, a sua punição se torna ainda mais severa. Mas isso são conjecturas; a história não dá maiores explica­ções. Os contos de fada onde a pele queimada de animal constitui-se em algo construtivo, fazem parte dos inúme­ros rituais de transformação pelo fogo. Na maioria dos textos mitológicos, o fogo tem a qualidade de purificação e de transformação, sendo por isso usado em muitos rituais religiosos. Na alquimia o fogo é usado (como aparece literalmente em alguns textos) para "queimar tudo o que é supérfluo", de tal modo que somente o núcleo indestrutível permaneça. Consequentemente, os alqui­mistas começam por calcinar a maior parte das substân­cias que utilizam, destruindo o que precisa ser destruído. Aquilo que resistiu ao fogo, o resíduo sólido que sobrevive à calcinação, tem o símbolo de imortalidade. O fogo é, portanto, o grande agente de transformação. Em certos textos gnósticos, o fogo é também chamado de "O Grande Juiz", porque ele julga, por assim dizer, determinando o que tem valor para sobreviver e o que deve ser destruído. Tudo isso se aplica, também, ao significado psicológico, pois por fogo entende-se o calor das reações emocionais e dos afetos. Sem o fogo da emoção nenhum desenvolvi­mento ocorre e nenhuma conscientização maior pode ser alcançada. E por isso que Deus diz: "Oxalá fosses frio ou quente, mas porque és morno e não és quente nem frio, estou para te vomitar da minha boca" (Apocalipse 3,16). Se na análise terapêutica aparecer alguém que é indiferente a ela, se for desapaixonado, se não sofrer, se não houver o fogo do desespero, nem ira, nem conflito, nem fúria, nem aborrecimento, nem nada dessa espécie, pode-se estar certo de que quase nada será constelado e que será uma análise chocha, insípida, um eterno "bla-bla-bla". Então o fogo, ainda que seja uma forma destrutiva de fogo (conflito, ódio, ciúmes, ou qualquer outra emoção), acelera o processo de amadurecimento, sendo realmente um "juiz" que esclarece as coisas. As pessoas que têm fogo entram em problemas, mas ao menos elas tentam alguma coisa, mesmo que caiam em desespero. Quanto mais fogo, mais existem os perigos dos efeitos destrutivos, de explo­sões emocionais e de toda espécie de erros e diabruras, mas, ao mesmo tempo, é isso que mantém o processo caminhando. Se o fogo for extinto, está tudo perdido. Esta é a razão pela qual os alquimistas sempre dizem que não se deve deixar apagar o fogo. O trabalhador preguiçoso, que deixa seu fogo apagar, está perdido: esse é o tipo de pessoa que somente esbarra no tratamento analítico, mas nunca entra de cabeça, ou melhor, de coração aberto. Ele não tem fogo e por isso nada acontece. Então, o fogo é o grande juiz que determina a diferença entre o corruptível e o incorruptível, entre o que é e o que não é relevante. Consequentemente, todos os fogos mágicos e de rituais religiosos têm a qualidade sagrada de transformação. Em vários mitos, entretanto, o fogo é o grande destruidor. Algumas vezes, o mito revela a destruição do mundo pelo fogo. Os sonhos nos quais cidades inteiras são queimadas, ou que a nossa própria casa é destruída pelo fogo indicam, em regra geral, um afeto já existente que se tornou completamente fora de controle. Sempre que uma emoção ultrapassa o controle do indivíduo, aparece o fogo destru­tivo como tema. Alguma vez você já se sentiu em tal estado de espírito que fez coisas horríveis, irremediáveis? Alguma vez você escreveu uma carta e daria tudo para não tê-la escrito? Ou disse alguma coisa que era melhor não ter dito e mordido a língua? Talvez você tenha agido destrutivamente através de emoções — tenha feito coi­sas para as quais não há mais conserto, arruinado algo para sempre, destruído um relacionamento humano. E, só para citar de passagem, isso lembra as declarações de guerra, frequentemente feitas sob estados emocionais fortes e, então, a destruição com certeza leva a uma conflagração mundial. Os estados emocionais destrutivos são muito contagiosos, como se pode depreender dos fenômenos de massa. Quando alguém solta as rédeas liberando as emoções destrutivas, geralmente tem o poder de arrastar consigo outras pessoas, gerando aqueles horríveis movimentos de massa onde pessoas são lin­chadas, assassinadas — tudo devido ao fogo de emoção que foi repentinamente liberado. Constata-se, literal­mente, o caráter destrutivo e atemorizante da emoção fogosa. Esse fenômeno encontra-se, também, nas cons­telações psicóticas, em que, sob uma camada de rigidez, emoções terríveis são acumuladas. Essas explosões emocionais são frequentemente representadas como uma enorme conflagração na qual tudo é destruído; nesses casos o indivíduo entra em tal estado de excitação, tor­nando-se tão perigoso para si como para os outros, que é necessário interná-lo.
Queimar a pele da rã refere-se ao efeito destrutivo do fogo; mas precisa-se também levar em consideração o fato de que a rã é um animal de sangue frio e aquático — sendo a água o oposto do fogo — e, portanto, ela é uma criatura que vive na umidade. Provavelmente, esta é uma outra razão por que o fogo, aqui, é tão destrutivo, reti­rando a qualidade aquosa da princesa. O que significa, em termos psicológicos, se um homem aplica o fogo destrutivo à sua anima úmida e criativa? Vimos que a anima, neste contexto como na vida prática, representa o dom da imaginação poética, a possibilidade de criar formas sim­bólicas de vida. Se, então, o herói ateia fogo na pele úmida, isso significaria submeter a fantasia criativa a um espí­rito muito analítico, muito impulsivo e apaixonado. Muitas pessoas destroem o segredo de sua vida interior por quererem agarrar as próprias fantasias e trazê-las à luz da consciência de uma maneira muito voraz e, ainda, por quererem interpretá-las intensa e imediatamente.
A criatividade muitas vezes necessita da proteção da sombra, de ser ignorada. Isso é bastante evidente na tendência natural de muitos artistas e escritores que não mostram suas obras antes de vê-las terminadas. Até então, eles não podem suportar sequer as reações positi­vas dos outros diante da obra. As reações apaixonadas das pessoas diante de uma pintura, exclamando por exemplo: "Oh! é maravilhoso!", ainda que haja boas intenções, podem destruir inteiramente o claro-escuro, a onda da fantasia mística e escondida que o artista necessita. Somente quando ele tem seu produto acabado ele pode expô-lo à luz da consciência e às reações emocionais das pessoas. Então se você notar uma fantasia inconsciente aparecendo dentro de si, você precisa ser sábio o suficiente para não interpretá-la imediatamente. Não diga que já sabe o que é, forçando-a para o consciente; deixe somente que ela viva lá dentro, na penumbra e carregue-a consigo observando para onde ela vai, ou para o que ela o dirige. Mais tarde, então, você poderá olhar para trás e ver o que você esteve fazendo durante todo o tempo em que cultivava essa fantasia estranha, que o levou a algum objetivo inesperado. Se você estiver fazendo um desenho e tiver a ideia de juntar mais isso ou aquilo, não pense: "Eu li o que isso significa!" Se isso ocorrer, empurre então seu pensamento para longe e se dê mais e mais ao desenho, de tal modo que toda a rede de símbolos possa se expandir em muitas e todas as ramificações antes que você busque o seu sentido essencial.
Quando as pessoas têm imaginação ativa na aná­lise, em geral somente as ouço, e só quando existir um pedido especial do analisado, ou quando as fantasias estiverem muito transbordantes que necessitem uma parada, um corte, ou ainda, se a pessoa já encontrou um certo caminho, só então é que eu posso analisá-las como um sonho. E muito melhor não analisá-las enquanto estiverem acontecendo, pois o autor das fantasias toma consciência do que elas podem significar e o que podem ser, e isso inibe o trabalho da fantasia.
Se uma fantasia inconsciente, ou outro conteúdo for especialmente fogoso, bastante carregado de afeto, certa­mente será empurrado para o consciente, não importa qual seja. Mas certas fantasias são mais do tipo "rã", isto é, elas aparecem durante o dia como uma espécie de pensamento brincalhão; num momento desavisado você acende um cigarro e uma estranha fantasia aparece, mas sem muita carga energética. Se você se joga nesses pensamentos de uma maneira muito feroz, você os des­trói. Tais como as pequenas criaturas — os anõezinhos, por exemplo — eles não podem ser observados, precisa-se deixar que eles fiquem por perto, mas sem olhar para eles, para que possam executar seu trabalho secreto, sem perturbações. A nossa mulher rã pertence a essa última categoria de criaturas, pois o seu espírito canta canções folclóricas (como vemos a partir do gato) e conta contos de fada, e esse é um espírito artístico, brincalhão, que pode ser destruído no momento em que for tomado a sério, com muita paixão. Provavelmente essa é a grande razão por que Ivan foi queimar a pele da rã e, por causa disso, teve que retardar a redenção definitiva de sua anima.
O fato de ele ter que encontrá-la no fim do mundo é algo que ocorre em muitos contos de fada. Um homem encontra a noiva predestinada e por algum erro a perde; então ele tem que partir para uma longa viagem até os confins do mundo, através dos sete céus, até encontrá-la novamente. Esse ritmo duplo corresponde ao que se pode chamar tecnicamente de "primeiro desabrochar", que ocorre no início da análise. Isso acontece, frequentemente, com pessoas que estão presas a uma atitude consciente neurótica por longo tempo e que, consequentemente, perderam o contato com o fluxo da vida e a esperança de sair do estado neurótico. Quando essas pessoas chegam para a análise e recebem o calor humano do terapeuta ou, ainda, através de sonhos têm um contato repentino com possibilidades irracionais ou se um sonho prospectivo mostra que apesar da vida sem esperanças, do consciente, existe uma possibilidade positiva irracional, então, de­pois das primeiras horas de análise, elas chegam a um despertar e desabrochar impressionantes: os sintomas desaparecem e a pessoa experiência uma cura miraculo­sa. Não caia nessa, porém! Somente em 5% dos casos isso dura. Em todos os outros casos, depois de um tempo, toda a problemática aflui novamente e os sintomas voltam. Tal fenômeno ocorre, normalmente, quando a atitude neu­rótica do consciente está muito distante das tendências da vida inconsciente, tornando impossível a união dos dois lados. Primeiro tenta-se uni-los e as coisas parecem estar bem, mas de repente os opostos se endurecem e se afastam novamente e tudo volta a ser como antes. A cura ocorre de fato somente quando existe um estado constante de relacionamento entre o consciente e o inconsciente, e não quando surge uma centelha de luz através de um relacionamento. Portanto, só acontece a cura quando existe uma condição de relacionamento contínuo dos dois lados. A constituição disso leva tempo, muito tempo e é somente então que se pode dizer que a cura está solidifi­cada e salva de alarmes falsos. O primeiro desabrochar, entretanto, é um evento arquetípico.
Eu sempre me perguntei por que o inconsciente ou a natureza — ou que nome for — faz essa brincadeira tão cruel com as pessoas, ou seja, primeiro cura e, depois, faz com que elas caiam novamente. Por que alguém esfrega uma salsicha no nariz do cachorro, e depois a esconde? Isso não é bom. Mas eu já observei que existe um signifi­cado profundo e, provavelmente, existe uma intenção final nisso tudo. Se algumas pessoas nunca tiveram sequer uma pequena experiência de como seriam as coisas se tudo fosse bem, elas nunca poderiam aguentar o peso da análise e as misérias do processo analítico. É somente uma lembrança daquela centelha do paraíso que faz com que as pessoas continuem na jornada sombria. Esta é a razão, provavelmente, por que algumas vezes no começo da análise o inconsciente oferece a possibilidade maravilhosa da cura, da forma boa de viver e da felicidade para, em seguida, levar isso tudo embora. É como se ele dissesse: "Isso é o que você vai obter mais tarde, mas antes você tem que perceber e compreender isso e mais aquilo e muito mais até chegar lá".
Eu descobri isso quando as pessoas que tinham experienciado o primeiro desabrochar disseram: "Bem, apesar de tudo, eu não apresentei os sintomas em tais e tais ocasiões; então é possível, não é"? Sim, deve ser possível. E isso lhes dá coragem para se manterem em situações desesperadoras. Em nosso conto de fada, se Ivan não tivesse visto sua noiva em seu estado bonito e não tivesse tido aquele relacionamento com ela, certamente não teria caminhado até o décimo terceiro reino do czar, até o fim do mundo.
Nesta história há um outro tema interessante. A dama-rã foi castigada pelo seu pai por algum pecado que ela cometeu. Não se sabe ao certo qual era o pecado. Pro­vavelmente era um pecado somente aos olhos do pai — porém, certo é que ela deve ter feito algo que o aborreceu e, por isso, foi castigada a viver na forma de rã, ficando à mercê de um dragão e Ivan tem que resgatá-la dali.
Se considerarmos isso tudo em termos psicológicos, é bastante complicado, pois, na história das "Três penas", assumimos que a anima estava na forma inferior de rã porque a consciência não tinha nenhum relacionamento com o lado feminino. Na situação consciente existia somente um rei e seus três filhos e nenhum princípio feminino, de tal forma que todo o mundo feminino estava reprimido sob uma forma degenerada. Nesse outro caso, o equilíbrio da história é completamente diferente, pois no início o czar tem uma esposa, existe o princípio da mãe; o princípio feminino não está, pois, ausente no contexto consciente e, portanto, não se pode simplesmente falar em repressão da anima. Há, ainda, uma outra dificuldade: a dama-rã aborreceu seu pai, sobre o qual pouco sabemos e ele castigou-a e trouxe-a para uma condição inferior. O esquema seguinte esclarece melhor, como se vê:

Czar_____________Czarina
O O O Três filhos
_________________________limiar da consciência
Processo normal de integração
Princesa-rã Descida ao inconsciente
Seu pai por um castigo

No topo existem cinco pessoas ao invés de quatro, então é um contexto completamente diferente. Pode-se dizer que é uma família naturalmente equilibrada; exis­tem mais elementos masculinos do que femininos, mas nada do que é vital está faltando. Abaixo do limiar da consciência existe a dama-rã e seu pai.
O pai, que é mencionado somente no final da histó­ria, por sua vez castiga sua filha, o que a faz sair da consciência e adentrar as profundezas do inconsciente. Então, o pai barra seu caminho, impedindo-a de ascender e ser integrada, o que seria o processo normal da vida. O porquê de o pai da dama-rã ser tão mal humorado não se sabe, mas certamente parece que ele não quer que ela case no nível consciente. A única coisa que se pode afirmar, de fato, é que ele, por alguma razão, é contrário à filha tornar-se consciente. Ele talvez queira, como a maioria dos pais, guardá-la para si, mas isso não fica claro e não é bom especular sobre tais problemas familiares no inconsciente. (No inconsciente os problemas familiares são bem terríveis.) Traduzindo numa linguagem psicológica, significa que os complexos arquetípicos lutam um contra o outro no nível inconsciente. Em minha experiên­cia tenho verificado que tais conflitos são, em geral, efei­tos ricocheteados de alguma perturbação entre os dois mundos da esfera consciente e da esfera inconsciente. Eu acredito, pois poderia dar outros exemplos onde isso aparece com maior clareza, que nesse caso o pai (de baixo) tem uma tensão conflitual com o czar (de cima). Os dois pais lutam e, ao invés de atacar o czar, o pai leva sua filha embora.
Quem é este pai da princesa-rã? Quem é o pai da animal Em muitas histórias europeias, onde existe uma influência cristã, o pai da anima é chamado de diabo. Em países europeus com menor influência cristã, o pai da anima é caracterizado como uma velha imagem de Deus. Assim, em países germânicos, o pai da anima aparece como um velho com os traços próprios de Wotan; nas lendas judaicas ele é um velho Deus do deserto ou um demônio; nos contos de fada islâmicos, eles são grandes djinns, que são os demônios pagãos do período pré-islâmico. Então, poder-se-ia dizer que, em geral, o pai da princesa-rã representa a imagem mais antiga de Deus que, estando em contraste com a nova imagem dominante da divindade, é por essa reprimida. A nova imagem dominante da consciência, normalmente, se superpõe a uma velha imagem da mesma espécie, acontecendo frequentemente uma tensão secreta entre esses dois fatores, fazendo com que a anima dirija dessa maneira.
Isto é importante também na vida prática? Por exemplo, muitas vezes pode-se observar que a anima de um homem é um ser "antiquado". Ela, normalmente, está ligada ao passado histórico e isto explica por que os homens que na vida consciente são inovadores, corajosos, inclinados a mudanças e reformas, tornam-se sentimen­talmente conservadores tão logo caiam no humor da anima. Eles podem ser surpreendentemente sentimentais; por exemplo, um homem de negócios, rude, que não pensa senão em passar por cima dos outros, pode ser encontrado cantando canções infantis junto à árvore de natal, como se fosse uma pessoa que não fizesse mal a uma mosca. É que sua anima permaneceu no mundo infantil tradicional. Pode-se observar a mesma coisa na área de Eros. A crença de alguns homens nas instituições que professam é um exemplo do efeito da anima. Estas cren­ças e convicções fazem desses homens prisioneiros do passado. As mulheres, que ainda são vistas como mais conservadoras na sua vida consciente (a tal ponto que, segundo alguns, ainda estariam tomando sopa de paliti­nho, se o homem não tivesse inventado a colher), frequentemente têm um animus com o olho no futuro e um talento especial para mudanças efetivas; daí, poder se observar o interesse das mulheres nos movimentos de vanguarda. Na Grécia antiga, por exemplo, o culto de Dio­nísio foi em grande parte promovido pelas mulheres, que também foram as responsáveis por sua continuidade. Também nas primeiras comunidades cristãs a força maior foi dada pelo entusiasmo das mulheres e não dos homens.
Quando a imagem do velho Deus confina a anima ao passado, então, uma luta se desencadeia entre a nova atitude consciente e a antiga forma de onde vem a anima. Pode-se ver, pois, que existe uma semente de verdade na afirmação dos Irmãos Grimm, qual seja: contar histórias de fada pertence ao passado pagão. De acordo com a história russa, a princesa-rã é a contadora de histórias e, de certa forma, não pode ascender ao domínio do czar reinante. O verdadeiro conflito é, então, entre as duas figuras de pai. Isso é uma coisa encontrada muitas vezes quando deparamos um conflito no inconsciente: ou seja, um conteúdo inconsciente ataca um outro conteúdo também inconsciente, e este, ao invés de rebater o ataque, atinge um terceiro conteúdo, provocando um efeito indireto. Esse processo é claramente ilustrado pelo conto da mulher que repreende a cozinheira, que grita com a copeira, que chuta o cachorro, que morde o gato... e assim por diante. O conflito é passado adiante de tal forma que, quando chega ao conhecimento, está completamente diferente, não se podendo saber, de fato, onde se encontra o verdadeiro conflito. Precisa-se, pois, sempre levar em consideração os paralelos e todo o contexto para poder encontrar as relações mais essenciais. E essas, por sua vez, nos levam a profundezas impenetráveis, tais como as que aqui aparecem quanto à questão da imagem divina.

SEGUNDA PARTE
7
Sombra, anima e animus nos contos de fada
Embora praticamente todos os contos de fada girem em torno do símbolo do SELF ou sejam regulados por ele, encontramos sempre, em muitas histórias, temas que nos lembram os conceitos de Jung sobre a sombra, o animus e a anima. Neste capítulo, eu darei a interpretação de cada um desses temas. Porém, precisa estar bem claro novamente que estamos lidando com a infraestrutura objetiva e impessoal da psique humana, e não com os seus aspectos individuais e pessoais.
O afloramento da sombra
A figura da sombra em si mesma pertence em parte ao inconsciente pessoal e em parte ao coletivo. Nos contos de fada, somente o aspecto coletivo pode ocorrer. A sombra do herói, por exemplo, pode aparecer como uma figura mais primitiva e mais instintiva do que o próprio herói, porém, não necessariamente inferior em termos morais. Em alguns contos de fada o herói (ou a heroína) não tem a companhia da sombra, mas possui em si mesmo traços positivos e negativos e, algumas vezes, traços demonía­cos. Precisa-se, então, questionar em que circunstân­cias a imagem do herói se divide em uma figura de luz e quando em uma de sombra. Uma divisão dessa espécie aparece normalmente em sonhos nos quais uma figura desconhecida surge pela primeira vez, e a divisão indica que o conteúdo que se aproxima só é aceito parcialmente pela consciência. Tornar-se mais consciente de algo pres­supõe uma escolha da parte do ego. Em geral, somente um aspecto do conteúdo inconsciente pode ser aprendido de cada vez, passando os outros aspectos a ser rejeitados. A sombra do herói é, pois, aquele aspecto do arquétipo que foi rejeitado pela consciência coletiva.
Ainda que a figura da sombra seja arquetípica nos contos de fada, a partir de seus comportamentos caracte­rísticos pode-se aprender muito sobre a assimilação da sombra no campo pessoal. Para ilustrar isso, escolhi a história norueguesa "O príncipe Ring". (Esta versão foi extraída de Die Neuislándichen Volksmãrchen de Adeline Ritterhaus, Halle, A.S. 1902, p. 31, onde aparece sob o título "Snati-Snati".)
Este conto, embora sendo coletivo, oferece analogias quanto a problemas individuais de integração da sombra e mostra tanto os aspectos típicos como gerais desse processo.
O príncipe Ring
"Ring (anel), o filho de um rei, estava um dia caçando quando foi surpreendido pela visão de uma corça muito veloz, que tinha um anel de ouro encaixado nos seus chifres. Ele passou a persegui-la avidamente e acabou por se separar de seus companheiros, entrando num nevoeiro muito espesso, onde perdeu a corça de vista. Aos poucos, foi conseguindo achar uma saída do bosque, e quando se viu fora, estava numa praia, onde encontrou uma mulher curvada sobre um barril. Aproxi­mando-se, ele viu um anel de ouro no fundo do tal barril e a mulher, adivinhando-lhe os desejos, sugeriu que ele entrasse e pegasse o anel. Assim que entrou, ele percebeu que o barril tinha um fundo falso, e quanto mais ele afundava, mais fundo parecia estar o anel. Quando estava assim mergulhado, a mulher fechou o barril bem fechado e rolou-o até as ondas do mar, que o levaram embora.
Depois de um longo tempo, o barril foi jogado numa praia e Ring conseguiu safar-se dele. Percebeu estar numa ilha estranha. Antes mesmo que tivesse tempo de investigá-la, um enorme gigante apanhou-o, e, cuidadosamente, levou-o para sua esposa para que Ring lhe fizesse companhia. Esses velhos gigantes eram muito amáveis e faziam todas as vontades de Ring. O gigante, por vontade própria, mostrou ao jovem seus tesouros e tudo o que possuía, mas proibiu-o terminantemente de entrar na cozinha. O príncipe Ring sentiu uma curiosidade enorme de saber o que existia na cozinha e, por duas vezes, esteve no limiar da porta, mas estancou e não entrou. Na terceira vez, porém, teve coragem e deu uma olhadinha, e um cachorro que havia lá começou a suplicar, repetindo várias vezes: 'Escolha-me, príncipe Ring! Escolha-me'!
Depois de algum tempo, os gigantes, sabendo estarem no fim da vida, chamaram Ring e disseram-lhe que estavam velhos e, portanto, prestes a morrer, e que gostariam de oferecer-lhe alguma coisa, e que escolhesse, então, o que quisesse. Ring lembrou-se das súplicas do cachorro e pediu aos gigantes que lhe dessem o que estava na cozinha. O gigante não ficou muito contente com o pedido, mas aceitou-o. O cachorro — que se chamava Snati-Snati—pulava e lambia tantas vezes o príncipe e era tanta a sua alegria, que Ring ficou um pouco amedrontado.
Ring e o cachorro partiram para um reino muito distante dali. Snati-Snati falou, então, ao príncipe, que pedisse ao rei daquele local um pequeno quarto no palácio para que se abri­gassem durante o inverno. O rei os recebeu muito bem, mas Rauder, seu ministro, franziu o testa enciumado quando os viu. Rauder sugeriu ao rei que fizesse uma competição entre ele e o novo hóspede. Eles teriam que cortar árvores numa floresta, e quem abrisse a maior clareira seria o vencedor. Snati-Snati disse a Ring que pedisse dois machados — e ambos foram para a tarefa. A tardezinha, Snati-Snati tinha cortado muito mais árvores que o ministro e este perdeu a prova. Então, Rauder sugeriu ao rei que pedisse a Ring que matasse dois búfalos selvagens trazendo as peles e os chifres dos animais. Lá foi Ring para a caçada e durante a luta Snati-Snati ajudou-o a matar os búfalos, cujas peles e chifres foram levados ao rei. Ring foi muito elogiado por sua façanha, mas uma outra prova foi proposta.
Ring deveria recobrar os três objetos mais preciosos do reino que estavam em posse de uma família de gigantes, que morava numa montanha nas redondezas. Estes objetos eram um con­junto de roupas de ouro, um tabuleiro de xadrez também de ouro e uma barra de ouro puro. Se ele conseguisse isso, poderia casar com a filha do rei.
Carregando um grande saco de sal, o homem e o cachorro escalaram a montanha — Ring segurando o rabo de Snati-Snati — e conseguiram chegar ao topo. Lá, encontraram uma caverna e, olhando através da abertura, viram quatro gigantes adorme­cidos em volta de uma fogueira, sobre a qual fervia, num enorme caldeirão, uma sopa de cereais. Vagarosamente, jogaram o sal na sopa e esperaram. Quando os gigantes acordaram estavam famintos, mas logo depois das primeiras colheradas, a mãe gigante, que era horrível de se olhar, estava morta de sede e pediu à filha que fosse buscar água. A filha concordou com uma condição: que levasse consigo a barra de ouro. Depois de uma cena furiosa, a mãe cedeu. Como a filha não voltasse mais, a mãe ordenou, então, ao filho, que fosse buscar água. Esse concordou, porém com a condição de levar consigo as roupas de ouro. A mãe, novamente, ficou furiosa, mas consentiu. O filho foi afogado da mesma maneira que a sua irmã por Snati-Snati e Ring. Em seguida, o filho não voltando, foi o marido com o tabuleiro de ouro. A única diferença é que o marido assumiu primeiramente a forma de fantasma antes de ser finalmente abatido pelos dois heróis. O príncipe e Snati-Snati olharam, então, a terrível bruxa gigante; o cachorro lembrou que nenhu­ma arma poderia penetrar o seu corpo: ela só poderia ser morta com o cereal cozido e um pedaço de ferro em brasa. Quando a bruxa viu o cachorro espreitando na entrada da caverna, ela gritou: Ah! então foram vocês, você e o príncipe Ring que mataram a minha família'! E avançou para matá-los, ao que se seguiu uma luta desesperada e ela acabou morrendo. Depois de cremarem os cadáveres, Ring e Snati-Snati voltaram com os tesouros e foi anunciado o noivado do príncipe com a filha do rei.
Na noite anterior ao casamento, o cachorro pediu a Ring que trocassem de lugares: ele dormiu na cama de Ring e este no chão. Durante a noite, Rauder entrou no quarto para matar Ring, e com uma espada aproximou-se da cama, mas assim que ele levantou o braço, Snati-Snati pulou e numa mordida arran­cou-lhe a mão direita. Na manhã seguinte, Rauder, perante o rei, acusou Ring de tê-lo atacado. Porém Ring mostrou ao rei a mão do ministro que ainda segurava a espada, e o rei, vendo isso, mandou que o ministro fosse enforcado.
Ring casou-se com a princesa permitindo que na noite de núpcias Snati-Snati fosse dormir aos pés da cama dos noivos. Durante a noite ele voltou à sua verdadeira forma que era a do filho de um rei, também chamado Ring. Sua madrasta o tinha transformado num cachorro e ele só poderia ser redimido se dormisse aos pés da cama de um filho de rei. A corça com o aro dourado, a mulher na praia e a bruxa gigante eram na realidade sua madrasta disfarçada de várias maneiras, tentando impedir a qualquer custo a sua redenção."
Este conto se abre com a imagem de um príncipe caçando. Muitos contos de fada — mais da metade, de fato — têm a ver com os membros de uma família real. Nos outros, os heróis são pessoas comuns, tais como pobres camponeses, moleiros, desertores etc.
Mas em nossa história a figura principal representa um futuro rei, ou seja, o elemento ainda inconsciente, que é capaz de se tornar um elemento coletivo dominante e que deverá possibilitar uma compreensão mais profunda do SELF.
O príncipe persegue a corça que tem um anel de ouro em seus chifres. Um paralelo grego é a cerva Cerenita, consagrada a Artemis, que tem seus cornos dourados e que Hércules perseguiu durante um ano, não lhe sendo permitido matá-la. (Outros paralelos são encontrados em Die Sage von der Verfolgoten Hinde de Carl Pschmadt, Diss. Greifswald, 1911.) Numa das versões do mito, ele finalmente encontra-a no jardim das Hespérides, sob as macieiras, cujas maçãs davam a juventude eterna. Arte­mis, a famosa caçadora, é frequentemente transformada numa corça, o que ressalta a secreta identidade que une o caçador e a caça.
A corça normalmente indica o melhor caminho e encontra o ponto mais seguro para cruzar o rio. Por outro lado, ela muitas vezes conduz o herói a um desastre, ou até mesmo à morte, guiando-o para um precipício, para o mar, ou para um pântano. Ela pode tanto nutrir uma criança órfã, como abandoná-la. O macho sempre carrega um anel ou uma cruz preciosa entre os chifres, podendo mesmo ter chifres de ouro. O fato de nossa história ter uma corça com chifres indica que o animal é fêmea — (uma imagem da anima) — ao mesmo tempo que os chifres nela significam um traço masculino. Isso nos leva a pensar que esse é um ser hermafrodita, que une os elementos da anima e da sombra. Um texto medieval explica que quando o cervo se sente velho, ele primeiro come uma cobra e em seguida engole muita água para afogá-la; por sua vez, a cobra o envenena e o cervo deve perder os chifres para livrar-se do veneno.
Uma vez que o veneno saiu, novos chifres podem crescer. E a respeito disso declara um dos Padres da Igreja primitiva: "O cervo sabe o segredo da auto-renovação; ele se livra dos chifres e com ele devemos aprender a nos livrar do nosso orgulho". O desprendimento dos chifres do cervo é provavelmente a base natural de todos os poderes de transformação que a mitologia atribui a este animal. Na medicina medieval, o "osso do coração do veado" era considerado um remédio para doenças cardíacas.
Resumindo, o cervo simboliza um fator inconscien­te que mostra o caminho que conduz ao evento crucial; seja ao rejuvenescimento — (à mudança na personali­dade, ao reencontro do bem amado), seja ao Além (as Hespérides) — ou mesmo à morte. Além disso, o veado é o portador da luz e dos símbolos do mandala (o círculo e a cruz). Como Mercúrio ou Hermes, ele aparece como psicopompo, um guia para o inconsciente. Funcionando como ponte para as regiões mais profundas da psique, ele é o conteúdo inconsciente que atrai a consciência e a conduz para novos conhecimentos e novas descobertas. Como uma sabedoria instintiva que reside na natureza do ornem, o veado exerce um forte fascínio representando aquele fator psíquico desconhecido que fornece signifi­cado ao sonho.
O aspecto de morte que ele pode tomar aparece quando a consciência tem uma atitude negativa em relação a ele; tal atitude leva o inconsciente a desenvolver um papel destrutivo.
Em nosso conto, o veado carrega um anel (ring) nos chifres, e o filho do rei chama-se Ring (anel); isso revela que o veado carrega o componente essencial da própria natureza do príncipe — ou seja, o seu lado instintivo, não-domesticado. Juntos, eles são as faces complementares da entidade psíquica, da qual o príncipe é o aspecto antropomórfico. No princípio do conto ele é um caçador sem destino, não tendo ainda descoberto suas formas individuais de realização. Sendo incompleto, ele repre­senta meramente a possibilidade de se tornar consciente e, consequentemente, tem que encontrar o seu próprio oposto, da mesma forma que o veado, na alegoria medieval, engole e integra sua forma oposta (que em algumas versões aparece sob a forma de cobra, em outras, sob a forma de rã). Portanto é compreensível que o veado possua o segredo da renovação e complementação do príncipe, simbolizado no anel de ouro.
O príncipe continua a caçada nos bosques, ou seja, no inconsciente, e se perde num nevoeiro, tornando-se obscura a visão e nebulosos todos os limites. A perda dos companheiros significa o isolamento e a solidão típica do caminho para o inconsciente. O centro de interesse mudou do mundo exterior para o interior, mas o mundo interior se apresenta completamente ininteligível. Neste estágio, o inconsciente parece sem sentido e confuso.
A corça conduz o príncipe à praia, onde uma mulher maldosa está debruçada sobre um barril. O objeto da fascinação, o anel, aparentemente havia sido jogado dentro do barril pelo animal. 0 anel, símbolo do SELF, repre­senta em particular o fator que cria a relação e a totali­dade interior e essencial. Isso é o que o príncipe está procurando. Perseguindo o anel de ouro e atraído pela corça, o príncipe cai nas mãos de uma bruxa que, mais tarde, fica sabendo ser a madrasta de Snati-Snati. Na psicologia masculina, a madrasta simboliza o inconscien­te no seu papel destrutivo, no seu caráter perturbador e devorador.
Ele mergulha na barrica atrás do anel. A madrasta fecha o barril e rola-o para dentro do mar, um azar aparente, pois o príncipe acaba chegando a uma ilha, onde encontra Snati-Snati, seu sósia mágico e companheiro de lutas. Então, a madrasta tem um caráter ambíguo: com uma das mãos ela destrói e com a outra leva ao bom êxito. Sendo mãe temível, ela representa uma resistência natural que bloqueia o desenvolvimento mais elevado da consciência, uma resistência que exige do herói suas melhores qualidades. Em outras palavras, perseguindo-o, ela o ajuda. Como a segunda esposa do rei a madrasta é, de certa forma, a esposa falsa, e pertencendo ao sistema antigo que o rei representa, ela significa a inconsciência insípida e pesada que acompanha as instituições sociais antigas e que trabalha contra a tendência de desenvol­vimento para um novo estado de consciência. Esta in­consciência negativa e teimosa mantém a sombra do prín­cipe na escravidão.
Quando o herói é colocado no barril, este é como um barco que o sustém sobre as águas, e sob este aspecto ele é maternal e protetor; e ainda mais, ele o conduz para o lugar certo. Olhando de uma forma negativa, pode-se observar aí uma regressão para o útero que o aprisiona e isola. Nesta imagem, a confusão e o sentimento de estar perdido e incapaz de encontrar uma saída é sugerido pelo nevoeiro intenso. No plano da realidade psicológica isto pode ser interpretado como o estado de possessão arque­típica — neste caso, sob o domínio do arquétipo da mãe. Pode-se dizer que o príncipe Ring está, agora, sob o poder da mãe negativa, que procura cortá-lo da vida e engoli-lo.
A barrica corresponde à baleia da história de Jonas, e a navegação do príncipe em seu interior é um exemplo típico da "viagem pelo mar noturno". Em outras palavras, um estado de transição onde o herói é enclausurado na imagem da mãe como um navio. Mas o barril não só aprisiona o herói; ele também o protege do afogamento. Isso pode ser comparado à neurose que tende a isolar o indivíduo de forma a protegê-lo. A condição da solidão neurótica é positiva quando ela, protegendo, permite o crescimento de uma nova possibilidade de vida. Ela pode ser um estágio de incubação que clama por uma personali­dade mais real e mais definidamente formada. Este é o significado do barril na história do príncipe Ring.
Como o barril, a ilha é um símbolo de isolamento. Geralmente é um domínio mágico habitado por figuras de outro mundo — e nessa ilha existem gigantes.
Às ilhas normalmente aportam projeções de esferas psíquicas inconscientes; por exemplo, existem as ilhas dos mortos e na "Odisseia", Calipso, a ninfa cativa, "a envolta em véus", e a feiticeira Circe viviam em ilhas e são, de certa forma, deusas da morte. Em nossa história a ilha não é a meta do herói, mas um outro estado de transição. No mar do inconsciente, a ilha representa a parte destacada da psique consciente (como se sabe, sob o mar a ilha continua e está ligada ao continente). Aqui a ilha representa um complexo autônomo, destacado do ego, com uma espécie de inteligência própria. Ela é um pedaço do consciente, fascinante e impreciso, que pode ter um efeito sutil e insidioso sobre o indivíduo.
Pessoas pouco evoluídas psiquicamente frequentemente têm complexos bastante incongruentes e isolados, que quase complementam um ao outro, tais como os conceitos incompatíveis do cristianismo e do paganismo, que não se reconhecem como contraditórios. O complexo constrói seu próprio campo "consciente" separado do cam­po original onde os velhos pontos de vista ainda pre­valecem, e é como se cada um fosse uma ilha do consciente, independente, com seus próprios portos e tráfegos.
Nesta ilha moram gigantes. Os gigantes são carac­terizados somente pelo tamanho e por terem uma relação próxima com os fenômenos naturais. Nas crenças folcló­ricas, por exemplo, o trovão é visto como gigantes jogando bola, ou como gigantes martelando; as formações irregu­lares de pedras são vistas como compostas por gigantes que estavam brincando, e a neblina aparece quando a mãe gigante estende roupas para secar. Existem diferentes famílias de gigantes, como os gigantes da tempestade e os da terra. Mitologicamente, os gigantes aparecem como "pessoas mais velhas", uma raça ancestral da época da criação que se extinguiu. "Havia gigantes na terra nesses tempos" (Gênesis, 6,4). Em algumas cosmogonias eles são caracterizados como os predecessores dos seres humanos que não evoluíram; assim, por exemplo, em "A Edda", Stur, o gigante, é descrito como uma espada que separa os pólos opostos — fogo e gelo — e a criação do gigante Ymir surge a partir da mistura desses opostos. (Quando Ymir foi abatido, os anões saíram como vermes de suas entranhas.) Os gigantes gregos são os Titãs que se rebelaram contra Zeus e que foram exterminados pelos raios do deus do Olimpo. Na tradição órfica, os homens teriam se originado da fumaça que saiu da cremação dos gigantes mortos. Em outras tradições, os gigantes, ébrios de orgulho de si mesmos, eram destruídos pelos deuses e então os homens herdavam suas terras. Portanto, os gigantes formam uma raça sobrenatural antiga, sendo apenas semi-humanos. Eles representam fatores emocionais de força bruta que não emergiram ainda ao nível da consciência humana. Os gigantes possuem uma força enorme e são famosos pela estupidez mental. Eles são fáceis de persuadir, são presas de seus próprios sentimentos e, portanto, desamparados, apesar de todo poder. Os poderosos impulsos emocionais que represen­tam estão enraizados no subsolo dos arquétipos; assim, quando alguém é vítima de tais impulsos ilimitados, acaba sendo dominado por eles, ficando fora de si, usando de força bruta e tornando-se tão selvagem e estúpido como um gigante. A pessoa pode mesmo dispor por um tempo de uma força gigantesca e depois ter um colapso. Em circunstâncias mais felizes, a pessoa pode ser inspirada e transportada pelos gigantes, como nas histórias dos santos que eram auxiliados pelos gigantes na construção de uma igreja, erigida numa só noite. Esse é o aspecto positivo dessas emoções semiconscientes e não domesticadas. Então, em momentos como esse, o ser humano pode executar tarefas de grande porte.
Na ilha morava um casal de gigantes. No começo da história, os pais do príncipe não foram mencionados — ou seja, foi omitida a imagem dos pais — uma lacuna bastante incomum nos contos de fada e, muito provavel­mente, os gigantes são o equivalente energético e a forma arcaica dos pais. Considerando a ausência do rei e da rainha, ou seja, dos pais, os gigantes assumiram esses papéis. Aqui não aparece o princípio regulador da cons­ciência e este, consequentemente, deve ter regressado à sua forma arcaica. Existe sempre algum tipo de força dominante e se o princípio regulador vacila, existe, então, uma recaída às formas primitivas. Por exemplo, na Suíça o ideal de liberdade — o ideal de relacionamento sem restrições — era reverenciado como uma noiva mística, e cada vez que surgia uma pressão de fora, este ideal era estimulado novamente. Mas em tempos pacíficos, as pessoas perdem contato com esse ideal e revivem a ideia de confrarias e sociedades protetoras. Um estado seme­lhante prevalece, atualmente, no mundo inteiro, onde os gigantes — forças emocionais incontroladas e coletivas — comandam toda a terra. A sociedade é conduzida incons­cientemente por um princípio primitivo e arcaico.
Na cozinha do casal de gigantes encontrava-se um cachorro chamado Snati-Snati, que é o lado complemen­tar do herói. Historicamente, a cozinha é o centro da casa e, consequentemente, o local para os cultos domésticos. Os deuses do lar eram colocados sobre o fogão e o forno, e nos tempos pré-históricos os mortos eram enterrados sob eles. Como a cozinha é o local onde a comida é quimicamente transformada, ela é análoga ao estômago. É o centro da emoção no seu aspecto dessecante e consumidor e, considerando suas funções de iluminar e aquecer, demonstra que a luz da sabedoria sai do fogo da paixão. O fato de o cachorro estar na cozinha significa que ele representa um complexo cuja atividade está na esfera emocional.
Snati-Snati está guardado pelos gigantes tanto como uma espécie de segredo como uma espécie de filho. O cômodo proibido com o seu terrível segredo é um tema bastante amplo. Em tal cômodo, alguma coisa estranha e importante está guardada e isso significa que um com­plexo está reprimido e trancado — pois é algo incompatí­vel com a atitude consciente. Por isso mesmo o príncipe fica relutante ao aproximar-se do cômodo proibido, mas ao mesmo tempo está fascinado e quer entrar.
Normalmente, quando se entra nesse local, quem está aí escondido fica furioso—ou seja, o complexo se opõe à abertura da porta. A incompatibilidade coloca uma resistência de ambos os lados, a fim de o complexo não se tornar consciente, e os lados se repelem como duas partí­culas negativas de eletricidade. Pode-se dizer, então, que a repressão é um processo energético recíproco. (Muitos fenômenos psicológicos são mais bem explicados quando se assume que a vida psíquica tem características análogas aos fenômenos físicos. Jung examinou esta analogia em detalhes nos seus ensaios "On the Nature of Dreams" e "On Psychic Energy", ambos em The Estructure and Dynamics of the Psyche.)
Em nosso conto, o cachorro responde imediatamen­te à aproximação de Ring. Ele não é nem um monstro nem um deus, mas parece manter uma boa relação com o herói, apesar de estar distante dele. O fato de os gigantes não fazerem objeções ao pedido de Ring (isto é, de levar o cachorro, o que significa assimilar facilmente os conteú­dos representados pelo cachorro), demonstra que não há resistência da parte do inconsciente e, ainda, de que não há grande tensão entre a consciência humana e o mundo dos instintos. Isso dá uma certa ideia da época desse conto — a saber, logo após a conversão dos povos pagãos ao cristianismo — entre os séculos 11 e 14.
O herói e o cachorro viajam para o continente onde há o palácio de um rei e Snati-Snati diz ao príncipe que peça um quarto no palácio a fim de abrigá-los no inverno. Neste castelo moram o rei, sua filha e o pérfido Rauder (ou Raut). Pode-se notar que este rei não é o verdadeiro pai de Ring, mas o pai da anima e, ainda, nota-se a ausência da mãe — uma ausência que pode se relacionar com o fato de que tanto Ring como o cachorro estão sob a influência da mãe negativa. E mais, os tesouros preciosos que perten­ciam a esse rei não estão mais com ele, mas com uma cruel mãe gigante que vive com sua família numa montanha.
O ministro Rauder (também chamado de Rot ou Rothut — ou Red ou Red-hat — nomes que significam "vermelho" e "chapéu vermelho" e revelam a violência de suas emoções) é uma figura frequentemente encontrada nos contos de fada nórdicos (verificar os contos de Grimm: "Fernando, o Fiel", e "Fernando, o Infiel", onde a figura da sombra avisa o rei do que o herói, seu sósia, deveria fazer). Essa figura caluniadora na corte do rei é o aspecto destrutivo da sombra do herói—uma função perturbadora que semeia inimizade e discórdia. Sendo o príncipe Ring muito passivo e muito bom, Rauder representa suas emoções e impulsos obscuros ainda não assimilados — emoções como ciúmes, ódio e paixão assassina. Mas esse ministro diabólico tem uma função essencial, pois cria circunstâncias problemáticas nas quais Ring é capaz de sobressair-se; ele incita o príncipe a agir heroicamente. É desta forma que a sombra maligna tem um valor positivo e uma qualidade portadora de uma luz luciferina. Ela é a força que o dirige para o inconsciente, e que será maligna somente se a sua função não for compreendida, e que se apaga tão logo o príncipe ganha a princesa e o reino. O fato de a sombra perder seu poder assim que o herói triunfa é um dénouement (desfecho) típico. Ela seria supérflua se o herói fosse enérgico e comum ao realizar suas tarefas. Como Mefistófeles, Rauder é, acidentalmente, um instrumento de crescimento.
Neste ponto tocamos no problema do mal, agora visto sob o ângulo da natureza. Este conto, como tantos outros, demonstra que os incitamentos do mal oferecem-nos a oportunidade de desenvolvermos nossa consciência. É como se a natureza tomasse essa perspectiva, represen­tando-a dessa maneira. Quando formos capazes de enxer­gar nossas próprias mesquinharias, ciúmes, ódios, ranco­res etc., então isso poderá se reverter num bem positivo, pois em tais emoções tão destrutivas está armazenada muita energia vital, e quando se tem tal energia à dispo­sição, ela poderá ser encaminhada para fins positivos.
A característica dominante deste falso e asqueroso ministro é a inveja. E a inveja é uma compulsão mal com­preendida através da qual se atinge algum aspecto interior que fora negligenciado. Ela nasce da vaga percepção de uma deficiência do próprio caráter, uma deficiência que necessita ser remediada; ela aponta para uma falta que precisa ser suprida. O objeto da inveja incorpora o que poderia ter sido criado ou conseguido pelo indivíduo, e que não o foi, sendo então uma carência que pode ser superada.
A figura de Rauder apresenta pouco daquilo que é animal e instintivo e muito do que é sinistro e sagaz — qualidades da sombra que poderiam e deveriam ficar conscientes para o herói, ou seja, o conteúdo que deverá se fundir e integrar ao arquétipo do herói. Isso levanta a seguinte questão: até que ponto tais fatores negativos apoiam a posição do rei? Algumas vezes eles são incorpo­rados ao rei, o que faz com que em certos momentos ele mesmo imponha ao herói tarefas impossíveis. Isso signi­fica que o novo sistema, personificado pelo herói, precisa demonstrar que é melhor e mais forte do que o antigo; em outras palavras, que ele criará um estado melhor de saúde psíquica coletiva e propiciará uma vida cultural mais abundante. Esta é, pois, a justificativa secreta do velho rei ao impor tarefas difíceis a quem aspira herdar o reino. Pode-se observar essa luta de forças no início da era cristã, entre o cristianismo e os velhos deuses pagãos. Os primeiros cristãos se sentiam mais vivos, possuindo maior vitalidade, entusiasmo, uma atitude cheia de esperanças e eram ainda socialmente muito ativos; enquanto os pagãos es­tavam desiludidos e o seu espírito enfraquecido. E essas foram as razões para a propagação do cristianismo. As pessoas procuram sinais de vitalidade e juntam-se ao movimento que parece fazê-las sentir um bem-estar interior e exterior. É assim que um novo sistema demonstra sua superioridade e ganha a anima (a filha do rei) — em outras palavras, a alma do homem.
Servir na corte de um rei estrangeiro é uma imagem recorrente e o herói que faz isso é quase sempre o herdeiro do trono. Este tema aparece quando o princípio regulador da consciência coletiva torna-se opressivo e chega a hora em que deveria abdicar.
Olhando as tarefas que o herói recebeu, logo se per­cebe que elas são trabalhos civilizadores: domar ou abater animais selvagens, trabalhar na agricultura, construir uma igreja da noite para o dia etc. Uma das tarefas dessa história é o desmatamento, ou seja, abrir uma clareira que a luz da consciência alcance, penetre no inconsciente coletivo e suavize uma parte dele. Uma floresta é uma região onde a visibilidade é limitada, onde as pessoas se perdem, onde animais selvagens e perigos inesperados podem aparecer; assim como o mar, a floresta é um sím­bolo do inconsciente. Os homens primitivos viviam soltos pelas florestas e fazer uma clareira era um passo cultural. O inconsciente é uma natureza selvagem, que engole qualquer tentativa humana, como uma floresta com a qual o homem primitivo precisa estar sempre atento.
Além disso, a floresta, o mundo vegetal, é uma forma orgânica que extrai a vida diretamente da terra e transforma o solo. Através das plantas a matéria inorgâ­nica se torna viva. As plantas tiram sua alimentação em parte dos minerais contidos na terra e isso significa que esta forma de vida está intimamente relacionada com a matéria inorgânica; pode-se, então, traçar um paralelo em relação à vida do corpo e sua íntima conexão com o inconsciente.
A fim de cumprir tarefas tão difíceis, o príncipe Ring teve que pedir ajuda ao seu outro lado-sombra, o cachorro, que toma as iniciativas. Os dois tornam-se fortemente aliados e o herói adquire a ajuda dos instintos na forma da sombra positiva. Por outro lado, o instinto auxiliar dá ao herói o senso de realidade que ele precisa, ou seja, as raízes neste mundo.
A segunda prova de Ring é vencer touros selvagens. A imolação do touro era de importância primordial nos ritos de mistérios "mítricos", vestígios que ainda existem na Espanha e no México. Matar o touro é uma demons­tração da ascendência da consciência humana sobre as forças emocionais selvagens e animalescas. Hoje em dia, o touro não é dominante na psique inconsciente; ao con­trário, nossa dificuldade reside em encontrar um caminho de volta à vida animal instintiva, e nesta história o herói precisa afirmar seu autocontrole e suas qualidades viris antes que possa ocorrer a redenção do cachorro.
A etapa seguinte trata dos gigantes de quem o herói tem que reaver os tesouros que haviam roubado, sendo importante a ação ocorrer numa montanha. Nas religiões índias, a montanha relaciona-se com a Deusa-Mãe. Es­tando perto dos céus, ela é sempre um local para revela­ções, como a transfiguração de Cristo. Em muitos mitos da criação significa um local de orientação, como por exemplo, a aparição inicial de quatro montanhas nos quatro pontos cardeais. Os apóstolos e os líderes espirituais da Igreja eram cognominados "montanhas" pelos Padres da Igreja primitiva. Ricardo de São Vitor interpreta a montanha de Cristo como um símbolo de autoconhecimento que conduz à sabedoria inspirada dos profetas. Frequentemente a montanha é a meta de uma longa busca, ou o local de transição para a eternidade. O tema da montanha também denota o SELF.
Resumindo os aspectos do simbolismo da montanha que estão ligados a esta história, notamos que a montanha neste conto tem a ver com a deusa da lua na pessoa da mãe-gigante. A montanha também marca o lugar — o ponto na vida — onde o herói, depois de um esforço árduo (a escalada), orienta-se e ganha firmeza e autoconheci­mento, valores que desenvolve através do esforço de se tornar consciente no processo de individuação. Na rea­lidade, o aspecto relativo à mãe é o dominante, e com rela­ção ao problema apresentado por ela, o herói precisa fazer um tremendo esforço de se tornar consciente no processo de individuação, e precisa ser capaz de contar com seu instinto. Essa é a razão por que Ring deixa o cachorro guiá-lo.
O autoconhecimento é simbolizado pelos objetos de ouro, objetos preciosos que Ring encontra na montanha; este conhecimento é simbolizado também pelo sal que o príncipe derrama na sopa de cereais, induzindo uma sede terrível nos gigantes, a saída de cada um deles, um a um e a morte de todos.
O sal é uma parte do mar e tem em si o amargor inerente ao mar. A ideia de amargor é também associada com lágrimas, com tristeza, desapontamento e perda. Em latim "sal" também significa "espírito" ou "gracejo". O sal na alquimia é chamado de "sal da sabedoria", pois fornece ao indivíduo um poder espiritual penetrante e é um princípio místico do mundo, como o enxofre e o mercúrio. Então, tanto a sabedoria, como uma tristeza pungente, uma opinião cética, ou a ironia, todas podem ser simboli­zadas pelo sal. Alguns alquimistas receitam o sal como sendo o único meio de combater o demônio. Por outro lado, na alquimia o sal é considerado como o princípio de Eros, e é chamado de "aquele que abre e une". A partir dessas considerações pode-se concluir que o sal simboliza a sabe­doria de Eros, sua amargura junto ao seu poder de vida — a sabedoria adquirida pelas experiências dos sentimentos.
No presente conto o princípio de Eros conduz o herói na sua busca e o sal serve para isolar os gigantes e torná-los vulneráveis. O herói tem uma atitude espiritual que é uma fonte mais rica do que os espíritos vagarosos dos gigantes.
Se resumimos os aspectos de sombra desse conto, vemos que existem duas figuras de sombra — o cachorro e o Rauder — um sósia animal e um sósia humano malicioso — uma sombra positiva e outra negativa. O cachorro está intimamente ligado ao herói, enquanto Rauder está separado e é transitório. Os dois desempe­nham seus respectivos papéis até o momento em que o herói se une com sua anima.
Não podemos negligenciar o fato de que o cachorro é uma parte desconhecida da psique humana, uma parte que se expressa melhor através da imagem de um cachor­ro (como todos os símbolos, ele é a sua melhor expressão). Se nós quisermos circunscrever seu significado, devemos embrar que na Antiguidade o cachorro era visto como o guardião da vida eterna. Por exemplo, Cérbero de Hades e as imagens de cachorro nos antigos túmulos romanos. Na mitologia egípcia, o deus Anúbis com sua cabeça de chacal é um guia para o mundo inferior; diz-se também que ele juntou o corpo desmembrado de Osíris. Os sacer­dotes que faziam os rituais da mumificação se vestiam à semelhança de Anúbis. Na Grécia, o cachorro pertencia ao deus da cura, Esculápio, porque ele sabe se curar sozinho comendo grama. O cachorro, via de regra, tem uma relação muito positiva com o homem: ele é um amigo, um guardião e um guia. Mas ele era também muito temido nos tempos antigos, pois, sendo portador da raiva e da loucura (hidrofobia), viam-no como aquele que traz doenças e pestes. De todos os animais, o cachorro é o que melhor se adapta ao homem, que mais corresponde aos seus sentimentos, imita-o e compreende o que é esperado dele. É a essência do relacionamento.
Snati-Snati, na verdade, não é um cachorro. No final da história ficamos sabendo que ele é um príncipe, também chamado Ring, e que também esteve sob o poder da mulher-gigante aniquilada por eles. Snati-Snati, por sua vez, não podia ser liberto até que dormisse aos pés da cama do príncipe que tinha seu nome. Então, pode-se dizer que este cachorro representa um impulso instintivo que mais tarde se torna uma qualidade humana. Pode-se também supor que este impulso animal, que necessita e quer ser integrado, contém um traço oculto do herói. O cachorro é o lado complementar instintivo do herói, cuja assimilação traz a própria realização na vida tridimen­sional.
Em outros contos a sombra, retratada na figura de Rauder, aparece, às vezes, como os dois irmãos calunia­dores do herói; esses irmãos representam tendências de um desenvolvimento unilateral muito "espiritual" ou muito "instintivo". Rauder tem uma natureza ciumenta com a consequente tendência perigosa do estreitamento unilateral. Ele simboliza a possessividade apaixonada, mas tem uma função positiva enquanto impõe tare­fas impossíveis ao herói, e, quando a anima chega, ele precisa sair.
Rauder tenta matar o herói como última tentativa e então é atacado pelo cachorro — por uma reação instin­tiva, que o desarma e derrota seus propósitos. Na tenta­tiva de assassinar Ring, Rauder expõe sua mão — e o cachorro morde, arrancando-a. Quando se lida com forças malignas, a tolerância é de grande valia. Aquele que consegue se manter sem perder as estribeiras é o que vence. Existem contos que falam do duelo entre o herói e o espírito do mal, e o primeiro que perder o controle de suas emoções perde a sua vida. Descontrolar-se significa sempre um rebaixar da consciência, um lapso que leva às reações primitivas ou mesmo animais.
Rauder é terrível enquanto representa a astúcia humana contra Ring, e, então, sua paixão animal pela destruição pura sobrepujou-o: esta é a razão pela qual ele foi aniquilado pelo animal. Ele representa, de certa for­ma, o mal não assimilado na psique que resiste à subli­mação e que precisa ser eliminado. Um alquimista obser­vou que na prima-matéria existe uma certa quantidade de terra damnata (terra danada) que impede todos os esfor­ços para a transformação e precisa ser retirada. Nem todos os impulsos obscuros se deixam levar pela redenção; alguns, embebidos do mal, não podem ser suavizados e precisam ser severamente reprimidos. O que é contra a natureza e contra os instintos precisa ser estancado por uma força essencial e erradicado. A expressão "assimi­lação da sombra" tem significado quando aplicada aos aspectos infantis, primitivos e subdesenvolvidos da natu­reza do ser humano, sombra essa retratada na imagem de uma criança, de um cachorro ou de um estranho. Mas existem sementes mortais que podem destruir o ser humano e que necessitam de resistência. E a presença delas significa que a pessoa precisa ser dura de tempos em tempos, não aceitando tudo que vem do inconsciente.
Snati-Snati se tornou um príncipe e pode-se indagar por que ele havia sido transformado em cachorro. Isso tem sentido se se considerar a natureza dupla do instinto, que é um fenômeno ambíguo. Os biólogos entendem-no como uma forma de comportamento animal, significativo mas não reflexivo, e, ainda, como um padrão inato do comportamento que somente os animais superiores são capazes de modificar. Esse padrão consiste em dois fato­res: a atividade física e a representação ou imagem desta atividade, sendo esta última necessária para a atualiza­ção da primeira. A imagem trabalha como um agente catalisador da ação física e ao mesmo tempo revela o significado da ação. Normalmente, os dois fatores coexis­tem e trabalham em conjunto, mas eles podem se encon­trar separados. Se uma outra imagem substituir a origi­nal, o comportamento instintivo pode se atar à nova ima­gem. As galinhas, por exemplo, chocadas em incubadei­ras, fazem sua encenação amorosa aos tamancos de ma­deira usados pelas pessoas que cuidam delas, porque os tamancos foram "gravados" com a imagem de mãe. Essas imagens ou quadros são o que nós chamamos de arquétipos.
Snati-Snati, portanto, é a representação psíquica na qual o caminho da auto-realização aparece primeira­mente como um instinto, mas que contém em si o lado humano complementar. O fato de esse impulso tomar a forma de cachorro deriva de um falso conceito de individu­ação, uma interpretação coletiva errônea mantida pelo consciente; é por isso também que aparecem os castigos e a maldição da madrasta.
Toda época histórica apresenta convicções coletivas generalizadas acerca do processo de individuação. Por exemplo, para as pessoas da Idade Média, o modelo para toda sua vida e para suas condutas interiores deveria estar pautado na vida de Cristo, sendo isso o que se chama de individuação. Hoje em dia, o pensamento corrente é que as pessoas são sadias, satisfeitas e completas quando os instintos físicos são normais, especialmente o instinto sexual. De acordo com os freudianos, a raiz de todo mal é a repressão sexual — se as funções eróticas tomam seu curso natural, então todas as coisas são resolvidas. Os devotos dessa crença colocam toda sua energia em função desse propósito, mas frequentemente acabam percebendo que eles não podem se livrar das próprias inibições através desse caminho. Exatamente por ser superestimada, a espontaneidade não pode acontecer naturalmente. As pessoas carregam o instinto com expectativas psicológi­cas e colocam a ideia mística da redenção num fato biológico. Então, algo que não pertence à esfera animal é projetado nela. Dentre outros exemplos desta espécie de confusão está a ideia que certas pessoas têm de que o significado pleno de suas vidas é conquistado quando o comunismo ou qualquer outra ordem social se instale no seu país, realizando seus desejos e ideais mais elevados. Outro exemplo, ainda, é o ideal guerreiro de algumas culturas, como foi revivido pelo nazismo. Os nazistas puseram o ideal da individuação em seus programas políticos, mas as falsas interpretações coletivas perver­teram-no, retirando-lhe toda a alma. A juventude nazista deu ao país devoção, força intensa e vontade de se sacri­ficar porque, na verdade, ela estava identificada com o que chamamos de individuação. Idealismo e desejo de sacrificar-se são qualidades admiráveis em si mesmos, porém lhes foi dada uma falsa direção. Porque o millenium é originalmente um símbolo do SELF, ele se apossou da imaginação dos nazistas. Tomemos, por exemplo, a ideia incrível das mulheres tendo filhos para o Führer. A ideia subjacente era que a produtividade feminina deveria estar subordinada a um princípio espiritual e, portanto, as mulheres não deveriam produzir filhos como animais, mas sob a égide de um princípio regulador de vida. Mas isso foi falseado pela concepção errônea do desenvolvi­mento espiritual que, colocando muito peso no materia­lismo, levou as mulheres à própria degradação.
Quando os fatores simbólicos são reprimidos eles encobrem os instintos e por isso precisam ser separados, de modo que os instintos genuínos possam funcionar sem ser carregados de elementos que lhes pertencem. Como eu já disse, quando as pessoas enfatizam por demais a sexualidade, colocam algo na esfera animal que não pertence a ela e um verdadeiro esforço precisa ser feito para integrar a sombra a fim de permitir que os instintos funcionem de um modo harmonioso.
Se demarcarmos o caminho do príncipe numa espé­cie de mapa, observa-se que sua rota é circular — como um anel — pois a quarta estação é secretamente idêntica à primeira, pois ambas são regidas pela madrasta.
O herói, em última análise, termina no ponto em que ele partiu, mas no seu circuito ele ligou-se ao cachorro (2º Ring), à princesa e ao rei. Todo o processo é um contínuo somar, um processo de complementação crescente, ordenado como um mandala. Esse é o modelo típico dos contos de fada.
O caminho dessas quatro estações conduz a um aprofundamento cada vez maior no inconsciente. Entre os estágios 2 e 3, o herói é quem mostra o caminho, mas entre os estágios 3 e 4 é o cachorro quem guia o herói. Na quarta estação, todos os elementos diabólicos desaparecem: o casal de gigantes da ilha morrem de velhice, os outros gigantes, inclusive a gigante-bruxa, são mortos e Rauder enforcado. Os estágios um e quatro têm uma identidade secreta, pois tratam do mesmo complexo psíquico em diferentes níveis. A corça, a bruxa da praia e a mulher-gigante são, no fundo, uma única e mesma figura — ou seja, aquela que persegue os dois Rings.
O quarto estágio também preenche o que estava latente: casamento com a anima e a emancipação da sombra sob a forma de cachorro (depois de ter sido liberto da cozinha proibida). Somente depois de atingir o SELF é que a sombra e a anima SELF realmente se inte­gram, pois é só então que a situação torna-se estável. A estrutura do quarto estágio aparece com frequência nos contos de fada que tratam de personagens da realeza e esses contos; geralmente, concluem com um grupo forma­do de 4 pessoas.
Este conto de fada na sua totalidade representa um processo energético de transformação interior do SELF, e pode-se comparar isso às transformações que aconte­cem num átomo ou no seu núcleo.
O desafio da anima
A princesa enfeitiçada
"Um homem tinha um filho chamado Pedro que não queria mais permanecer em casa. Então, pedindo sua parte da herança que consistia em vinte xelins, partiu. No seu caminho pelos campos, encontrou um homem morto no chão, que não havia sido enterrado por ser pobre. Pedro, sendo um rapaz de bom coração, gastou os seus vinte xelins providenciando um enterro decente para o pobre homem.
Continuando seu caminho, Pedro encontrou um estranho com o qual decidiu prosseguir a viagem. Eles chegaram a uma cidade onde tudo estava coberto de preto, como um sinal de luto pela princesa que havia sido enfeitiçada por um espírito da montanha que era muito mau. Ela costumava propor três enig­mas para seus pretendentes, e se eles errassem qualquer um deles, ela os matava. Nenhum homem, até então, havia conse­guido redimi-la, respondendo suas questões e, então, muitos haviam perdido suas vidas. Pedro decidiu tentar. Seu com­panheiro, que na verdade era o espírito do homem morto encon­trado e enterrado por Pedro, ofereceu-lhe ajuda. Ele colocou asas nas costas de Pedro, deu-lhe uma barra de ferro e disse-lhe que ele deveria voar atrás da princesa naquela noite, segui-la para onde fosse, batendo-lhe com o vergalhão. E, ainda, o mais importante, que Pedro deveria memorizar tudo da conversa entre a princesa e o espírito da montanha, do qual era cativa.
Depois de anoitecer, Pedro voou até o beirai da janela do quarto da princesa e quando ela saiu voando através da janela, ele a seguiu, atingindo-a com o vergalhão. Eles chegaram a uma montanha bem alta que se abriu, e ambos entraram. Havia um grande pátio de entrada onde Pedro avistou algumas estrelas esparsas na escuridão acima e ainda um altar próximo à entrada. A princesa logo correu para os braços do espírito da montanha que tinha uma barba branca como a neve e os olhos vermelhos como dois pedaços de carvão incandescente. Ela, então, contou-lhe que um outro pretendente se apresentaria no dia seguinte e que ela precisaria de um enigma para confundi-lo. O espírito da montanha praguejou dizendo que ela precisava matar esse homem. 'Quanto mais sangue humano você beber, mais você se tornará minha', disse ele, 'e mais pura você se torna diante dos meus olhos. Pense no cavalo branco de seu pai e peça ao seu pretendente que lhe diga o que você está pensando.' Depois disso ela voltou para seu castelo e foi dormir.
Na manhã seguinte Pedro se apresentou e encontrou-a sentada no seu sofá, bastante melancólica, mas com uma aparência doce e bela. Quem a visse assim, sequer poderia imaginar que ela já havia mandado matar nove homens. Ela, então, perguntou a Pedro: 'No que eu estou pensando?', e ele, sem hesitar, respondeu: 'No cavalo branco de seu pai'. Ela, empalidecendo, ordenou-lhe que voltasse no dia seguinte para a próxima adivinhação.
Naquela noite, novamente, Pedro seguiu-a, mas logo após eles terem entrado na montanha, ele reparou que no altar havia um peixe espinhoso e que a lua brilhava acima dele. Desta vez a princesa estava pensando na espada de seu pai, e Pedro, novamente, deu a resposta sem hesitar.
Na terceira noite o companheiro de Pedro equipou-o com uma espada e dois vergalhões. Ele, ao entrar na montanha, viu que sobre o altar havia uma roda de fogo além do peixe espinhoso e acima o sol brilhava tanto que ele teve que se esconder atrás do altar para não ser visto. Ele ouviu, então, o espírito da montanha decidir que a adivinhação teria a ver com a cabeça do espírito: 'Pois nenhum mortal poderá ser capaz de pensar isso', assegurou ele à princesa. Mas, quando ela saiu, Pedro rapidamente decapitou o espírito da montanha com sua espada, levando a cabeça consigo. Então, ele seguiu a princesa atingindo-a com os dois vergalhões.
Na manhã seguinte, quando ela lhe perguntou no que estava pensando, Pedro rolou a cabeça do espírito da montanha até seus pés, dizendo: 'E nisto que você está pensando'. A princesa, perplexa, num misto de terror e alegria, desmaiou e quando recobrou os sentidos consentiu em casar-se com esse seu pretendente.
No dia do casamento o companheiro de Pedro advertiu-o, dizendo que ele deveria preparar uma grande tina cheia de água, e levá-la para o quarto naquela noite. — 'E quando a noiva acordar, mergulhe-a dentro da tina', disse o companheiro, 'e então ela tornar-se-á um corvo. Coloque o corvo novamente na água, e ela se tornará uma pomba. Mergulhe a pomba na água, e, então, sua noiva sairá na sua forma verdadeira, tão suave quanto um anjo.' Em seguida, o companheiro desapareceu.
Pedro agiu como lhe foi dito, redimindo a princesa e mais tarde tornou-se rei."
(Deutsche Márchen seit Grimm, p. 237.)
Numa variação norueguesa (Norweigische Màrchen) ocorrem substituições do seguinte tipo: o homem cujo enterro é providenciado pelo herói é um mercador de vinho que tinha por hábito vender seu vinho diluído em água. O espírito da montanha é um troll (espécie de gnomo ou duende dos países escandinavos), e a princesa vai até ele toda noite montada num bode. Ao invés de adivinhar, o herói precisa produzir os objetos que ela pensa, que são uma tesoura, um carretei de ouro e a cabeça do troll. Antes de chegarem ao reino da princesa, o herói e seu companheiro têm que vencer três bruxas, e então cruzar um rio. O companheiro-fantasma faz possí­vel a travessia do rio, jogando o carretei de ouro para a outra margem, que volta por si mesmo. Neste caminho fios dourados vão sendo deixados, até formar uma ponte, forte o suficiente para que se possa atravessar. Final­mente, depois de conseguir a princesa, o herói precisa banhá-la no leite e surrá-la até que ela perca sua pele de troll; se ele assim não o fizer ela o assassina. O herói, por sua vez, faz um trato com seu companheiro pela ajuda que este prestou, prometendo que ele dividiria meio a meio seus ganhos. Então, após cinco anos seu companheiro retorna para ajustar as contas e pede ao herói que divida seu filho ao meio. Mas quando ele vê que o herói está pronto para realizar o sacrifício, ele perdoa a dívida, dizendo ao herói que ele deve voltar aos céus. O cadáver que o herói encontra é em geral de algum pobre que morreu endividado, de um criminoso ou suicida. No conto paralelo a sombra é humana ou espiritual e não aparece na forma de animal como na história do príncipe Ring — ou seja — ela é um pessoa moralmente inferior, um tra­paceiro que diluía o vinho em água.
Na versão principal, a sombra não tinha energia vital — dinheiro é energia — e por isso é pobre e precisa se reencontrar. Ela representa uma parte não vivida do herói, qualidades potenciais que não entraram ainda no seu caráter e nas suas ações. Complexos autônomos geralmente se desenvolvem sem que o ego suspeite de sua existência e, mais cedo ou mais tarde, eles são constelados e aparecem, a princípio, de uma forma bastante desagra­dável.
Se alguém fosse o Pedro da história poderia conside­rar que ele não era o responsável pelo cadáver, mas isso não é verdade em se tratando da própria sombra. Somente uma atitude consciente e responsável transforma a sombra num amigo. Dar o dinheiro para o enterro significa que houve uma preocupação com a sombra e, também, que se desprendeu energia a seu favor. Para aqueles que se recusam a fazer isso a sombra é enganosa e vive fazendo trapaças — como misturar água no vinho. A natureza desta sombra é desonesta: ela coloca simples água no lugar de algo mais valioso e mais caro que é o vinho, procurando obter mais por menos. O seu crime está em minimizar o esforço.
Na antiguidade beber vinho não diluído em água era considerado um ato de arrogância, exceto nos rituais dionisíacos, onde significava uma exaltação espiritual. Mas essa prática estava dentro de um cerimonial e era exceção, não se aplicando ao consumo diário. No simbolismo cristão da missa o vinho representa o sangue de Cristo, ou mais especificamente, a natureza divina do Cristo, a água a sua natureza humana e o pão o seu corpo. Eu menciono isso somente para mostrar que, historica­mente, o vinho era considerado como algo espiritual e a água algo de natureza comum.
A falha da sombra é que ela confunde o divino e o humano no dia-a-dia, misturando o que deveria ser dis­criminado. O ato de misturar pode ser perdoado, mas a desonestidade consiste em querer passar esse vinho como genuíno e inalterado. As pessoas que se deixam levar pela própria sombra enganam a si próprias pensando que seus motivos são altamente morais, enquanto que, de fato, dissimulam os seus fortes desejos de poder. A sombra mistura as coisas de uma maneira imprópria, como, por exemplo, fatos e opiniões. As pessoas chegam mesmo a se enganar pensando que fantasias sexuais são experiências místicas. Pode-se chamar uma coisa do nome que se quer, mas não se pode pretender que um elemento físico seja espiritual. Se uma pessoa resolve unir água e vinho, deveria fazê-lo conscientemente e não de uma maneira hipócrita. A sombra se aproveita de uma boa ideia e concretiza-a num nível arcaico e falso. Quando alguém ignora a própria sombra, ela falsifica sua personalidade.
Obter mais com menos tem suas implicações psico­lógicas, como evitar o difícil caminho individual. Os homens, frequentemente, têm em si mesmos um canto sombrio no qual eles arranjam seus negócios de uma maneira fácil, e as mulheres apaixonadas ou ciumentas sabem fazer cenas para obterem o que querem. Tais comportamentos são falhas humanas comuns, pois a sombra é um companheiro inferior e age desta maneira; ela não vai mesmo se esforçar. Ser capaz de não trilhar o caminho mais fácil é um sinal de autodisciplina e nível cultural elevado.
Na situação inicial desse conto há também falta de energia psíquica e isto cria espécie de avidez que leva as pessoas a se enganarem. Quando alguém está realmente fascinado pela vida interior, não tem tempo nem energia para arquitetar manobras fraudulentas ou ser calculista. Por outro lado, enquanto a anima não for redimida, a vida não flui, e isto enclausura a energia dentro de tendências mesquinhas e malévolas.
Sendo a sombra uma parte rejeitada e não compre­endida da psique, ela se mata. Se alguém vai muito longe na sua repressão da sombra e se ainda for muito severo e intransigente por um longo período de tempo, o complexo não vivido morrerá. Este é o objetivo da ascese. Quando o herói enterra o cadáver — isto é — coloca-o no nível da realidade, a sombra desaparece como cadáver e reaparece como um fantasma. Ela retorna com o aspecto de um espírito; permanece ainda o problema da sombra, porém num nível melhor.
A natureza do herói, também, revela a natureza da sombra. Pedro não é um filho do rei, mas um rapaz comum, um anônimo. (Frequentemente este tipo de herói não tem nem mesmo um nome.) Ele representa o homem mediano que também é um aspecto do SELF—o Antropos — o ser humano na forma comum, ainda que eterna. (Compare com Cristo, que também é chamado de Knecht na Alemanha, o que significa "Servo".) A figura da sombra tem uma função compensatória que é a complementação do herói. O caminho desse homem comum, Pedro, o conduz da forma comum para uma forma especial e nobre, cujo significado já foi acima discutido.
A realização do SELF pode ser experienciada atra­vés de classes de heróis marcadamente diferentes, como o príncipe ou o rapazola comum. Pode-se observar, por exemplo, que os jovens frequentemente se identificam interiormente com um "príncipe" ou com uma criatura sobrenatural. Muitos outros querem ser comuns, antes de mais nada, e ser como todo mundo é. Cada nível deseja secretamente o outro e as duas formas na verdade são dois lados do Antropos, do Homem. O inconsciente insiste em ambos os lados, pois, paradoxalmente, individuação significa tornar-se mais individual e, ao mesmo tempo, mais humano.
O herói aparece, quase sempre, no papel de um desertor. Ele deixa a ordem coletiva e se envereda num destino especial. Em nossa história a sombra se transfor­ma num espírito do outro mundo. Ela é a companheira-serviçal e através de suas habilidades e conhecimento contorna a ingenuidade de menino do herói. Sendo o herói dessa história de nível muito baixo, a sombra é espiritual; Ring, sendo um príncipe e, portanto, de nível mais alto, possui uma sombra instintiva.
O herói dá toda sua herança para o enterro. Isso está muito além do que se pode esperar de uma pessoa e também muito além das possibilidades do próprio herói, constituindo, portanto, uma atitude tipicamente heroica. Foi dado à sombra um enterro e a partir daí ela cessa de fazer exigências sobre a vida humana. Depois disso ela volta mais à vida, mas é transformada em espírito no Reino onde existe o descanso.
Prover o enterro para a sombra tem duplo aspecto: o herói dá dinheiro (isto é, energia) e livra-se da pertur­bação da sombra. Para reconhecer a sombra é preciso estar preparado para colocá-la no seu lugar. Neste conto é permitido à sombra manter seus propósitos, advindo disto sua espiritualização. Quando se tem somente meia consciência da sombra, ela é perturbadora e indetermi­nada (ou seja, não é peixe nem pássaro). A espiritualiza­ção ocorre porque a sombra companheira, recém-adqui­rida, é instrumental, realizando as tarefas, tornando-se aquela que arruma a sorte, o destino. Esse papel aparece claramente em Fausto. Somente quando a sombra é projetada, o indivíduo torna-se real. A sombra coloca o homem em situações imediatas do aqui e agora, e isto cria a biografia real do ser humano, que está sempre inclinado a acreditar que ele é somente o que ele pensa que é. E a biografia criada pela sombra que realmente é válida.
Somente mais tarde, quando a sombra foi de algu­ma maneira assimilada, o ego pode contribuir para a complementação do seu próprio destino. Então um outro conteúdo do inconsciente, o SELF, tem a função principal de arrumar o destino e é por isso que posteriormente em nossa história a sombra companheira desaparece.
Este herói está completamente sem destino. Ele não tem compromissos em casa e nenhum destino específico fora dela. Esta é uma boa pré-condição para uma ação heroica—um ponto que é frequentemente enfatizado. Ele está cansado de casa, pega sua herança e sai pelo mundo — tudo isso indica que a energia já deixou o consciente e reforçou o inconsciente. Só se pode descobrir o mistério do inconsciente como uma realidade quando se é despretensiosamente curioso, e não quando se quer atre­lar força e poder em algum planejamento prévio do cons­ciente.
Tão logo o primeiro passo é dado com relação ao problema da sombra, a anima é ativada. Na versão norueguesa ela tem uma pele de troll, ou seja, ela repre­senta um nível de vida mais primitivo e mais antigo e tem um caráter pagão. Frequentemente, no mito nórdico, a anima aparece como troll e sobrenatural, representando então um desafio à vida moral cristã, tradicional e segura. A fim de ampliar um pouco mais este aspecto da anima, vamos deixar de lado, por ora, essa nossa história e considerar dois contos escandinavos. A próxima história refere-se a um homem que se sai mal por recusar rela­cionar-se com sua anima pagã.
A igreja secreta
"Um mestre-escola de Etnedal gostava de passar seus dias de folga, suas férias, sozinho numa cabana nas montanhas. Uma vez, lá estava ele quando ouviu sinos de igreja, não havendo nenhuma igreja por perto. Ele estava admirado quan­do viu um grupo de pessoas endomingadas passando pela frente de sua cabana por um caminho que ele nunca tinha estado anteriormente. Ele os seguiu e chegou à pequena igrejinha de madeira, que também era nova para ele. Ficou muito impres­sionado com o sermão do velho pastor, mas notou que o nome de Jesus Cristo não fora mencionado e, ainda, que não houve a bênção final.
Depois da cerimônia o mestre-escola foi convidado a ir à casa do pastor. Entre a conversa e uma xícara de chá, a filha do pastor disse-lhe que, estando seu pai bastante velho, perguntava-lhe se ele aceitaria ser seu sucessor quando ele morresse.
O mestre-escola, então, pediu que lhe dessem tempo para pensar no assunto. A moça respondeu que ela lhe daria um ano inteiro para isso. Tão logo ela assim falou tudo desapareceu e ele se encontrou novamente no bosque e na cabana que conhecia. Ficou perplexo e pensativo por alguns dias e, então, simples­mente, o assunto sumiu de sua cabeça.
No ano seguinte lá estava ele na sua cabana da monta­nha, quando notou que do seu telhado estava vazando água. Subiu com seu machado para consertá-lo. De repente, lá de cima, percebeu que alguém se aproximava pelo caminho em frente à cabana. Era a filha do pastor. Vendo-o ela lhe perguntou se ele aceitaria ser pastor; ao que ele respondeu: 'Eu não posso aceitar isso por Deus e por minha consciência, então preciso recusar'. Neste exato momento a moça desapareceu e ele inadvertidamente deixou o machado cair no seu próprio joelho, tornando-se coxo para o resto de sua vida."
(Nordische Mãrchen, vol. II. Jena Diederichs, 1915, p. 22.)
Este conto mostra que a repressão da anima por razões convencionais resultam numa real automuti­lação psíquica. Se se sobe muito alto (no telhado) perde-se o contato natural com a terra (a perna). Por outro lado, a figura da anima é, nessa história, a de um demônio pagão.
Um outro exemplo que ilustra as consequências desastrosas resultantes de um modo desapropriado de se lidar com o mesmo problema é o que se segue:
A mulher do bosque
"Uma vez um lenhador viu no bosque uma bela mulher que estava costurando, quando seu carretei rolou sobre seus pés. Ela pediu que ele apanhasse e lhe entregasse o carretei e ele assim o fez, embora soubesse que isso significava submeter-se aos seus encantos. Na noite seguinte, embora ele tivesse tomado o cuidado de dormir entre seus companheiros, ela veio e levou-o cativo. Eles foram para as montanhas onde tudo era calmo e bonito.
Então, ele foi tomado de loucura. Um dia, quando a "mulher-troll" trouxe-lhe algo para comer, ele reparou que a mulher tinha um rabo de vaca; ele deu um jeito para que ela prendesse sua cauda na fenda de um tronco de árvore — e escreveu o nome de Cristo na madeira. Ela fugiu num piscar de olhos e seu rabo ficou no tronco e ele, então, viu que sua comida era simplesmente ração de vaca.
Tempos depois ele deparou com uma cabana no bosque e lá viu uma mulher e uma criança, ambas com rabo de vaca. A mulher falou à criança — 'Vai e traga para seu pai um copo de cerveja.' O homem ao ouvir isso fugiu em disparada, horroriza­do. Ele retornou são e salvo para sua cidadezinha, mas ficou um pouco esquisito pelo resto de seus dias."
(Ibid, p. 194.)
Este conto mostra o perigoso feitiço que a anima exerce sobre o homem, cujo ego e força de vontade são fracos. Segui-la significa perder o contato humano e voltar ao estado selvagem e reprimi-la significa uma perda do espírito e da energia.
O mesmo tipo de figura perigosa da anima aparece na história dos índios sul-americanos da tribo Cherente.
A estrela
"Um jovem que vivia na cabana dos solteiros toda noite olhava para uma estrela brilhante e suspirava dizendo: 'Que pena eu não poder colocá-la na minha botija e assim poder admirá-la o dia inteiro'. Uma noite ele acordou de um sono profundo em que sonhava com a estrela e viu, ao lado de sua cama, uma linda moça de olhos magníficos, com olhar profundo e penetrante. Ela, então, contou-lhe que era a estrela que o encantara, atraindo-o todas as noites. Disse, também, que possuía o dom de se tornar pequenina o suficiente para caber na sua botija, assim eles poderiam ficar sempre juntos.
Eles passaram a noite juntos, mas, de manhã, enquanto ele tentava colocá-la no seu frasco, os olhos da moça brilharam como os de um gato selvagem. O moço entristeceu-se muito e seus temores foram concretizados quando um dia ela lhe disse que teria de partir. Ela tocou uma árvore com uma varinha mágica e esta cresceu bem para o alto, até as nuvens. Em seguida a moça começou a subir para o céu. Contra a sua própria vontade, o moço seguiu-a. Embora ela suplicasse que ele não fizesse isso, ele lá foi e, bem no alto da árvore, descobriu uma grande festa com muita dança. Ele ficou estupefato ao observar esqueletos dançando em círculos e, confuso, zarpou, fugindo. A moça novamente apareceu e disse-lhe para tomar um banho de purificação, mas foi em vão. Quando ele tocou o chão, teve uma dor de cabeça violenta e logo depois morreu."
(S. Am. Indianische Marchen, Cherente, p. 206.)
Uma história deste tipo permitiu a estes índios se dar conta do terrível perigo de fascinação que podem apresentar as imagens arquetípicas do inconsciente cole­tivo, pois elas têm o poder de tirar o indivíduo do contato com a realidade. Eles descobriram que apesar das estre­las parecerem prometer a felicidade aos homens, não se deve procurá-las no céu.
A anima é retratada tanto como um espírito mira­culoso, como um animal feroz. Ela frequentemente apa­rece como horrível e mortal, e quando isso acontece é preciso manter o consciente longe do inconsciente. É por isso que, a título de advertência, o inconsciente se mani­festa como um perigo mortal. Este é um tema comum nos contos primitivos. Então o herói precisa se guardar e não se expor a conteúdos venenosos e nem se entregar a qualquer coisa que exerça uma fascinação estranha sobre ele, nem às fantasias interiores, nem a qualquer perigo ou fascínio que lhe venha de fora. Então, por vezes, espe­cialmente nos primórdios das culturas, a anima tem de ser reprimida, seus poderes reduzidos e confinados. Isso corresponde à repressão e à desvalorização de um com­plexo; e por isso a anima aparece como um animal malicioso, de olhos reluzentes. Sua reação é evocada pela atitude consciente do herói, retornando à noite sua forma divina.
A religião cristã também se utiliza da ideia do frasco para aprisionar a anima, para limitá-la e conter suas forças explosivas. Isso ocorre especificamente no culto da virgem, onde existe uma "nave" para a imagem da anima e da mãe do Homem. Se por um lado esta restrição consciente é bastante necessária, por outro há perigo em prolongá-la além do necessário. É uma questão de sentir e de perceber quando se deve diminuir essa resistência, pois de outra forma o inconsciente fica com uma super-reserva de poderes explosivos.
No conto da "Princesa enfeitiçada" o herói precisou investir e fazer algumas tentativas antes de atingir a anima, e na versão alternativa o herói e seu companheiro são perseguidos por três bruxas. Normalmente as bruxas são as manifestações iniciais da anima e, frequentemente, lembram a imagem da mãe, como a madrasta do príncipe Ring. O companheiro de Pedro lança um carretei de linha dourada através do rio para formar uma ponte. Depois, os dois têm que atravessar correndo e desman­char a ponte para impedir que as bruxas os alcancem. As bruxas, ao tentarem atravessar a ponte, caem na água e morrem afogadas. Esta linha dourada é o elo secreto com aquilo que é significativo no inconsciente. Ela é o fio invisível que une as coisas; é a linha do destino tecida por nossas projeções inconscientes.
Nesta história o companheiro é um ser sobrenatural — guia do destino, e é ele quem tem a linha e quem a joga. O carretel indo e voltando, como uma lançadeira de tear, balança num estágio perigoso entre o presente incerto e o futuro imediato, até que a ponte aparece como suficien­temente forte. Desta forma pode-se fazer projeções à von­tade, o que possibilita ao indivíduo superar sua descone­xão. Ocorre, normalmente, uma oscilação entre opostos até que a estabilidade seja alcançada, e quando esta se dá pode-se atravessar o rio, ou seja, pode-se mudar uma ati­tude interior.
O herói chega na cidade que está de luto por causa da princesa enfeitiçada e cativa; fica sabendo que diversos príncipes já acorreram tentando salvá-la. A anima está sob o domínio de um feitiço e presa nesta cilada, porque um processo do inconsciente não havia sido compreendido. Essa é a razão dos seus enigmas aos quais é preciso ime­diatamente responder. Os enigmas da anima significam que ela mesma não consegue se entender e que ainda não encontrou o seu lugar apropriado dentro de todo o sistema psíquico. Significa, também, que ela não pode resolver esse problema por si mesma e que necessita da ajuda da consciência. Por outro lado, o herói se encontra no mesmo estágio pois ele também não encontrou ainda o seu lugar e também não se conhece. Então o enigma é algo que diz respeito a ambos, alguma coisa que eles têm que resolver juntos. Este é o enigma do relacionamento correto. O enig­ma nos faz lembrar a Esfinge, que é meio humana e meio animal, como é a moça da versão norueguesa que possui a pele de troll. A questão clássica da Esfinge no mito de Édipo trata da existência do homem, que é um grande mistério até hoje não desvendado por nós.
Quando o problema da anima não é compreendido, a anima, como a princesa, é uma criatura temperamen­tal, que fica amuada tornando-se meio quieta e rabugen­ta, ou feroz, tornando-se raivosa e histérica. A anima possui um problema moral, embora ela mesma seja amoral. Pode-se contar com ela para os problemas mais confusos e intrincados, mas ela só é liberada quando o herói satisfaz seus objetivos e, então, ela o guia para um nível de consciência ainda maior.
O companheiro-sombra equipa o herói com asas, de tal forma que ele possa voar no mundo da anima. Isso significa uma nova atitude consciente, uma certa espiri­tualização, pois as asas pertencem mais a um ente da fantasia do que a um ente terreno. A habilidade para se embrenhar no reino da fantasia é essencial para o encon­tro da anima. A pessoa deve libertar-se da realidade mundana, ao menos enquanto estiver tentando fantasiar. É necessário também um certo distanciamento, a observação objetiva com olhos abertos e a vontade de observar sem interferir ou julgar.
O companheiro também dá ao herói uma vara, que significa um senso crítico capaz de amenizar o efeito poderoso da anima. A vara significa a atitude implacável que é necessária a fim de punir a anima por seu compor­tamento criminoso e demoníaco. O herói deve segui-la, ficar com ela e ainda criticar o seu lado negativo. Embora ele bata nela com a vara, ele não pode ser muito violento senão ela cai na terra.
A princesa, como o inconsciente, faz parte da natu­reza e, portanto, não há discriminação. O consciente supera-a quanto à habilidade de se adaptar a situações, pois é normalmente mais frio e com mais recursos — tem paciência e aprecia as distinções. Mas como um elemento da natureza, o inconsciente não tem limites, é turbulento e poderoso num nível elementar. Os impulsos do incons­ciente ainda não humanizados aparecem, no mais das vezes, como gigantes que representam as irrupções da energia instintiva. Apesar da força que têm são facilmen­te enganados e, por isso, é necessário haver sabedoria para dar direção a essa energia.
A montanha para onde Pedro e seu companheiro voam significa o autoconhecimento e o esforço necessário para se adentrar nele. É quando o herói precisa aprender o segredo da anima.
O espírito da montanha pertence ao arquétipo do velho sábio que, frequentemente, mantém uma pseudo-filha cativa numa espécie de relacionamento incestuoso. O altar sugere cerimônias religiosas secretas e isso leva a pensar que o espírito da montanha fosse uma espécie de padre. Ao mesmo tempo existe um aspecto ctônico perten­cente ao mundo subterrâneo com respeito a este "pai" da anima. Ele é análogo ao dragão da versão russa do conto "As três penas" — um deus pagão e sombrio.
Frequentemente, ele impõe tarefas intransponíveis ao herói que deseja conquistar sua "filha" e nesse conto a anima apresenta enigmas que ele tem de desvendar. O espírito da montanha por trás da anima representa um plano secreto, significativo, uma intenção de governá-la — o que significa que por trás da anima está a possibilida­de de um desenvolvimento interior do herói. O "pai" da anima é a sabedoria suprema que está em contato com a leis do inconsciente. O espírito da montanha é uma força sobrenatural, e isso é indicado pelo altar e pelo peixe que está sendo venerado. Ele denota uma parte do espírito e da sabedoria que foi negligenciada no desenvolvimento da civilização. Na versão norueguesa, este espírito está personificado por um troll que é o amante da princesa, e o troll tem um bode, frequentemente uma forma "teriomórfica" do demônio. O troll teme o herói, porque é somente um espírito da natureza.
A ideia de um espírito está originariamente intima­mente ligada à ideia de que a alma vagueia depois da mor­te. A ideia do espírito move-se entre seus aspectos sub­jetivos e objetivos. Os primitivos experíenciam o espírito como um outro ser total, uma ocorrência puramente objetiva, enquanto nós cremos que a experiência espiritual seja subjetiva. Mas, originalmente o espírito era — e ainda é em grande parte—um fator arquetípico autônomo.
Nos contos de fada, o velho é comumente uma figura auxiliar, que aparece quando o herói está em dificuldades e precisa de conselho e direção. Ele representa a concen­tração do poder mental e a reflexão dos propósitos e, ainda mais importante, introduz um pensamento genuinamen­te objetivo. O símbolo do espírito tem, pois, aspectos neu­tros, positivos ou negativos. Se o velho, no conto, fosse so­mente positivo ou negativo, representaria metade da natureza do arquétipo do velho homem; esta conexão nos leva a pensar no duplo aspecto de Merlin. No presente conto o velho é o animus da anima, por assim dizer, e isso significa um espírito objetivo atrás da anima.
Tais figuras da montanha são temas folclóricos, como, por exemplo, Barba-roxa (Handwórterbuch des Aberglaubens em Berg) ou Mercúrio na alquimia (C. G. Jung, Psychology and Alchemy em Alchemical Studies — C.W. 12,13). É uma figura que em um momento é um menino, noutro é um velho, ora destrutiva, ora inspira­dora e cujo caráter depende da atitude do alquimista. Nos textos de alquimia o estudante sempre procura encontrar a verdade nas entranhas das montanhas, onde ele encon­tra um velho, uma figura de Hermes — Mercúrio. Este espírito é a meta e ao mesmo tempo a inspiração para chegar até lá. Ele é chamado de "o amigo de Deus" e tem a chave ou o livro onde guarda todos os segredos. Nos tempos antigos, os alquimistas se perguntavam como esta figura de Mercúrio estava relacionada com o Deus cristão e acabaram por descobrir que ele era a reflexão ctônica da imagem de Deus.
O templo no centro de uma montanha é, também, um tema frequente nos contos de fada europeus. Um edi­fício feito pelo homem na montanha significa uma forma estruturada no inconsciente, ou seja, um desenvolvimento cultural que foi bruscamente erigido ou tombado, sem que tenha havido uma transição que seguisse o veio prin­cipal da cultura. Tais edificações simbolizam uma quebra cultural violenta, uma interrupção do desenvolvimento cultural como o corte repentino da alquimia e da visão qualitativa da natureza (em favor de uma visão exclusi­vamente quantitativa), ocorrida no século XVII. Isso dei­xa o desenvolvimento anterior intacto, porém como um objeto da tradição, enquanto seu efeito se perdeu.
A anima está às voltas com o espírito da montanha porque ele tem o segredo que pode deixá-la viver. Nossa consciência moderna não tem deixado espaço ou vida suficiente à alma e, ainda, tenta excluí-la. Em consequência, a anima se agarra ao espírito da montanha, porque ela sente que ele lhe promete uma vida mais rica; e isto tem relação com o fato de ele ser pagão e de que a cosmovisão, de certa forma, dava à anima do homem uma chance muito maior e mais abundante de viver.
O indício de que o espírito da montanha é uma figura não-cristã está, talvez, na época da origem desse conto. Contos de fada, como os sonhos arquetípicos, correspon­dem a um processo lento, profundo e progressivo do consciente coletivo. O significado dessas coisas leva muito tempo para criar raízes e penetrar na consciência das pessoas, portanto pode-se datá-las somente dentro de uma margem de mais ou menos 300 anos. Este conto deve pertencer à era do Iluminismo, um período que mostra a aplicação dos princípios cristãos às coisas terrenas; por exemplo, Johann Kepler deu ao mundo a configuração da Trindade; para ele, as três dimensões do espaço eram a imagem da Trindade, sendo a Divindade uma esfera onde o Pai era o Centro, o Filho a superfície ou o lado exterior, e o Espírito Santo os raios. De acordo com Kepler, todas as criaturas desejam ser esferas, ou seja, imagens de Deus. Todo o Iluminismo pode ser descrito como baseado numa forma trinitária de pensar, uma perspectiva in­completa, pois excluía o problema do mal e dos elementos irracionais na natureza. Desenvolveu-se, então, uma oposição entre este novo estilo de pensar e o estilo ante­rior. O novo pensar, por causa da sua alienação do irracional e da alma foi e é tão unilateral como a forma anterior. A fim de contrabalançar a nova tendência, os herdeiros do modo tradicional defendiam seus dogmas ainda com maior veemência. Os dois lados se afirmaram em campos separados e nenhum dos dois pode complementar as distorções do outro.
O primeiro enigma que o espírito da montanha pro­pôs à princesa a fim de blefar o herói foi pensar no cavalo branco de seu pai. Aqui aparece uma nova figura, um rei; o pai real da anima foi introduzido indiretamente. Como eu sugeri anteriormente, o rei, algumas vezes, simboliza um sistema moribundo de ordem espiritual e mundana. Possivelmente, o pai da anima pode significar uma filosofia de vida (cosmovisão) cristã e gasta, contrastando com o Espírito renegado da montanha que desempenha um papel paralelo como um pai. O último é uma fonte exuberante da libido que instiga o inconsciente — o ar­quétipo vivo que está ameaçando porque foi reprimido. O herói precisa ficar de guarda contra os opostos represen­tados pelas duas figuras de rei, que como todos os extremos opostos, são misteriosamente iguais. O cavalo do rei é um símbolo dos poderes do inconsciente à disposição do cons­ciente. (Para melhor compreensão do símbolo do cavalo veja Symbols of Transformation — C. W. 5 — de Jung.)
O segundo objeto em que a princesa precisa pensar é a espada que representa a justiça, a autoridade, a decisão (considere a passagem de Alexandre cortando o nó górdio), e a discriminação, tanto no domínio da inteli­gência como no domínio da vontade. O tema da espada tem um papel importante na alquimia (veja "Transfor­mation Symbolism in the Mass"[7] em Psychology of Religion — C. W. 11). O dragão, por exemplo, é transpassado pela espada, significando isto a tentativa de discriminar os instintos de tal forma que os conteúdos inconscientes indefinidos se tornem mais definidos. O indivíduo precisa cortar sua prima matéria com "sua própria espada": é necessária uma decisão consciente para poder assimilar a libido livre vinda do inconsciente. Em outras palavras, a decisão quanto ao caminho a seguir tem que ser feita pela personalidade consciente e esta é uma condição prévia e essencial para o desenvolvimento inconsciente prosse­guir. "Tome a espada! Trespasse o dragão!" — então alguma coisa se desenvolverá. Na cerimônia da Missa a espada simboliza o Logos e no Apocalipse é o Logos, particularmente, como a Palavra decisiva de Deus, jul­gando o mundo. A espada flamejante (de fogo) diante do jardim do Éden é explicada na alquimia como a cólera de Deus do Antigo Testamento. No sistema gnóstico de Simão Mago a espada flamejante era interpretada como a paixão que separa a terra do Paraíso. A espada tem também um sentido negativo, a saber, ser destrutiva e eliminar as possibilidades de vida. Como o cavalo, a espada significa a libido do inconsciente, uma parte do poder psíquico. O cavalo e a espada estão, desse modo, interligados; porém, a espada é um instrumento feito pelo homem, enquanto o cavalo é a libido instintiva.
O terceiro objeto é a cabeça do espírito da monta­nha, algo que nenhum mortal poderia conceber. Os alquimistas gregos afirmavam que o grande segredo estava no cérebro. Em Timon Platão ressalta o fato de que a cabeça repete a forma circular do universo, ou de Deus, e de maneira semelhante ela carrega os segredos divinos do homem. Esta é, provavelmente, uma das razões que leva os primitivos a cultuarem a cabeça. Os sabinos, por exemplo, mergulhavam um homem de "cabeça dourada" (loiro) no óleo, e então cortavam sua cabeça e usavam-na como oráculo. Os alquimistas denominam-se "filhos da cabeça dourada" e o alquimista Zósimo ensinava que o Ômega (Q) é o grande segredo. Na alquimia a cabeça é também um símbolo do SELF. Com a ajuda da cabeça temos a chave para a solução dos problemas interiores. A cabeça foi, mais tarde, interpretada como a essência ou o significado. Sobre a cabeça já foi dito: "ninguém pode pensar sobre ela", significando que está além da capaci­dade humana compreender seu mistério oculto. Em nossa história é a cabeça que propõe os enigmas e, consequentemente, constitui a base de todos os enigmas da anima. Então, a aquisição da cabeça pelo herói é a solução de seu problema, pois possuindo-a ele é capaz de compre­ender seus processos psíquicos internos.
Os três objetos do pensamento — o cavalo, a espada e a cabeça — expressam o fato de que o velho sistema consciente tem uma certa vontade e energia, embora seu dinamismo e significado tenham retornado para o incons­ciente. Há, consequentemente, a cisão entre a energia consciente e o significado inconsciente, que é um proble­ma primário nos dias de hoje.
Vamos, agora, considerar os símbolos encontrados no templo do espírito da montanha. Na primeira visita do herói há somente estrelas e o átrio está escuro e o altar vazio. As estrelas dispersas, ao acaso, são as sementes latentes e indefinidas da consciência.
Na segunda visita a lua está brilhando e sobre o al­tar há um peixe espinhoso. A lua, um símbolo do princípio feminino, significa a atitude feminina frente ao mundo interior e exterior, atitude de aceitação, registrando re­ceptivamente o que se passa. Em alguns poemas chineses, a lua traz o repouso e a calma depois de uma luta.
O filósofo grego Anaximandro sugeriu que o homem descendia de um peixe espinhoso. O peixe é também famoso como um símbolo cristão; os apóstolos eram cha­mados de "pescadores de homens" e o próprio Cristo (ichthys) é simbolizado pelo peixe e, assim, é celebrado na refeição eucarística. Ambos, Cristo e o peixe, são símbolos do SELF. Concentrando este símbolo sobre sua pessoa, Cristo o tira da natureza, aliviando-o do seu fardo. O peixe tem também um papel importante na astrologia, pois é o signo zodiacal que governa os primeiros 2.000 anos da era cristã. Porém, neste signo existem dois peixes, um na vertical e um na horizontal, um sendo Cristo, e o outro o Anticristo. Neste conto o peixe espinhoso parece representar o Anticristo, um conteúdo inconsciente central, porém, diabólico. Esse conteúdo do inconsciente espinhoso e escorregadio é perigoso e difícil de se abordar. Na Idade Média pensava-se ser o peixe o símbolo do prazer terreno "por serem tão ávidos e vorazes", ou talvez porque Leviatã era um monstro com forma de peixe. A tradição judaica prega que o indivíduo piedoso poderá comer Leviatã na refeição eucarística do dia do juízo final. Sendo Leviatã comida pura ele significa a imortalidade. Note a ambivalência quanto ao peixe que, por um lado, significa a imortalidade, como acima exposto, é também considerado como um símbolo da lascividade e dos instintos mais básicos. Na índia também o peixe é relacionado com o símbolo do salvador.
O deus Manu se transformou num peixe e salvou os livros sagrados da inundação. Um "peixe redondo no meio do mar", sem ossos e extremamente gordo é mencionado, muitas vezes, na alquimia, sendo mais tarde este peixe relacionado com o peixe reluzente cujo contato causa febre. A urtiga ardente — fogo no mar — foi interpretado pelos alquimistas como sendo um símbolo do amor divino ou o fogo infernal. Estes aspectos variados aparecem, ge­ralmente, combinados no simbolismo alquimista. Enquan­to o cristianismo não permite qualquer casamento entre o céu e o inferno, a alquimia fornece um pensamento paradoxal.
Psicologicamente, o peixe é um conteúdo do incons­ciente distante e inacessível, uma somatória da energia potencial repleta de possibilidades, porém obscura. E um símbolo da libido para certa quantidade de energia psí­quica pouco específica e relativamente descaracterizada, a direção e o desenvolvimento daquilo que não foi ainda delineado. A ambivalência do peixe se deve ao fato de ser um conteúdo abaixo do limiar da consciência.
Na terceira viagem o herói encontra o átrio brilhan­temente iluminado pelos raios do sol. A mudança de objetos vistos pelo herói sugere a iluminação gradual do inconsciente até atingir o claro discernimento. O sol da meia-noite dentro da montanha nos faz lembrar o sol da meia-noite visto por Apuleio no reino dos mortos (Apuleius, The Golden Ass, London, Penguin, 1950, p. 286). Não é somente o ego que traz a luz, mas o próprio inconsciente possui uma "consciência latente". Este sol da meia-noite é provavelmente a forma original da cons­ciência — uma consciência mais coletiva do que indivi­dual. As crianças e os primitivos têm a experiência "daquilo que é conhecido" e não "daquilo que eu conheço". A luz no inconsciente é primeiramente desfocada e difusa. Os mitos da criação frequentemente dividem a criação em dois estágios: primeiro, o nascimento da luz em geral e, então, o surgimento do sol. No Gênesis, por exemplo, Deus criou a luz no primeiro dia e somente no quarto dia é que ele criou o sol e a lua.
No altar está uma roda flamejante. Na índia, a roda é um símbolo de poder e vitória, um guia para encontrar o caminho e o poder (Mrs. Rhys David, "Zur Geschichte des Rad Symbols em Eranos Jahrbuch, Zurich, Rascher, 1934). É a roda da redenção que se move no caminho certo e na linha certa, simbolizando intensificações graduais da consciência religiosa. Nos últimos tempos a roda assume um aspecto mais sinistro como a Roda do Renas­cimento, a repetição circular e absurda dos processos vitais, da qual a pessoa tenta escapar. Em quaisquer casos, a roda simboliza a ação autônoma do inconsciente, ou seja, do SELF. Na índia, o hindu procura agir em harmonia de ritmo com o movimento da psique, a roda; ele deseja manter contato com a corrente de vida que vem do SELF. Mas este pode se tornar um fator negativo e torturador se suas intenções forem mal interpretadas; é como se seus enigmas ficassem sem respostas. Nos tem­pos da Babilônia, a roda astrológica, ou o horóscopo do nascimento, marcava o aparecimento do círculo fatal que colocava cada homem na roda do seu próprio destino. Homenagem seja feita a Cristo, que foi o único que pôde destruir a roda do nascimento, oferecendo a seus fiéis um renascimento espiritual. Novamente, na Idade Média, a Fortuna tinha uma roda, uma espécie de roleta que expressava o trabalho indiferente do destino cego sobre os homens, que eram prisioneiros de sua própria inconsciência. Os alquimistas diziam sempre que seu trabalho podia ser comparado a um processo circular de contínua purificação. O movimento circular na roda alquímica cria a unificação dos opostos: o céu torna-se mais terreno e a terra mais celestial. Os alquimistas denominaram esta roda cósmica, símbolo positivo, de "rotação do mundo". Até mesmo Deus já foi simbolizado como uma roda. Wiklaus von der Flüe, o místico e santo suíço, teve uma visão terrível de Deus, que depois representou como es­tando coberto por uma roda. Desta maneira ele procurou amenizar o Deus terrível que ele tinha experienciado, tor­nando-o mais aceitável e compreensível. Num dos contos do Cáucaso Deus mata o herói numa raiva incontrolada, enviando atrás dele uma roda incandescente que o esmaga e queima; a roda, aqui, expressa a face ameaçadora e vingativa da divindade. Nos festivais de verão, em toda a Alemanha, as pessoas rolam rodas incandescentes pelas montanhas abaixo. Por um lado, isso pode ser explicado como um vestígio de um ritual que tentava manter e fortalecer o sol, mas pode também se relacionar com o sol como símbolo da fonte do consciente e do inconsciente.
Uma crença popular na tradição germânica fala de almas penadas que erram como rodas incandescentes.
A roda de fogo refere-se ao movimento espontâneo da psique que se manifesta como uma paixão ou um impulso emocional — um brotar espontâneo do incons­ciente que nos inflama. Quando isso acontece, pode-se dizer que "as ideias giram na minha cabeça como uma roda". De forma semelhante, a roda girando também ilustra o movimento circular e desprovido de significado da consciência neurótica. Isto acontece quando o indivíduo perdeu a conexão com sua vida interior e está separado do significado pessoal de sua vida.
Em nosso conto a roda, com sua circularidade, é análoga à cabeça do espírito da montanha — um símbolo do SELF no seu aspecto sombrio. Um conto dos índios da América do Sul mostra bem a ideia de como a cabeça pode ter um aspecto bastante destrutivo. Um crânio começa a rolar de uma maneira misteriosa e estranha, adquire asas e garras e se torna demoníaco, assassino, tomando homens como presas e devorando tudo. Isto relaciona-se com a separação da cabeça do corpo e a autonomia da cabeça. O deslocamento violento da cabeça, separando-a do corpo, é psicologicamente fatal.
Em muitos contos de fada aparece o rei que ne­cessita da "água da vida". Isso significa que a vida perdeu seu sabor. Porém, aqui, é a anima que perdeu o sentido da vida e em tal grau, que o espírito da montanha aparece desesperado. O comportamento desequilibrado da anima mostra que a relação entre o consciente e o inconsciente é falsa.
Como os vampiros, a anima e o espírito da monta­nha apreciam o sangue de suas vítimas. O tema do vampiro aparece em todo o mundo. Os vampiros são os espíritos dos mortos do Hades para quem Ulisses precisa apresentar o sacrifício de sangue. A avidez que eles têm por sangue é o impulso ou desejo ardente que os conteúdos do inconsciente têm de invadir o consciente. Se esses im­pulsos ou desejos forem renegados eles começam a drenar a energia do consciente, deixando o indivíduo fatigado e apático. Esta história denota a tentativa feita por parte dos conteúdos inconscientes de atrair a atenção da consciência a fim de obter reconhecimento da própria realidade e das próprias necessidades e se comunicar com o consciente.
Ao obter a cabeça, o herói integra seu conhecimento e sua sabedoria. De posse disso, ele quebra o feitiço que foi feito com a princesa. Embora ela esteja livre do feitiço, não foi ainda redimida por causa da cabeça simbólica, ou seja, porque a cabeça simbólica foi tomada somente na sua forma negativa. Cortar fora a cabeça significa separar este conteúdo especial de seu passado coletivo inconsci­ente através de um reconhecimento intuitivo de seu caráter específico. Desta maneira, o herói integra uma parte do significado, mas não o obtém na sua totalidade nem obtém a ligação desse significado com o inconsciente coletivo. Em outras palavras, se por um lado ele é capaz de discriminar o fator essencial e perturbador à paz da anima e pôr um fim nele, por outro não é capaz de perceber completamente as raízes deste fator; ele provavelmente nunca suspeitou da presença do deus entre os primeiros germânicos, do deus Wotan.
O aspecto positivo da cabeça, a compreensão mais profunda possuída por ela, pode somente se tornar manifesta através de um processo de transformação, tal como o que acontece aqui, com a anima.
A compreensão, que se pode obter através de muitos contos de fada europeus, é grandemente aumentada e ampliada se se leva em consideração o fundo simbólico e rico dos textos de alquimia. Como material comparativo eles são muito úteis, porque as especulações alquimistas foram uma tentativa de combinar a força natural pagã com a força cristã na consciência coletiva. A espiritualização unilateral do cristianismo trouxe, para certas clas­ses, um desvinculamento estranho com o instinto. Como Jung observa na Psychology and Alchemy nós somos convertidos ao cristianismo no nível mais alto da psique, mas abaixo somos ainda completamente pagãos. Se, por um lado, os contos de fada são, na sua maior parte, inteiramente pagãos, alguns deles, especialmente aque­les dos últimos tempos (como este que nós analisamos), contêm símbolos que podem ser compreendidos como sendo uma tentativa do inconsciente para unir a tradição pagã abafada com o campo cristão da consciência.
A grande diferença entre os escritos da alquimia e os contos de fada é que os alquimistas não somente produziram símbolos projetando seu inconsciente nos materiais físicos, como também teorizaram sobre suas descobertas. Seus textos mais interessantes abordam tanto os símbolos como também as associações semi-psicológicas ligadas a eles. Pode-se usar as imagens da alquimia como conexões intermediárias entre as imagens distantes dos contos de fada e o nosso mundo consciente.
Na alquimia, alguns dos estágios mais comuns descritos no modelo de desenvolvimento — que corres­ponde ao refinamento da prima-matéria para o ouro — são: o nigredo, que significa negrume do material, quando ele é submetido ao fogo; o albedo, substância branca que, quando lavada, torna-se prata; e o rubedo (o vermelho) que, através do esquentamento posterior, torna-se ouro.
O albedo significa a primeira percepção clara do indivíduo do seu inconsciente, com a possibilidade de obter uma atitude objetiva, e o rebaixamento da cons­ciência, necessário para se obter tais estágios. O albedo significa algo frio, uma atitude fria e destacada, um estágio onde as coisas parecem remotas e vagas como a luz do luar. Consequentemente, diz-se que o feminino e a lua são os governantes do estágio albedo. Também signi­fica uma atitude receptiva para o inconsciente. A limpeza é uma forma de se chegar a bons termos com a sombra, enquanto no estágio anterior, o nigredo, há a confrontação terrível com a sombra, que é uma tortura e que deve ser seguido trabalhando-se na diferenciação da parte inferior da psique. Os alquimistas chamam isso de "trabalho duro". Com o progresso do albedo a força principal é aliviada. Então, um simples esquentar muda o albedo para rubedo, que é governado, por sua vez, pelo sol e que anuncia um novo estado de consciência. O sol e a lua, o escravo vermelho e a mulher branca, são opostos e frequentemente se casam, significando a união da consciên­cia objetiva com a anima, do logos masculino com o prin­cípio feminino interior. Graças a esta união, mais e mais a energia é gradualmente depurada para a consciência, trazendo uma conexão positiva com o mundo, a possibi­lidade de uma atividade criativa e a capacidade de amar.
A imagem do espírito da montanha sugere Saturno, que simboliza na alquimia um contexto sombrio, baixo, não pensado, que precisa ser trazido até a consciência, a cabeça separada. Saturno é a cabeça, a coisa que gira ou "a água destrutiva". (Zósimo chama Saturno de ômega ou cabeça.) Este espírito dinâmico da montanha não parece ser um deus, mas um sacerdote ou um acólito devoto de um deus. Ele se assemelha à roda. Atrás dele deve estar a figura não antropomórfica do SELF. A devoção no templo da montanha é perigosa porque ela é governada pelo inconsciente coletivo.
Como mencionei anteriormente, nos países nórdi­cos Mercúrio era parcialmente identificado com Wotan, como pode ser verificado nos contos de fada. Com a supressão da alquimia e o declínio do folclore, as pessoas se desvincularam das conexões com os deuses pagãos dentro dos seus inconscientes. Antes disso acontecer era na alquimia, no folclore e na astrologia que os deuses pagãos tinham espaços onde podiam viver; esses eram seus últimos redutos.
O espírito da montanha não é redimido, somente a anima. Então, o problema mais profundo permanece não resolvido; desde o século XVII constata-se a presença contínua de Wotan, esperando ser revivido na psique germânica.
Em nosso conto, apesar de o herói ter decifrado os enigmas e cortado a cabeça do espírito da montanha, o perigo não foi ainda superado. Na noite do casamento, o herói precisava mergulhar a princesa três vezes na água até que ela restaurasse sua própria forma. Na versão norueguesa, ela tem que se livrar de sua pele troll mer­gulhando no leite. Nos mistérios da antiguidade, o leite tinha um papel proeminente como a nutrição para os iniciados, "os nascidos novamente". Nas orgias da monta­nha de Dionísio, os Manadas bebiam leite e mel, soltando-se livremente da terra. Leite e mel eram também a comida para os renascidos nos primeiros batismos cristãos. Num salmo de Salomão, o leite é exaltado como um sinal de amizade e de bondade de Deus. São Paulo dizia que os novos cristãos eram crianças bebendo o leite da nova doutrina. O leite é sinal do renascimento divino no homem. Nos sacrifícios gregos antigos, o leite era oferecido para os deuses ctônicos e para os mortos recentes. Nestes casos, o leite é catártico. Muitas superstições alemãs falam de demônios obstrutivos que enfeitiçam o leite tornando-o azul, e muitas delas chegam mesmo a prescrever receitas contra tais feitiços. Portanto, lavar a anima no leite significa livrá-la dos elementos demoníacos tanto quanto livrá-la de sua ligação com a morte.
Peles de animais e de trolls são evidências de uma natureza não redimida. A anima pode vestir roupas sujas e na linguagem da alquimia ser "uma pomba escondida no chumbo". Então, novamente, lavar ou limpar nem sempre é feito na hora certa. Isso significa que os con­teúdos psicológicos que se desenvolvem incompletamente aparecem como coisas desagradáveis quando lavados ou eliminados, como, por exemplo, o animus no seu estado negativo. Então os impulsos positivos contidos no incons­ciente continuam não realizados, não percebidos e não somente se disfarçam como também poluem os instintos, materializando-se em impulsos desagradáveis, como, por exemplo, as aspirações espirituais de um homem que podem se expressar no desejo pela bebida. De fato, os sintomas mais neuróticos são como peles de trolls e escondem conteúdos positivos importantes do incons­ciente.
Na versão alemã, a anima emergia do primeiro mergulho como um corvo e do segundo como uma pomba, de forma que demonstra um elemento volátil em si mesma. Ela frequentemente aparece como um pássaro nos contos de fada, porque representa um conteúdo incontrolável, caprichoso e evasivo.
No mundo cristão, o corvo é visto como uma repre­sentação do pecado e do demônio (veja Handwõrterbuch des deutschen Aberglaubens). Na antiguidade, por outro lado, o corvo pertencia a Apoio, deus do sol; na alquimia simboliza o nigredo (negrume) e os pensamentos melan­cólicos. O velho na montanha com um corvo é personagem frequente nos contos de fada.
A pomba, por outro lado, é o pássaro de Vênus. No Evangelho de João ela representa o Espírito Santo e na alquimia é o albedo. Os dois aspectos da anima precisam ser distinguidos, sua natureza-de-pássaro pertencente ao outro mundo e o lado da mulher relacionado com esse mundo. A natureza de pássaro, volátil, evasiva, precisa ser liberada ou separada pela ablação do banho. Compare isso com a ordem dada ao herói de que ele deveria vender seu próprio filho, ou seja, que ele precisaria estar pronto, apto e desejoso de separar seu consciente do inconsciente.
O banho é uma espécie de batismo, uma transfor­mação através do intermediário do inconsciente. Isso acontece quando o herói empurra a anima para o inconsciente, o que significa uma atitude crítica diante do que é emergente e está alerta no consciente. Tal atitude é necessária porque a anima e as reações que ela induz num homem, embora aparentemente humanas, são frequentemente enganosas. Por esta razão, o homem deve sempre questionar uma inspiração da anima: "Este sentimento é de fato meu?", pois o sentimento de um homem pode ser lírico e pode voar como uma cotovia ou ser sanguinário como um falcão — uma atmosfera ou um humor não relacionados com o estado humano. O banho no leite do conto norueguês tem este propósito, ou seja, de purificar a anima da maldição que pesa sobre ela, sendo este um ato de discriminação.
O último ato do companheiro espiritual refere-se ao processo de purificação da anima. Quando o casamento do herói com ela é consumado, o espírito da montanha se esvai e torna-se inteiramente espiritual. Ele é mais do que uma figura de sombra: é um espírito criativo e inspirador, mas que só se torna eficaz quando a anima perde suas qualidades demoníacas; é somente então que ele pode se tornar ele-mesmo.
Com a consumação do casamento do herói com sua anima a tarefa da sombra se completou, como ocorreu também no Príncipe Ring. Lidar com a sombra, portanto, não é aqui, um fim essencial; mais do que isso, é descobrir a finalidade interior autêntica, que faz com que a oposição entre o bem e o mal não ocupe mais o centro do palco.
A sombra feminina
Não são muitos os contos de fada que tratam da heroína e de sua sombra. O modelo comum é o tipo de conto que fala das irmãs boas e más, as primeiras altas e regiamente recompensadas, enquanto as outras severa­mente punidas. Uma das alternativas que surgem é a da menina que é maltratada por sua madrasta que a castiga e rejeita dando-lhe todos os serviços mais grosseiros da casa. Estas duas figuras conduzem igualmente à interpretação da anima em dois aspectos, do ponto de vista masculino. A sombra feminina raramente aparece nos contos de fada, porque as mulheres não são tão agudamente separadas de suas sombras. Tal separação na mulher é comumente um efeito do animus, estando a natureza e o instinto mais próximos do que nos homens. A psique feminina, como um pêndulo, tem a tendência de ir do ego para a sombra e voltar novamente, como a lua se move de lua nova para lua cheia e volta para a lua nova. Há um conto que parece ser representativo do problema da sombra feminina. Aqui, como ocorre com frequência nos contos de fada, o problema da sombra é interligado com o do animus.
A cabeluda
"Era uma vez um rei e uma rainha, que não podendo ter filhos adotaram uma menininha. Um dia, quando ela estava brincando com sua bola de ouro, apareceram uma mendiga e sua mãe. O rei e a rainha quiseram afastá-las, porém a menina pobre disse que sua mãe sabia como tornar a rainha fértil. Depois de muito vinho, a mulher mendiga foi persuadida a dizer o que a rainha tinha que fazer. Disse então a mulher que a rainha precisava banhar-se em duas tinas antes de se deitar e jogar a água das tinas debaixo da cama; na manhã seguinte, ela encontraria duas flores sob a cama, uma bela e uma feia e ela tinha que comer somente a bela.
Na manhã seguinte, quando a rainha comeu a flor mais bonita e brilhante, essa era tão gostosa que ela não resistiu experimentar a flor preta e feia. Quando chegou a hora de dar à luz, sua filhinha era cinza e feia e chegou montada num bode, trazendo na mão uma grande colher de madeira e podendo falar desde o primeiro momento. Seguiu-a uma filha mais nova estranhamente bela. A feia foi chamada de "cabeluda", pois sua cabeça e parte de seu rosto eram cobertos de tufos de cabelos. E ela se tornou muito amiga de sua irmã mais nova.
Numa noite de Natal, o barulho da festa que faziam as mulheres troll chegou até elas e a cabeluda saiu com sua colher para espantar as mulheres. A princesa bonita entreabriu a porta e foi olhar o que ocorria, quando uma mulher troll tirou sua cabeça fora e pôs no lugar uma cabeça de bezerro.
A cabeluda, imediatamente, pegou sua irmã e foram para um navio que as levou para a terra das mulheres troll. Encontrando a cabeça da irmã sob uma janela, ela a apanhou e correu para o navio, com as esposas troll correndo atrás dela. Chegando ao navio, ela trocou a cabeça da irmã novamente.
Aí, as duas aportaram numa terra onde moravam um rei viúvo e seu filho único. O rei logo quis casar com a princesa bonita, mas a cabeluda propôs uma condição: isso só aconteceria se o príncipe se casasse com ela. O rei, apesar dos protestos do príncipe, que não queria casar com a cabeluda, fez todos os arranjos para o casamento dos dois.
No dia do casamento, a cabeluda falou ao príncipe que lhe perguntasse por que ela montava num bode tão desajeitado. Quando ele assim o fez, ela respondeu dizendo que aquele animal era, de fato, um lindo cavalo e, então, o bode transfor­mou-se num magnífico cavalo. Da mesma forma sua colher de madeira transformou-se num leque de prata, seu topete cabe­ludo transformou-se numa coroa de ouro e ela mesma assumiu uma forma linda, muito mais bonita e radiante que sua irmã. A cerimônia do casamento acabou por ser um evento muito feliz, além das expectativas de todos."
("Zottelhaube", da Nordische Volksmãrchen, vol. II.)
A assimilação do mais "alto" e do mais "baixo" é a mesma que no "Príncipe Ring". Novamente a sombra foi redimida por ter-se tornado consciente, e parece possível concluir que a sombra traz o mesmo problema tanto para o homem como para a mulher.
O tema do rei e da rainha sem filhos geralmente é uma predição do nascimento miraculoso de uma criança muito especial. Em si mesma a esterilidade demonstra que a conexão com a terra criativa da psique foi quebrada, que um abismo existe entre os valores e ideias da cons­ciência coletiva e o limbo fértil, escuro e inconsciente dos processos arquetípicos de transformação.
As duas figuras principais, a princesa e a cabeluda, podem ser consideradas como paralelas a Ring e Snati-Snati. Nós compreendemos Ring como sendo um impul­so no inconsciente coletivo com tendências a construir uma nova forma de consciência. A cabeluda, entretanto, parece representar um impulso para restaurar a cone­xão afetiva com as profundezas do inconsciente e com a natureza, pois a tarefa da mulher na vida é renovar os va­lores afetivos.
Antes do nascimento dessas duas meninas a rainha faz o máximo para remediar a situação, adotando uma menina. Esta decisão muito positiva evoca—como mágica, por analogia — uma reação fertilizadora na matriz do inconsciente. Através da bola de ouro, que pode ser tomada como o símbolo do SELF, a criança adotada atrai uma criança pobre e sua mãe. A função do símbolo do SELF é unir os aspectos sombrios e luminosos da psique e, neste caso, a natureza materna está constelada: a mulher mendiga personifica o conhecimento instintivo que pertence à natureza.
O conselho é bastante claro: a rainha teria que jogar a água que se banhou debaixo da cama e comer uma das flores que ali cresceria. Guardar a água suja dentro do quarto provavelmente significa que a rainha não poderia rejeitar o seu aspecto obscuro, mas deveria aceitá-lo na sua própria intimidade, pois na água suja — sua sombra — reside também sua própria fertilidade. Este parece ser o segredo maternal da velha mulher, tão antigo quanto o mundo.
A flor brilhante e a flor sombria antecipam as naturezas opostas das duas filhas. Elas significam suas almas ainda não nascidas e também simbolizam o sentimento. Ao comer as duas flores, ao invés de só uma, a rainha revela a necessidade de integrar a totalidade e não unicamente o aspecto mais sedutor do inconsciente e, fa­zendo isso, ela comete também o pecado da desobediência —uma beata culpa (uma culpa afortunada, abençoada) — que traz novos problemas, mas com eles uma realização superior. Isso é semelhante ao tema onde Ring, abrindo a porta da cozinha proibida, encontra Snati-Snati.
A cabeluda, como a sombra da nova forma de vida, tem toda a exuberância e iniciativa. O fato de ela crescer tão rapidamente mostra suas qualidades demoníacas e sua natureza próxima dos espíritos; o bode que ela monta é um animal de Thor e sugere que a essência da cabeluda pertence ao mundo pagão e ctônico de Dionísio. A colher caracteriza-a como uma bruxa, que tem sempre algo para cozinhar, que levanta uma massa de emoções a fim de cozê-las. A pele cabeluda que ela tem é um sinal dos traços animais que existem nela e também um símbolo de possessão do animus. Em certos contos, a heroína veste um capuz peludo quando é perseguida pelo seu pai, indicando isto uma regressão ao nível animal devido a um problema do animus. E como se uma inconsciência do tipo animal estivesse presa à cabeluda, o que implica uma possessão de emoções e impulsos animais. Isto, entretan­to, é somente uma aparência exterior, exatamente como fora com Snati-Snati.
Nos países nórdicos, a camada pagã do inconsciente está ainda muito viva e, consequentemente, representa-se as trolls em seu festival de verão no Natal. Quando a princesa curiosa inadvertidamente põe sua cabeça fora da porta, as trolls cortam-na e colocam no lugar uma cabeça de bezerro. As próprias trolls, frequentemente, aparecem com rabo de vaca nos contos folclóricos dos países nórdicos e podemos concluir, a partir desse trans­plante, que a princesa é por elas assimilada; ela, lite­ralmente, perde a cabeça e torna-se possuída pelos conteúdos do inconsciente coletivo. Ela sempre aparece como sendo completamente boba, gaúche e incapaz de expres­sar-se. Isto acontece porque toda sua vida afetiva caiu, sob o controle dos poderes obscuros do inconsciente, os even­tos, portanto, ocorrendo no seu mundo interior, o que não consegue exteriorizar.
A cabeluda é capaz de perseguir as trolls e redimir sua irmã desse estado, porque, até certo ponto, ela com­partilha da natureza das trolls. Da mesma forma como Snati-Snati sabia melhor do que Ring vencer os gigantes, a cabeluda é o adversário designado para as trolls.
Depois de a cabeluda redimir sua irmã, a história dá uma virada inesperada — e ao invés de navegarem para casa, elas continuam a viagem até um reino desconhecido onde não havia mulheres — somente um rei viúvo e um príncipe. Na história, a primeira corte tinha muitas mulheres e um rei estéril, enquanto no segundo reino encontramos os elementos que faltavam no primeiro. Os dois reinos são como duas partes compensatórias da psique, incompletas em si mesmas, que formam uma totalidade quando colocadas juntas. Torna-se, então, natural, quando o rei propõe casar-se com a princesa, que a cabeluda peça a mão do príncipe. O casamento duplo constitui-se no que Jung chamou de "casamento quater­nário", o símbolo dos quatro lados do SELF (veja CG. Jung, The Psycology ofthe Transference em "The Practice of Psychoterapy — C. W. 16).
A cabeluda redime-se não somente pelo casamento da irmã (novamente como Snati-Snati), mas por certas questões que ela induz o príncipe a fazer. Isto relembra a saga de Parsifal, na qual Parsifal primeiramente se omite, não fazendo a pergunta redentora; a consciência sendo muito jovem não está alerta para aquilo que cresce do inconsciente para a luz. A cabeluda é o fator forte e dinâmico do inconsciente que compele a consciência a perceber aquilo que se esforça em nascer. Tem-se, aqui, um exemplo muito bonito da natureza do próprio inconsciente esforçando-se para equipar o ser humano a fim de que esse possa alcançar um nível de consciência novo e mais elevado.
O impulso tem seu ponto de partida na sombra e é gradual e completamente humanizado.
A estrutura geral deste conto de fada é interessante se considerarmos a questão dos sistemas quaternários. Nós temos dois grupos de quatro pessoas. O primeiro é o rei, a rainha, a filha adotiva e sua amiga pobre, e nesse sistema as relações não são harmoniosas. A intervenção de ajuda da mulher mendiga traz o segundo par de meninas, a cabeluda e a princesa bonita, que se colocam no lugar das duas anteriores. A interferência das trolls indica que esse quarteto ainda é muito artificial e está muito distante do inconsciente mais profundo. Quando a princesa e a cabeluda casam com o rei e o príncipe, respectivamente, eles fazem emergir um novo quarteto. Este novo grupo parece ser um modelo representativo do SELF, como o grupo de quatro pessoas no final do Príncipe Ring. Aqui, novamente, o conto de fada abre-se com um símbolo de SELF e culmina no símbolo do SELF, representando então o processo eterno dos núcleos da psique coletiva.
Os poderes do animus
O animus talvez seja menos conhecido do que a anima na literatura, mas no folclore nós encontramos muitas representações bastante claras deste arquétipo. Os contos de fada, também, apresentam modelos de como uma mulher pode lidar com esta figura interior, contras­tando com a maneira do homem lidar com a anima. E isso não é simplesmente uma inversão. Cada passo no pro­cesso de conscientização do animus é caracterizado de maneira bastante diferente. O próximo conto é um bom exemplo disso.
O rei Barba-de-tordo
"Era uma vez um rei cuja filha muito bonita desprezava e caçoava de todos os seus pretendentes, não aceitando ne­nhum. Um deles tinha um queixo muito pontudo e, caçoando, ela o apelidara de 'Barba-de-tordo'; ele ficou conhecido, desde então, como o rei 'Barba-de-tordo'. Desesperado, o rei declarou que entregaria sua filha ao primeiro mendigo que passasse. E ele assim o fez, dando a princesa a um pobre violinista que apareceu na corte e atraiu o rei com sua música". (Numa outra versão dessa história, o que atrai o rei é uma roca de ouro.)
"A princesa torna-se a esposa do violinista, mas é incapaz de fazer qualquer trabalho doméstico e seu marido fica muito descontente com ela. Ele é quem cozinha, lava a louça, costura, enfim, faz todas as tarefas que ela não consegue fazer. Final­mente, ele a envia ao mercado para vender louça. Certa manhã, um hussardo (soldado, cavaleiro do século XV) bêbado foi com o cavalo em cima da louça, quebrando muita. O marido, muito bravo, culpou-a pela perda; e disse que ela não servia para nada mesmo, enviando-a para uma corte vizinha a ser empregada na cozinha.
Uma noite, furtivamente ela observava um baile de casamento do príncipe daquela corte. Os empregados lhe jogam pedaços de comida que ela esconde nos seus bolsos. De repente ela é vista pelo príncipe que a convida para dançar; ela enru­besce e tenta fugir deixando cair a comida. Ele a apanha e revela ser o rei 'Barba-de-tordo'. Conta, então, que se disfarçou de marido mendigo e também de hussardo, para que ela se tor­nasse mais humilde e quebrasse o orgulho que tinha."
(Contos de Grimm. London, Routledge, 1948, p. 244.)
O nome "Barba-de-tordo" tem afinidade com "Barba-azul", mas o "Barba-azul" não é mais que um assassino; não pode transformar suas esposas e nem mesmo se transformar. Incorpora aspectos ferozes e mortais do animus na sua forma mais diabólica; dele, a única saída é a fuga. Essas espécies de animus são frequentemente encontradas na mitologia. ("Fitcher's Bird" and "The Robber Bridegroom" - Ibid.)
Esses contos ressaltam de maneira bastante clara uma diferença importante entre a anima e o animus. O homem, nas suas qualidades primitivas de caçador e guerreiro, é levado a matar, e é como se o animus, sendo masculino, carregasse essa propensão. A mulher, por outro lado, está a serviço da vida e a anima liga o homem à vida.
Nos contos onde existe a figura da anima, esta rara­mente aparece sob um aspecto inteiramente mortal; pois ela é, acima de tudo, o arquétipo da vida para o homem.
O animus na sua forma negativa parece ser o oposto. Ele retira a mulher da existência e mata a vida que existe nela. Está ligado a espectros e ao mundo da morte. De fato, ele pode mesmo aparecer como a personificação da morte, como no conto francês da coleção de Diederich que se segue:
'A esposa do Espírito da Morte'
"Uma mulher que rejeitava todos os pretendentes aceita o Espírito da Morte quando ele aparece. Enquanto ele sai para trabalhar, ela vive no castelo. Um dia, o seu irmão vai visitar os jardins do castelo do Espírito da Morte e eles passeiam juntos. O irmão salva sua irmã e trazendo-a de volta para a vida, ela descobre, então, que esteve ausente durante 5.000 anos."
(Franzósische Volksmarchen, p. 141.)
Uma variação cigana com o mesmo título conta o seguinte:
"Um viajante desconhecido chega a uma cabana afastada onde vive uma moça solitária. Ele recebe comida e abrigo por alguns dias e apaixona-se por ela. Eles se casam e, uma noite, ela sonha que ele estava branco e gelado e que era o Rei dos Mortos. Ele, então, é obrigado a deixá-la para cumprir sua missão macabra. Quando, finalmente, ele revela que de fato é o Rei dos Mortos, ela morre de susto."
(Zigeunermàrchen, p. 117.)
Este é o efeito desastroso que o animus negativo pode ter sobre uma mulher: ela se sente torturada, separada e tolhida de toda participação da vida e incapaz de continuar a existir.
Em sua tentativa de prejudicar as conexões da mulher com o mundo exterior o animus pode tomar o aspecto de um pai. No conto de "O rei Barba-de-tordo" aparecem somente um rei e sua filha, e a inacessibilidade da princesa, recusando todos os seus pretendentes, está, evidentemente, relacionada com o fato de que ela vive só com seu pai. Sua atitude crítica, jocosa e sarcástica em relação aos seus pretendentes é típica de uma mulher governada por seu animus. Tal atitude desfaz em tiras todo o relacionamento humano.
Aparentemente é a arrogância da filha que provoca a exasperação do pai, mas, de fato, na maior parte das vezes, o pai prende a filha a si mesmo, colocando obstácu­los no caminho dos pretendentes. Pode-se depreender esta atitude no conto e reconhecê-la na ambivalência típica dos pais que não deixam seus filhos viver e que, ao mesmo tempo, não têm paciência com o fato de eles serem incapazes de se lançarem para a vida. Frequentemente, as mães agem com os filhos da mesma forma que os pais com suas filhas. Enfim, o complexo-do-pai agindo sobre a filha procura injuriar o pai poderoso levando-a a escolher sempre moços inferiores.
Em outro conto o animus aparece como um velho que mais tarde se torna um jovem. Essa é uma maneira de dizer que o homem-velho — a imagem de pai — é somente um aspecto temporário do animus, e que atrás dessa máscara existe um homem jovem.
Um exemplo mais evidente do efeito de isolamento do animus é encontrado num conto em que o pai tranca sua linda filha num cofre de pedra. Então, um jovem pobre salva-a e eles fogem juntos.
Num conto turquestão, Zauberross, o pai vende sua filha a um espírito mau, Div, em troca de uma resposta a um enigma. Num conto dos Bálcãs, "A moça e o vam­piro" (Balknmárchen, ibid.), um jovem, que é vampiro, atrai uma moça colocando-a numa cova de cemitério. Ela foge sob a terra até chegar a um bosque e pede a Deus que lhe dê uma caixa onde ela possa se esconder. Para se pro­teger contra o animus, a moça tem que sofrer o aprisio­namento.
A ação ameaçadora do animus e a reação defensiva da mulher contra ele estão sempre juntas e evocam o duplo aspecto da atividade do animus. O animus pode paralisar ou tornar a pessoa muito agressiva. As mulhe­res tendem a se tornar masculinas e dominadoras ou, ao contrário, tendem a ser distraídas como se não estivessem plenamente presentes — talvez com maneiras charmosas e femininas, mas tudo como se estivessem parcialmente adormecidas — ocorre, então, que tais mulheres fazem viagens maravilhosas com seu animus-amante e vivem submersas nesse amor com o animus, numa espécie de "sonhar-acordado", sem ter disso clara consciência.
Voltando à história, um príncipe descobre a caixa com a moça dentro, liberta-a e casam-se. A caixa e o cofre de pedra são representações do estado de ruptura com a vida, que assim se mantém enquanto a mulher for pos­suída pelo animus. Inversamente, se uma mulher tem um animus agressivo e tenta agir espontaneamente, é sempre o animus que aparece nas suas ações. Algumas mulheres, entretanto, recusam-se a ser agressivas e difíceis e, assim fazendo, não deixam que ele se manifeste. Elas não sabem como lidar com o animus e, a fim de mantê-lo controlado, são rígidas, convencionalmente corretas e frias, prisioneiras de si próprias. Isto é também uma passividade, mas que vem da reação da mulher contra o animus.
Num conto norueguês uma mulher é obrigada a vestir um casaco de madeira. Um vestuário tão protetor, feito de tecido vivo, duro, ilustra a rigidez em relação ao mundo, como uma armadura defensiva que se torna um peso. O tema da queda numa armadilha, como ocorreu no episódio da queda de Ring no barril atraído pela feiticeira na praia, é ao mesmo tempo um ato de feitiço e de proteção. Do ponto de vista histórico, o animus, como a anima tem uma forma pré-cristã. "Barba-de-tordo" — (Drosselbart) é um nome para Wotan, como Rossbart — "Barba-de-cavalo" — também o é.
Em "O rei Barba-de-tordo" o destino é quebrado pela exasperação do pai que faz com que dê sua filha a um homem pobre. Em contos paralelos a princesa é seduzida pela bela canção entoada pelo mendigo e, numa versão nórdica, o mendigo a encanta com uma roca de ouro. Em outras palavras, o animus exerce uma atração fascinante sobre ela.
A atividade de fiar tem relação com os devaneios e desejos. Wotan é o senhor dos desejos e o espírito de tais pensamentos mágicos. "O desejo faz girar as rodas do pensamento." Tanto a roca como o ato de fiar são próprios de Wotan e em nossa história a moça tem que fiar para ajudar seu marido. O animus, então, se apossou de sua própria atividade feminina. O perigo implícito que existe quando o animus esvazia uma atividade feminina é a perda da capacidade da mulher de refletir por si mesma. Isso acarreta uma lassidão e, ao invés de pensar, ela preguiçosamente fia seus sonhos acordada e desfia suas fantasias de desejos ou ainda trama complôs e intrigas. A filha do rei no conto do "Barba-de-tordo" caiu nesta atividade inconsciente.
Um outro papel que o animus desempenha é o do servo pobre. Sua galanteria inesperada, sob esse disfarce, aparece num conto siberiano:
"Uma mulher vivia só e não tinha senão um empregado. O pai dessa jovem morreu e esse servo tornou-se intratável.
Entretanto, ele se dispôs a matar um urso e fazer um casaco de pele para ela. Depois de ter feito isso ela lhe pediu para fazer outras coisas, tarefas cada vez mais difíceis. E, em cada uma das vezes, ele consegue fazê-las se mostrando à altura das tarefas solicitadas. E, ainda que ele parecesse pobre, na verdade era um homem rico".
O animus parece ser pobre e geralmente não revela os grandes tesouros do inconsciente que estão à sua disposição. No papel de um homem pobre ou mendigo, ele induz a mulher a acreditar que ela não tem nada dela mesma. Esse é o castigo pelo preconceito em relação ao inconsciente — uma pobreza duradoura da vida cons­ciente, resultando num ceticismo e numa autocrítica sem fim.
Depois de o violinista casar com a princesa ele lhe faz lembrar da riqueza do "Rei Barba-de-tordo" e ela se arrepende amargamente de tê-lo recusado. É uma carac­terística de mulher possuída pelo animus de se remoer de remorso pelas falhas cometidas, por suas omissões. Lamentar-se sobre o que podia ter sido feito é um falso sentimento de culpa e é completamente estéril. Mergu­lha-se no sentimento desesperador de ter destruído, em última análise, os próprios projetos e de ter perdido sua vida por completo.
A princípio a princesa é incapaz de fazer os serviços domésticos, e isto é um outro sintoma da presença do animus — que se traduz em apatia, inércia e num olhar fixo e glacial. Isso pode muitas vezes parecer passividade feminina, mas uma mulher neste estado não é receptiva; está drogada pela inércia do animus e é prisioneira num cofre de pedra.
Vivendo numa choupana, a princesa precisa fazer os trabalhos domésticos e, ainda, vender louça, o que a humilha e aumenta seu sentimento de inferioridade. Como uma forma de compensação para suas ambições desmesuradas, o animus frequentemente obriga a mulher a viver de uma maneira bem abaixo de sua real capaci­dade. Se ela é incapaz de se ajustar àquilo que não coincide com seus nobres ideais, então ela se entrega aos trabalhos mais baixos por puro desespero. Esta é uma forma de pensar por extremos: "Se não posso casar com um deus, então eu caso com um mendigo qualquer". Ao mesmo tempo persiste um orgulho ilimitado que se nutre de uma vida imaginária secreta, na qual ela sonha de maneira apaixonada com fama e glória imensas. Humi­lhação e arrogância se entrelaçam. Esta atividade inferior também é uma espécie de compensação para persuadir a mulher a se tornar feminina novamente.
O efeito da pressão do animus pode levar a mulher a uma feminilidade mais profunda, fazendo com que ela aceite o fato de que está possuída pelo animus e que empreenda algo a fim de trazer o seu animus para a realidade. Se ela lhe fornece um campo de ação — ou seja, se ela assume algum campo de estudo em especial ou faz algum trabalho masculino — isto pode mantê-lo. Ao mesmo tempo seu sentimento será revivificado e ela se voltará às atividades femininas. A pior condição é quando a mulher tem um animus muito poderoso e sequer se per­mite vivê-lo; então, ela é levada por opiniões preconcebi­das do animus e quanto mais evita qualquer espécie de trabalho que lhe pareça de alguma forma masculino, menos ela se torna feminina.
A princesa falha em todas as suas tarefas e por isso seu marido a envia para o mercado, como vendedora de potes de barro. Os recipientes são símbolos femininos e ela é levada a vender sua feminilidade a um preço baixo, muito barato e de maneira coletiva. Quanto mais a mulher for possuída pelo animus, mais ela se sente estranha diante dos homens e mais dolorosos são seus esforços para estabelecer um bom contato afetivo. Embo­ra ela possa compensar tomando a iniciativa nas relações eróticas, não pode haver nenhum amor ou paixão genuína entre eles. Se ela realmente tem um bom relacionamento com homens, ela não precisa ser tão reivindicativa. Ela age sob a vaga impressão de que algo está errado e tenta desesperadamente compensar o que foi perdido por causa da imposição do animus que a afasta dos homens. Isso é como caminhar cegamente para uma nova catástrofe. Um novo ataque do animus fatalmente ocorrerá; e na história ocorre: um soldado bêbado quebra todos os seus vasos. Isto simboliza uma explosão emocional brutal. O animus selvagem e desgovernado esmaga tudo, mostrando claramente que tal exibição de sua natureza feminina não é válida.
A vida com o marido mendigo chega a uma humi­lhação final, ocorrendo quando a moça espreita através da fresta da porta o esplendor da corte e a festa de casamento do rei "Barba-de-tordo". Observar através da fresta da porta é interpretado no I Ching como sendo uma perspectiva muito estreita e muito subjetiva. Limitada por isso, a pessoa é incapaz de ver o que realmente tem. A inferioridade de uma mulher que pensa que precisa admirar os outros e que nutre um ciúme secreto em relação a eles significa que ela é incapaz de assumir seu próprio valor.
Por ter fome, ela aceita migalhas que lhe são dadas pelos empregados e, então, para sua grande vergonha, sua inferioridade e avidez são expostas quando a comida cai no chão. Ela quer viver de qualquer modo e assume que não pode obter o que é de seu direito. A filha de um rei aceitar migalhas jogadas pelos empregados? É passar das medidas do desprezo por si mesmo. Então ela sente-se envergonhada e tenta escapar, mas esta era a humi­lhação necessária, pois, como pudemos ver na história, a heroína toma consciência de que, afinal, ela é filha de um rei. E é somente então que ela entende que o rei "Barba-de-tordo" é de fato o seu marido.
Nesta história o animus — o rei "Barba-de-tordo", o soldado grosseiro e o marido mendigo — assume três papéis que são conhecidos como os do deus Wotan. Conta-se que ele é o homem que cavalga num cavalo branco conduzindo os selvagens cavaleiros da noite, os quais, algumas vezes, carregam suas cabeças nos seus braços. Esta lenda que ainda se ouve vem da ideia de que Wotan é o líder dos guerreiros mortos e os conduz para Valhalla. Como são espíritos maus eles ainda caçam nos bosques, e olhar para eles é fatal; depois de mortas fazem as pessoas entrarem nas suas fileiras.
Frequentemente Wotan aparece como um mendigo, um desconhecido errante da noite e sempre sua face é par­cialmente escondida, pois ele tem um só olho. Um estranho aproxima-se, entra, diz algumas palavras e sai — depois percebe-se que ele era Wotan. Ele se nomeia o dono da terra e, psiquicamente, isso é verdade: o proprietário desconhecido da terra (germânica) é ainda o arquétipo de Wotan. (Veja "Wotan", em Civilization in Transition, de Jung, C.W. 10.)
O nome de Wotan evoca um outro de seus atributos: sua forma (teriomórfica) animal é o cavalo. É o Sleipnir, o cavalo de oito patas, branco ou preto, veloz como o vento. Isso indica que, se por um lado, o animus é uma espécie de espírito arcaico, ele está também ligado à nossa natu­reza instintiva e animal. No inconsciente, espírito e instinto não são opostos. Ao contrário, frequentemente ocorre que nossas sementes espirituais se manifestam em primeiro lugar por um impulso da libido sexual ou por impulsos instintivos e somente mais tarde desenvolvem seu outro aspecto. Isso decorre do fato de elas serem geradas pelo espírito da natureza, pelo sentido inerente de nossa estrutura instintiva. Nas mulheres o espírito ainda não se tornou diferenciado e retém, portanto, suas características emocionais arcaicas e instintivas, razão pela qual as mulheres ficam muito eufóricas quando se dedicam a uma atividade intelectual genuína.
O aspecto animal do animus aparece claramente em "A bela e a fera", mas esse tema é relativamente raro nos contos de fada. Um exemplo menos conhecido é a história turquestã — Zauberross (O cavalo mágico).
O cavalo mágico
"Uma jovem foge de seu captor, Div, um demônio do deserto, num esvaio mágico. Ela consegue escapar temporaria­mente, mas é presa novamente pelo demônio. Finalmente o cavalo mergulha no mar com Div e este sucumbe. O cavalo, então, ordena à moça que o mate. Assim que ela executa a ordem o cavalo se transforma num palácio paradisíaco e suas quatro pernas tornam-se as quatro pilastras de sustentação. E, por fim, ela encontra e se une com o seu verdadeiro amor, um jovem príncipe."
O animus aqui aparece dividido, sendo de um lado um espírito maligno e de outro um animal benigno. Quando o animus toma a forma de um espírito inteira­mente destrutivo e diabólico, é necessário que os instintos venham auxiliar.
A única forma de a mulher se defrontar com o problema do animus é simplesmente sofrê-lo até a última gota. De fato, não existe solução que não inclua o sofrimento e o sofrer parece pertencer à vida da mulher.
Nos casos onde a mulher tenta escapar da possessão de algum fantasma ou vampiro muito pode ser ganho através de extrema passividade em relação ao animus, e muitas vezes o conselho mais sábio a ser seguido é não fazer nada. Existem épocas em que a única coisa que se pode fazer é esperar e tentar fortificar-se tendo em mente os aspectos positivos do animus. Superar a possessão de um conteúdo inconsciente escapando de suas garras é uma vitória heroica e meritória.
Esse é o tema do "voo mágico", que representa uma situação onde é melhor fugir do inconsciente do que tentar enfrentá-lo, e assim evitando-se de ser devorada.
O tema do voo mágico é evidente num conto sibe­riano chamado "A moça e o espírito do mal" (Márchen aus Sibirien, p. 81). Nesse conto, a heroína, que não conhece homem algum e nem sabe quem são seus pais, é uma pastora de renas. E ela pastoreia, mantendo-as juntas, cantando canções mágicas.
Aqui novamente aparece o tema da solidão como um sintoma precursor de um desenvolvimento individual particular da personalidade. E uma situação onde emer­gem muitas imagens interiores do inconsciente que tra­zem reações inesperadas. Esta moça não está deserdada nem faminta; ela sabe cozinhar, cuidar de si mesma, e pode manter suas renas consigo pelo encanto mágico de suas canções. Em outras palavras, ela tem muitos recur­sos e é mais dotada e mais normal do que a moça do conto anterior. Seus dons mágicos significam que ela tem a habilidade de saber exprimir os conteúdos do inconscien­te. Em análise pode-se detectar uma situação como perigosa quando o caminho que o paciente escolhe para conceber e expressar os conteúdos turbulentos e ameaça­dores do inconsciente é muito estreito e muito débil. Isto pode provir de uma pobreza de coração e uma ausência de amor tanto quanto de uma esterilidade do pensamento e do espírito: nesse caso os velhos barris são incapazes de conter o novo vinho. As canções nos lábios da moça provavelmente vêm das tradições do seu passado, e isto significaria que ela herdou uma constelação ancestral afortunada. Mas ela não tem conexões humanas. Estar separada da sociedade é um grande perigo para a mulher, pois sem o contato humano ela facilmente torna-se in­consciente e se torna presa do animus negativo.
A história continua: de repente, desce do céu uma mandíbula fantástica. Abre-se um abismo entre o céu e a terra. Esta boca aberta e devoradora é o abismo da total inconsciência. A moça lança seu bastão no solo, atrás de si.
O bastão é um sinal de poder e julgamento, duas prerrogativas nobres, simbolizadas pelo cetro do rei. O bastão é também associado com o caminho e é o princípio da direção do inconsciente. O bastão do bispo, por exem­plo, era interpretado pela Igreja como a autoridade da doutrina que mostra o caminho e fornece as decisões. En­tão, na mulher o bastão é uma forma do animus. Na antiguidade, o bastão de ouro ou a vara mágica pertenciam a Mercúrio e representam a sua capacidade de ordenar os elementos refratários do inconsciente. Se se tem um bastão não se é totalmente passivo, tem-se uma direção.
A moça corre jogando o seu pente mágico e seu lenço vermelho para trás. Marcar o próprio caminho com obje­tos é característica da fuga mágica. O ato de jogar fora os objetos de valor é um ato de sacrifício. Jogam-se coisas sobre o ombro para os mortos, para os espíritos ou para os demônios, agradando-se aqueles que não se ousa olhar face a face. Pode parecer um estado de pânico o fato de abandonar as posses valiosas na hora da fuga, mas aquele que se mantém numa atitude defensiva facilmente é solapado por alguém mais forte que ele, enquanto que despojar-se oferece mobilidade. Existem situações em que a pessoa deve renunciar por completo a querer alguma coisa; isso permite que ela se escape, como se saísse por baixo; não estando mais ali, nada mais pode lhe acontecer de errado. Quando uma pessoa se confronta sem esperanças com uma situação falsa, deve simplesmente saltar sem hesitações até o fundo de uma atitude de simplicidade e passividade; isso lhe permite viver a dificuldade e ultrapassá-la.
E o que é mais interessante é que os objetos que foram sacrificados geralmente se transformam em obstá­culos para o perseguidor. O pente torna-se uma floresta e, portanto, uma parte da natureza — o cabelo da Terra-Mãe. Essa transformação do pente para um objeto natural sugere que, originalmente, ele era parte integrante da natureza, ou seja, da psique inconsciente. Sacrifica-se ao inconsciente aquilo que um dia lhe foi tirado.
Um pente é usado para ajeitar e arrumar o cabelo. Cabelo é uma fonte de poder mágico ou mana. Anéis ou cachos de cabelo guardados como lembranças são tidos como amuletos que ligam uma pessoa à outra, não impor­tando a distância. Cortar o cabelo e sacrificá-lo significa, frequentemente, submissão a um novo estado coletivo, um renunciar e um renascer. A arte de arrumar (coiffure), é uma expressão de uma cosmovisão cultural. Contos folclóricos primitivos falam de demônios que, sendo cap­turados, são penteados e seus piolhos catados, o que significa que a confusão no inconsciente tem que ser ordenada e conscientizada. Por causa desse significado é que no início da análise é frequente sonhar com cabelos selvagemente desalinhados. O pente, consequentemente, representa a capacidade de a pessoa ordenar seus pensa­mentos, clareá-los e torná-los conscientes.
O lenço vermelho que a moça deixa para trás torna-se uma chama de fogo que sobe da terra para os céus. Abandonar o bastão e o pente significava não fazer tentativas de se autogovernar ou arquitetar um plano. Agora, a chama indica que ela coloca distância interior entre ela mesma e seus sentimentos e emoções. Ela é reduzida a uma simplicidade passiva.
Na história, as mandíbulas devoram a floresta e espirram água nas chamas. Fogo e água batalham no inconsciente, e enquanto isso a moça escapa entre os opostos (não se identificando com nenhum deles).
Ela passa em seguida por quatro metamorfoses, sendo que cada um dos animais em que se transforma é mais veloz na corrida do que o anterior. E a única coisa que ela pode fazer é contar com seu lado animal interior.
Ela precisa renunciar a todas as atividades mais altas e descer ao seu nível instintivo. Existem momentos de perigo iminente quando é necessário não pensar, não sentir ou ainda tentar escapar à força, mas sim descer à simplicidade animal. Sustentada por uma atitude cheia de propósitos, esse "não fazer nada" das filosofias orien­tais acaba por ser bem-sucedido, enquanto que uma forte resistência poderia levar à fatalidade. O ego escapa e se evade. E isso é tudo o que um ser humano pode fazer em determinadas ocasiões: deixa-se o demônio perseguidor devorar a floresta e combater o fogo.
A moça se transforma num urso com sinos de cobre nas orelhas. Os sinos e outros instrumentos de sons similares são usados para afastar espíritos malignos (os sinos das igrejas, inicialmente, tinham esse propósito). Eles também anunciam um momento decisivo, como o retumbar de um tambor ou de um trovão e induzem uma ressonância psíquica nas emoções do ouvinte, de tal forma que ele sente que é chegado o momento decisivo — por exemplo, os três toques dos sinos na Missa, antes da Consagração. Os sinos, na orelha-animal da moça, abafam todos os outros sons, sons que ela não precisa ouvir e que são efeitos venenosos das palavras que o animus negativo lhe sussura. O envenenamento ocorre quando a pessoa aceita tais palavras, levando avante convicções e modos de agir que não combinam com ela. O receptáculo que transmite essa influência nefasta é a orelha, e os sinos são uma defesa contra os efeitos nocivos do animus.
O conto termina com a moça caindo no chão, numa espécie de desmaio mortal, em frente a uma tenda branca, quando de repente o espírito do mal pára em frente dela na forma de um belo jovem. Ela fugiu dele para ele. Sua perseverança no único caminho instintivamente correto provocou uma "enantiodromia": ou seja, o demônio ameaçador transformou-se num belo jovem. De fato, a intenção secreta do animus era de trazê-la até sua tenda branca. Ele tem três irmãos mais novos e dentre os quatro ela tem que escolher aquele que será seu marido. O seu equilíbrio interior e sua totalidade psíquica são expressos nessas quatro figuras. Três figuras iguais quase sempre significam uma constelação benfazeja: as três dimensões do espaço e os três aspectos do tempo — passado, presente e futuro — que são os vassalos do destino. Aqui os três irmãos podem representar as três funções inferiores da moça; e o "três mais um = quatro" sustem a individuação. A moça escolhe o mais velho porque ela reconhece que a realização de seu destino está em aceitar o espírito que a perseguiu.
Um exemplo de um voo mágico que termina tragi­camente é contado numa história siberiana:
A mulher que se tornou aranha
"Incapaz de se entender por mais tempo com seu pai, uma mulher sai de casa. Ela encontra uma cabeça humana e leva-a para casa para ter com quem conversar. Seu pai ouve sua conversa e espera que ela esteja conversando com um homem de verdade. Quando ele descobre a 'trapaça' de sua filha, joga a cabeça num monte de estéreo. De lá a cabeça rola caindo no mar e deixando uma trilha de sangue pelo caminho. A mulher segue a trilha e chega a uma casa onde mora uma família de cabeças. O demônio-cabeça, ferido pela indignidade sofrida por seu pai, desdenha-a.
Ela corre em volta da casa na direção errada e, em seu desespero, ela chega à terra do além (isto é, o céu), onde um homem num barco de couro envolve-a, entoando canções mági­cas. Ela o segue, nua, até à casa dele e quando ele sai, ela procura abrigo numa casa vizinha, proibida, onde mora a mulher-aranha. Dentro da casa ela encontra uma velhinha fiando, que lhe diz que o homem do barco (de couro) planeja matá-la. Ele é o espírito da lua e todos os homens na terra rezam para ele.
A mulher abre uma porta no chão da casa do espírito da lua e contempla, lá embaixo, todos os mistérios dos homens e seus sacrifícios. Então ela obtém da mulher-aranha uma corda pela qual ela deve descer à terra. A velha lhe diz que ela precisa se assegurar de deixar os olhos bem abertos. Mas ela não os abre a tempo e se transforma numa aranha."
(Knud Rasmussen, Die Gabe des Adlers, Frankfurt, p. 107.)
Este conto é como o sonho de uma mulher real ou como a reflexão dos eventos concretos. Isto frequentemente ocorre nos contos primitivos que não foram ainda elaborados em contos de fada e que são análogos às experiências arquetípicas individuais.
A mulher da história tem um complexo paternal negativo, razão pela qual ela precisa desenvolver o próprio animus; ao mesmo tempo seu complexo negativo inibe-a de assim proceder. Sua primeira tentativa de encontrar um companheiro põe-na em contato com um crânio que mora no mar (na realidade, um espírito que aparece sob esta forma no mundo terrestre). Muitos primitivos creem que o crânio sobrevive à morte e identificam-no com o espírito.
O fato de a mulher tentar relacionar-se com um crânio significa que a sua natureza espiritual não está incorporada e nem é real. Ela não está ligada aos instin­tos e emoções e não pode se expressar. O crânio é, consequentemente, uma forma de pensar seca e intelec­tual e está literalmente morta. Entretanto, inclusive neste caso, a mulher tenta se relacionar com este fator interno, o que significa progresso, embora cada passo progressivo seja contrabalançado por uma explosão de tendências agressivas do animus. Aqui, o pai interfere. Ele fere a cabeça, o que significa que ele fere e reprime os valores espirituais que se desenvolvem na sua filha através de opiniões tradicionais e convencionais e dos chamados argumentos razoáveis. Por conta disso, o espí­rito que podia ter se tornado consciente, desaparece no mar do inconsciente coletivo.
A mulher corre em volta da casa na direção errada, na direção anti-horária; isso demonstra que ao invés de tentar se tornar consciente desse evento, ela se perde ainda mais no inconsciente. Afunda cada vez mais no seu desespero e assim atinge o céu, transcendendo completa­mente a esfera terrestre e escapando para um domínio puramente arquetípico. Ela evita até mesmo o incons­ciente coletivo, simbolizado pelo oceano. No mar ainda existe a vida animal, mas no céu vivem somente figuras arquetípicas.
O mágico do barco de couro é uma nova forma do animus-maior, menos humana e mais possessiva do que o crânio. Ele é um amante-mágico, um amante-fantasma e, posteriormente, ela fica sabendo que ele é o Espírito da Lua, um deus que é cultuado pelas mulheres da tribo. Este espírito da lua é uma forma que o animus frequentemente assume a fim de seduzir as mulheres e atraí-las para fora da vida. E por causa da fraqueza do consciente nas sociedades primitivas que ele aparece como sendo muito perigoso para a mulher.
Quando uma pessoa com uma consciência desen­volvida sente que o animus nela contido está pleno de uma atividade muito significativa, é inútil tentar fugir ou mesmo procurar compreender intelectualmente o seu significado. Ao invés disso, a pessoa deveria usar a energia proveniente do animus de uma maneira adequada, empreendendo alguma atividade masculina, tal como o trabalho intelectual criativo; se assim não for, a pessoa é dominada e possuída pelo animus. De modo similar, um forte complexo maternal não pode ser depurado somente pelo intelecto. Um estado de possessão trágico pode ser um apelo do destino para a consagração total ao processo de individuação. Quando o complexo materno ou paterno é reconhecido como sendo mais forte que o ego, ele pode ser aceito como um componente da personalidade indi­vidual.
Este encontro da mulher com o espírito da lua lhe dá o poder intuitivo de contemplar as cerimônias e sacrifícios religiosos que ocorrem na terra. Em outras palavras, ela é uma visionária com o perigo de se tornar uma vidente com uma pincelada de loucura, e é por causa desse perigo que o seu instinto feminino, a mulher-aranha, faz surgir nela o desejo de voltar à terra.
A fiandeira, que é uma figura familiar em muitos mitos norte-americanos, é geralmente ambígua. Nesta história ela é análoga à mulher de dentro da caixa no conto que se segue, ou seja, ela é uma figura do SELF, rica em possibilidades desconhecidas.
A mulher-aranha arranja uma corda para a outra, possibilitando-a de descer para a terra. A maior parte das mulheres está sujeita, de tempos em tempos, a sonhar com a própria vida e perder-se num círculo de especula­ções nebulosas, mas se se consegue tocar a realidade ganha-se uma perspectiva nova e fora dessas fantasias. Uma das formas de fazer isso é escrever o que se está fantasiando; possibilitando que a fantasia se expresse, a pessoa deixa de identificar-se com ela. Isto tem o efeito de reduzir as fantasias alimentadas pelo animus e deixar de estar à sua mercê. Quando a pessoa se confronta com seus próprios pensamentos, colocando preto no branco, pode distinguir o que é meramente opinião e o que é válido; fazer isso significa aumentar a força interior. É dito à mulher que quando ela chegar à terra ela tem que abrir os olhos rápida e imediatamente — ou seja, ela precisa fazer um esforço supremo para estar alerta e consciente do seu estado real. Mas tragicamente ela falha e, então, torna-se uma aranha. Ela se torna uma solteirona que teve uma experiência religiosa interior, mas incapaz de tornar frutífera tal experiência para sua tribo e para si mesma.
Uma outra forma de possessão pelo animus é des­crita no seguinte conto siberiano:
A mulher que se casa com a lua e com o Kele
"Uma mulher, abandonada por seu marido, estava tão faminta e fraca que só conseguia se arrastar andando de quatro. Duas vezes assim ela se dirigiu à casa do Homem da Lua e comeu uma comida que encontrou num prato. Na terceira vez ela foi surpreendida pelo Homem da Lua, que quando soube que ela não tinha marido, casou-se com ela.
Todos os dias a comida aparecia num prato vazio, como mágica. Quando o Homem da Lua saiu ele proibiu a esposa de abrir e de olhar dentro de um certo cofre, mas a curiosidade provou-se irresistível e ela descobriu no cofre uma estranha mulher cuja face era metade vermelha e metade negra. Era ela que secretamente providenciava a comida para os dois, mas quando exposta ao ar, morreu. Quando o Homem da Lua voltou para casa descobriu que sua mulher havia lhe desobedecido e ficou muito bravo. Ele trouxe a mulher morta de volta à vida e levou sua esposa de volta para o seu pai, dizendo que ele não podia mais controlá-la e que o primeiro marido dela prova­velmente deve ter tido também uma boa razão para aban­doná-la.
Feroz com a volta de sua filha, o pai evoca um espírito mau para casar com ela. Este demônio, chamado Kele, comia homens e havia comido até mesmo o próprio irmão da mulher, cujo cadáver ele trouxe para ela comer. Entretanto, agindo segundo os conselhos de uma pequena raposa, ela confeccio­nou sapatos para Kele. Quando ela os jogou na frente de Kele um fio de aranha desceu do céu e ela começou a subir por ele para chegar à casa da mulher-aranha. Perseguida por Kele, ela continuou subindo até atingir o Imóvel, o Criador, o maior Deus, a Estrela do Norte. Kele, que também chegou aí, foi aprisionado numa caixa pela protetora Estrela Polar. Ele quase morreu, mas foi solto sob a condição de não mais perseguir as mulheres.
Ela voltou para a terra e fez seu pai sacrificar uma rena para o deus. De repente, o pai e em seguida a filha, morreram." (Este final sem colorido e sem clímax é típico das histórias primitivas.)
(Mãrchen aus Sibirien, p. 121.)
A protagonista é uma mulher abandonada por seu marido e, depois de tudo, o Homem da Lua declara que o marido certamente tinha razão de abandoná-la. Solidão, pobreza e fome são enfocados, típicos estados resultantes da possessão do animus. A atitude de uma mulher, em grande escala, condiciona os eventos que ocorrem com ela.
O animus traz solidão às mulheres, enquanto a anima joga o homem de cabeça nas relações humanas, com toda a confusão decorrente.
A fome também é típica. A mulher necessita da vida, de relacionar-se com pessoas e de participar numa atividade significativa. Parte de sua fome advém da intuição que ela tem de suas atitudes adormecidas e não utilizadas. O animus contribui para a sua inquietude e então ela nunca está satisfeita; é preciso sempre fazer mais por uma mulher possuída pelo animus. Não perce­bendo que o problema é interior, tais mulheres acham que se elas somente pudessem sair mais, pudessem gastar mais dinheiro ou, ainda, se tivessem mais amigos, sua sede de vida seria saciada.
Nos contos de fada, o deus-lua frequentemente aparece como o amante misterioso e invisível de uma mulher casada. Algumas vezes, nos sonhos e na mitologia, a lua é representada tanto como um homem, como uma mulher ou como um ser hermafrodita. Talvez possamos compreender o que determina o sexo da lua.
A lua está intimamente relacionada com o sol, mas tem menos luz e é do sol que recebe sua claridade. O sol é, de fato, uma divindade, fonte da consciência no incons­ciente — ele representa um fator ativo psíquico capaz de criar uma consciência maior. A lua, entretanto, simboliza uma consciência menos clara, mais difusa, primitiva e doce. Quando o sol é do gênero feminino, como na língua alemã, significa que a fonte da consciência ainda está no inconsciente, que não há uma consciência madura mas uma consciência na penumbra, cheia de detalhes não claramente distinguidos. O instinto para empreendimen­tos arquitetônicos entre os balis ilustra essa condição: em Bali, vários operários trabalham segundo suas próprias habilidades de construção, não dirigidos por qualquer plano ou arquiteto, mas guiados pelo próprio interior, exatamente como se tivessem um carbono para copiar. Quando as várias partes do prédio estão para se juntar, elas se encaixam perfeitamente, embora cada um dos homens tenha feito seu trabalho sozinho, individualmen­te. Desta forma, é criado um templo com um desenho muito harmonioso. Como se o sol iluminasse o incons­ciente, aparentemente existe um princípio inconsciente de ordem que opera em cada pedreiro bali.
A lua revela o mesmo princípio do sol, mas é mais feminina, menos concentrada, menos intensa; é a luz da consciência, mas uma luz tênue. O princípio da consciência que opera na mulher desta história é bastante indefinido. Isso se liga ao fato de estar possuída pelo animus, pois é característico do animus ser indefinido em seus propósitos importantes e duradouros, embora ele seja extremamente insistente quando desce ao nível dos detalhes. Na mitologia, a lua está associada a cobras, animais noturnos, espíritos de mortos e deuses do submundo. Na alquimia, ela é chamada de "a filha de Saturno". Paracelsos considerava-a como fonte de veneno, como os olhos das mulheres quando a lua agita seu sangue. Ele acreditava que a lua é um espírito capaz de se renovar e voltar a ser criança, sendo por essa razão suscetível aos maus olhados das mulheres. Desta forma, o espírito sideral é envenenado e então lança má sorte sobre os homens que o contemplam. Podemos interpretar psicologicamente Paracelsos, dizendo que as opiniões envenenadas emanam do animus e vão diretamente ao inconsciente dos outros com o resultado das pessoas parecerem envenenadas por uma fonte desconhecida. Tais opiniões infectam o ar, se espalham pelas vizinhanças e respira-se tal ar sem sequer se suspeitar. As convicções vindas do animus penetram mais profundamente do que meras opiniões erradas e, portanto, são muito mais difíceis de se ver e eliminar.
A divindade lunar, neste conto, é ambígua; ela aprisiona uma mulher, princípio feminino obscuro da natureza, num cofre. Ela é subdesenvolvida, secreta, enterrada, entretanto muito importante pois é viva e prove a alimentação. Em outras palavras, ela é uma forma anterior de um precursor do SELF. Neste caso, ela está por trás do animus (O Homem-Lua) como uma figura de sustentação. O espírito da montanha também encarnava um fator de energia escondido por trás da princesa-anima, mas ele era uma figura malévola, enquanto a mulher na caixa é, sobretudo, uma deusa obscura da fertilidade. Desobedecendo ao Homem-Lua e abrindo a caixa a heroína mata involuntariamente a mulher som­bria. A transgressão pela qual uma vítima inocente paga com sua vida é uma variação do tema da iluminação prematura, tema esse que se encontra tanto nos mitos antigos de Eros e Psique, Orfeu e Eurídice, como no conto de Grimm — The Singing, soaring Liorís Lark = La fauvette qui chante et qui saute. O que deve ser ressaltado aqui é a evidência de que para tudo existe um tempo; a atitude de posse, frequentemente, produz uma sistemá­tica falta de tato da mulher. Ela não resiste à curiosidade de indagar e esmiuçar cada vez que depara qualquer sinal de vida e, assim, tudo o que deveria permanecer no recôndito escuro da consciência — aquilo que necessita da escuridão para se desenvolver — é trazido à luz e perdido. As mães com esse tipo de disposição tendem a arrancar os segredos dos seus filhos e, então, toda a espontaneidade e possibilidade de crescimento são obliteradas. Esta atitude, ainda, tem o efeito nefasto no contexto inteiro.
A mulher do conto, tendo sido abandonada e tendo perdido seu sentimento feminino, é levada pela curiosi­dade a quebrar os segredos do Homem-Lua. A curiosidade selvagem é a expressão de uma espécie de masculinidade primitiva na mulher. Quando possuída por tal espírito inquisitivo e espezinhador, ela só faz o que não é preciso e está sempre errada.
O Homem-Lua devolve a mulher a seu pai. Embora o seu pai não apareça no início da história, podemos supor que eleja semeara as sementes de um final infeliz. O fato de ambos, pai e filha, terem morrido no final do conto mostra claramente a existência de um relacionamento muito próximo entre eles. Depois da mulher ter voltado à casa paterna a maldição do pai condena-a a viver com um espírito mau. De acordo com uma crença primitiva um desejo expresso, tal como esse, pode fazer nascer eventos que ainda não existem e fazê-los sair da matriz do tempo. A maldição que condena a filha a viver com o espírito do mal é uma indicação clara de que o pai é a causa da dominação do animus em sua filha.
O espírito mau, Kele, é um antropófago, uma prática típica do animus negativo. Assim como os vampiros bebem sangue, os espíritos consomem os corpos para se tornarem visíveis. Eles se banqueteiam e se nutrem do cadáver a fim de ganhar substância naquela forma e então tomam a forma de um corpo por feitiço. Os vampiros, como bem se sabe, se alimentam de pessoas vivas. A necessidade que têm de viver a vida dos outros advém do seu desespero de terem sido banidos do mundo dos vivos. Uma mulher possuída pelo animus necessita da energia das vidas dos outros que a circundam porque suas próprias fontes de sentimento e de Eros estão afastadas dela. Do ponto de vista psicológico, os espíritos são conteúdos do incons­ciente. Devorar cadáveres mostra, simbolicamente, que os complexos e outros conteúdos inconscientes lutam desesperadamente para penetrar na consciência e para se realizar nos seres vivos. A voracidade de um espírito por um corpo é o desejo não reconhecido, não redimido, de se atingir a plenitude da vida.
Por outro lado, a mulher vermelha e preta fechada no cofre secreto oferece o alimento mágico e dá a vida. A heroína não pode aceitá-la porque não pode coordenar a mulher sombria com o Deus-Lua, não tem capacidade de lidar com a figura subdesenvolvida do SELF nem de tornar-se mais feminina. Entre a Estrela Polar protetora e o cruel Kele existe uma certa similaridade (semelhança — ambos são princípios divinos opostos, engajados num combate eterno).
Como a mulher em Zauberross (O cavalo mágico), antes mencionado, ela consegue escapar do espírito malévolo com a ajuda de um animal. Colocando o espírito e a natureza em oposição intolerável, o animus pode levar a mulher à situação de cisão. Quando isso ocorre, ela tem que confiar no seu próprio instinto. Neste caso, sua natureza instintiva é representada por uma raposa. Na China e no Japão a raposa é um animal feiticeiro. Diz-se que bruxas e feiticeiras aparecem sob a forma de raposas e casos de mulheres epiléticas e histéricas são explicados como enfeitiçamento por raposas. Para os chineses e japoneses, a raposa é um animal feminino como o gato é para nós e isso também representa a natureza feminina, instintiva e primitiva da mulher.
A raposa da história aconselha a mulher a jogar os sapatos no Kele a fim de retardá-lo enquanto ela subia pelo fio da aranha até o céu. (Cf. Sartori, "Der Schuh im Volksblauden", Zeitschrift für Volkskunde, 1894, p. 41, 148, 282.) O sapato é um símbolo de poder, razão pela qual fala-se em "estar sob o salto de alguém" ou "pisar nos sapatos do pai". Vestir-se pode representar a persona, nossa atitude exterior ou uma atitude interior. Nos mistérios de iniciação mudar de roupa era o sinal da transformação para um estado de compreensão iluminado. Os sapatos são a parte mais baixa de nosso vestuário e representam nossa relação com a realidade — ou seja, o quanto nossos pés estão plantados no chão e o quão solidamente a terra nos suporta e nos dá a me­dida do nosso poder.
Jogar os sapatos no Kele é um gesto que propicia delonga na sua perseguição. É necessário sacrificar alguma coisa a fim de escapar de suas garras e, neste caso, é o sacrifício de um velho ponto de vista. Nas amarras do animus, nenhuma mulher é capaz de desistir ou sacrificar qualquer poder que ela possa ter ou qualquer convicção que seja correta, necessária e valiosa. As opiniões dessa mulher surgiram do pensamento masculino inferior; quanto menos ela for capaz de avaliá-los, mais apaixonadamente ela se segura neles. Esta é a razão para a persistência da possessão do animus. Infelizmente tal tipo de mulher nunca pensa que algo de errado se passa com ela mas, ao contrário, ela tem certeza de que o erro está nos outros. A raposa, na verdade, está lhe dizendo: "Não seja tão rígida. Dobre-se um pouco e jogue parte de suas opiniões fora e veja o que acontece".
Então, de repente, uma linha desce do céu e lhe dá a chance de atingir a Estrela Polar, o que significa o animus refinado à forma mais elevada, uma imagem de Deus (paralelo a isto está Sofia, que é a forma mais alta e mais espiritual da anima). Se se aprofunda no significado do animus, descobre-se que ele é uma divindade e que, através do relacionamento da mulher com ele, nesta forma, ela entra numa experiência religiosa genuína. Nesta história, a descoberta da Estrela Polar é a expe­riência pessoal da mulher com Deus.
Quando Kele persegue-a e desencadeia o clímax, ocorre entre eles e a Estrela Polar um conflito numa escala cósmica, de tal modo que a mulher fica entre os dois poderosos princípios do bem e do mal — Deus e o Diabo. Quando a Estrela Polar abre sua caixa, faz-se a luz e quando fecha, neva sobre a terra. O espírito do mal é colocado dentro da caixa e é torturado pelos cruéis raios de luz. O animus precisa, algumas vezes, ser tratado de maneira severa por um poder superior.
Indo aos céus, a mulher retirou-se da realidade humana, mas isso não traz uma solução real. Qualquer um, nessas condições, pode chegar ao limiar da psicose, balançando-se entre uma possessão de animus exagera­damente positiva e outra exageradamente negativa. Este conto aparentemente revela o caso de uma consciência fraca, que pode ser encontrada nas culturas primitivas. Por isso tem sentido o que a Estrela Polar diz à mulher: "É melhor você voltar para casa, é melhor você voltar para a terra". Ela ordena o sacrifício de duas renas, sabendo que a mulher tem que fazer um sacrifício a fim de reintegrar-se na vida terrena. (Há um tema semelhante no conto de Grimm, "O pássaro dourado".) Sair das nuvens da fantasia e entrar na realidade é perigoso, e neste momento todos os esforços podem ser perdidos. Por exemplo, pode-se compreender um problema que aparece num sonho, mas como trazê-lo para a prática? O tema é proposto, mas espera para se concretizar através da nossa participação efetiva na vida. O problema só é resolvido quando as possibilidades latentes de nossa própria natureza são realizadas num trabalho criativo. Voltar à realidade apresenta outras formas quando questões práticas se apresentam, obrigando a pessoa a sair da aventura posta no inconsciente. Por exemplo, um problema se apresenta quando uma pessoa desenvolve um relacionamento com alguém que a põe em face à desaprovação e à hostilidade do mundo. Permanece sempre o perigo de rejeitar inteiramente as experiências interiores do inconsciente tratando-as cinicamente como se não fosse nada além disso ou daquilo ou, como ocorreu nesta história, tornando-se muito sonhadora e pou­co aberta para a realidade concreta, continuando a viver sua própria fantasia, quando era necessária uma adaptação realista.
Frequentemente, nos contos primitivos, quando um final satisfatório parece iminente, toda a situa­ção explode. Neste conto, o pai e a filha morrem, não havendo dissolução da identificação recíproca e, portanto, todo o problema da possessão do animus permanece in­consciente.
Amiúde, é imperativo para a mulher escapar à dominação funesta do animus. Este conto nos fala de tal tentativa, mas toda a experiência é conhecida somente pelo inconsciente. Pode-se compará-la ao jogo descrito num conto sul-americano, onde aparece a anima como um esqueleto que dança no Além e, subsequentemente, ocorre a morte do herói. Muitos contos primitivos são cheios de melancolia porque muitas tribos experienciam o inconsciente como algo lúgubre, doloroso e atemorizante. Ele toma esse aspecto especialmente para aqueles que necessitam, antes de mais nada, entrar na vida; ou seja, para os jovens e para as pessoas que têm a tendência de se proteger e se fechar. A emergência de o herói sair do inconsciente é uma tarefa tão importante como matar o dragão.
Um outro conto siberiano que ilustra a integração do animus é "A jovem e o crânio". No início do conto, uma jovem que morava com seus pais já muito idosos encontra um crânio no bosque e o traz para casa e conversa com ele. Os pais, quando descobrem o que ela fez, ficam horrorizados e concluem que ela é uma "Kele", abandonando-a.
O fato de o animus aparecer primeiramente como um crânio nesse conto, indica sua natureza necrófila. Os alquimistas usam o crânio como um recipiente onde cozinham a prima-matéria. De acordo com as crenças primitivas, o crânio contém a essência imortal dos seres mortais, de onde surgem os caçadores de cabeças e os cultos aos crânios. Para os índios norte-americanos, os escalpos continham a essência do inimigo. Neste conto, o crânio novamente representa o animus no seu aspecto mortal, especialmente em suas atividades relacionadas com a cabeça, tais como envenenar as mulheres com opiniões nocivas ou cegando-as para os tesouros do in­consciente.
Os pais concluem tristemente que sua filha trans­formou-se em Kele, um espírito mau, casando-se com ele e estando além de qualquer redenção. Esta atitude desconfiada dos pais é tipicamente encontrada entre os primitivos que têm medo de serem possuídos pelos espíri­tos, pois esses, sendo numerosos, sempre presentes e percorrendo longas distâncias, representam sempre um perigo iminente. A ideia do crânio significa a cabeça ou o intelecto, tornando-se autônoma e separada dos instintos; então ele pode rolar montanha abaixo e destruir-se. Por outro lado, o crânio é um símbolo do SELF. (O aspecto que apresenta um conteúdo do inconsciente depende da atitude consciente que o considera.)
Sentindo que sua filha está possuída, os pais idosos abandonam sua casa e atravessam o rio com todos os seus pertences. A menina é apenas uma criança e não tem amigos para ajudá-la a entrar na vida. Tal situação — por exemplo, quando os pais casam-se tarde ou não têm filhos por um longo tempo — frequentemente traz dificuldades trágicas. Pelo fato de ter conversado com o crânio no seu quarto, a menina atraiu reações hostis em seu meio: ela suscitou o medo e o ódio de seus pais. O mau rela­cionamento da mulher com o animus atrai, frequentemente, hostilidade para si mesma, sem que ela suspei­te a razão. As reações negativas das outras pessoas são um sinal de que a parte essencial de sua personalida­de não foi ainda integrada. A irritação das pessoas próxi­mas obrigam-na, de alguma forma, a reconhecer aquilo que lhe falta.
Quando a menina é abandonada, ela se aproxima do crânio por causa de sua solidão. O crânio aconselha-a a apanhar gravetos e fazer uma grande fogueira e, em seguida, jogá-lo no fogo, pois dessa maneira ele poderia ter um corpo.
O fogo, geralmente, representa emoção e paixão que tanto pode nos queimar como nos iluminar. Os sacrifícios, as oferendas, são queimados a fim de dissolver a parte física de tal forma que o essencial ou a imagem possa subir aos deuses pela fumaça. Entretanto, quando uma "criatura espiritual" é queimada, a cremação lhe confere o corpo. A paixão obriga o indivíduo a sacrificar uma atitude muito independente e muito intelectual e torna o indivíduo capaz de conferir uma realidade concreta ao espírito. Quando se suporta o sofrimento de uma paixão, o espírito não é mais uma ideia, mas é experienciado como uma realidade psíquica. Por isso o crânio implora à menina para jogá-lo no fogo: "Do contrário" — diz ele — "ambos sofreremos em vão". Deve-se combater o sofrimento pelo sofrimento, por sua aceitação. Torturar o crânio no fogo significa combater o fogo pelo fogo e reparar o tormento que ela sofreu por causa dele. O animus desperta paixão na mulher. Os planos, propósitos e caprichos do animus levantam na mulher a dúvida, levando-a a sair de si mesma e expor sua natureza passiva e feminina às resistências do mundo exterior. Então, quando uma mulher é bem-sucedida no mundo masculino, estreitar sua atividade ou mesmo renunciar a ela completamente a fim de se tornar mais feminina pode significar um sofrimento agudo para a mulher.
Na alquimia, o fogo simboliza, frequentemente, a participação do indivíduo no trabalho e é equivalente à paixão que o indivíduo coloca nos diferentes estágios do processo alquímico.
O crânio diz à menina que ela precisa tapar seus olhos e não olhar de jeito nenhum para a queima. Aqui também aparece o tema do perigo de uma iluminação prematura. Não se pode querer saber intelectualmente tudo o que ocorre na psique nem querer definir e categorizar a qualquer custo todos os acontecimentos interiores; é preciso dobrar a própria curiosidade e simplesmente esperar. Somente uma pessoa forte é capaz de controlar a própria impaciência e deixar o jogo se desenrolar sem olhar; por outro lado, uma consciência mais fraca quer ler o sonho interpretado imediatamente, pois teme a incer­teza e a obscuridade da situação. A menina tem que esperar no escuro enquanto ouve as chamas arderem e uma confusão de homens e cavalos passando apressada­mente. Apesar de aterrorizada, ela permanece firme e resistente ao pânico, denotando uma força que está além da esperança e do desespero. Mas ocorre que muitas pessoas não são capazes de esperar e preferem decisões repentinas. Desta forma elas perturbam o próprio destino e sua ação imprevisível. No final, diante da moça aparece um homem de pé, vestido com peles de animais, circun­dado por um grupo de pessoas e animais. Ele é muito rico e ela se torna sua esposa: portanto, agora, ela tem um animus positivo, poderoso e muita alegria na vida. Mais tarde seus pais voltam para visitá-la e ela os mata dando-lhes lascas de ossos, que era mais do que eles podiam engolir.
O tema da relação
Existem muitos contos de fada cujas personagens principais podem ser interpretadas como representantes da anima ou do animus. Estes contos destacam modelos de relacionamento humano: os processos que ocorrem entre homem e mulher ou os fatos fundamentais da psique que estão além das diferenças entre o masculino e o feminino. Muitos contos sobre a redenção mútua são deste tipo. Em tais histórias, em geral, as crianças têm os papéis principais — como, por exemplo, Hànsel and Gretel (João e Maria,). Sendo as crianças relativamente indiferenciadas tanto sexual como psiquicamente, elas estão muito mais próximas da imagem do ser hermafrodita original. Esta é a razão pela qual a criança também é um símbolo do SELF — de uma totalidade interior futura e, ao mesmo tempo, dos aspectos não desenvolvidos da individualidade. A criança significa uma parte da inocên­cia e do maravilhoso que sobrevive em nós desde um passado remoto; ela é aquela parte de nossa infância pessoal que já passou, como também a forma nova e recente da individualidade futura. Vista sob esse enfoque, dizer que a criança é pai do homem tem um significado profundo.
Estes contos não se reportam aos fatores humanos e pessoais, mas ao desenvolvimento dos arquétipos; eles mostram os vários modos pelos quais os arquétipos estão relacionados entre si dentro do inconsciente coletivo.
Existe um conto de fada no qual o encontro das psiques masculina e feminina é apresentado sob o ângulo do inconsciente; entretanto, como o leitor verá, a realida­de da psique feminina é revelada mais claramente do que a da psique masculina.
A noiva branca e a noiva preta
"Era uma vez uma mulher que vivia com sua filha e uma enteada. Então Deus apareceu-lhes sob o aspecto de homem pobre e pediu-lhes que indicassem o caminho para a cidade. A mulher e a filha riram e caçoaram dele, mas a enteada ofereceu-se para mostrar o caminho. Em troca, Deus fez com que a mulher e a filha se tornassem feias e pretas e para a enteada conferiu três dons: uma grande beleza, uma bolsa de dinheiro que não se esvaziava jamais e o reino dos céus quando morresse.
O irmão da enteada, chamado Reginer, trabalhava como cocheiro do rei. Ele achava sua irmã tão bonita que resolveu pintá-la num quadro, admirando-o diariamente. Um dia, o rei ouviu falar sobre tal quadro e pediu para vê-lo. Quando trouxe­ram-lhe o quadro, ele se apaixonou pela moça, tanta era a sua beleza, e ordenou a Reginer que fosse buscá-la. O irmão e a irmã, juntamente com a mulher madrasta e sua filha, cavalgaram em direção ao castelo do rei. No caminho, porém, a madrasta, cheia de inveja, empurrou a enteada no rio. Chegando à corte o rei responsabilizou Reginer pelo fato, jogando-o num poço de co­bras. Através de sua magia negra, a madrasta convenceu o rei a casar-se com sua horrenda filha.
Entretanto, a enteada não se afogara, mas se tornara um pato branco, que durante três noites seguidas apareceu ao menino da cozinha, conversando com ele. O menino contou isso ao rei, que na quarta noite foi até a cozinha ver o que acontecia. Assim que a ave apareceu e começou a falar com o menino, o rei cortou sua cabeça e o pato transformou-se novamente na bela moça que era. Então a jovem contou ao rei a perfídia de sua madrasta. O rei puniu-as (a bruxa e a filha) sem piedade, tirou Reginer do poço de cobras e casou-se com a bela moça."
(De Grimm.)
Pode-se considerar a mulher, a filha e a enteada como uma tríade representando a psique feminina. A mulher representaria a atitude consciente, enquanto a filha verdadeira, que é negativa, representa a sombra e Reginer, o enteado, representa o animus. A enteada é o quarto elemento que representa a verdadeira natureza interior e a fonte de renovação da psique feminina. Entretanto, ela só pode alcançar a realização depois de entrar em contato com o princípio do discernimento, o logos, personificado pelo rei.
O rei não pertence ao princípio quaternário pois é uma das três figuras masculinas, sendo as outras duas o cocheiro — que faz a conexão com a anima — e o menino da cozinha — que o guia para a revelação da situação interior.
Para a primeira tríade de mulheres (a mulher e as duas filhas) Deus aparece recompensando aquela que lhe mostra o caminho e castigando as duas outras, tornando-as pretas, o que significa que estas estão cobertas pelo véu da inconsciência. O pecado delas foi se recusarem a mostrar a Deus o caminho, e isso sugere que Deus precisa do homem para ajudá-lo. Ele pede ao homem que seja um instrumento para alcançar uma consciência mais eleva­da. No sentido místico, isso significa que a psique humana é o lugar onde Deus pode se tornar consciente.
Exatamente pelo fato de as duas mulheres não terem conseguido realizar tal tarefa, elas perdem sua essência humana e tornam-se bruxas. Sob o véu obscuro da inconsciência, elas saem do seu papel de representantes da consciência feminina que têm no começo da história e desempenham o papel da anima negativa. Quando isso acontece, não se é capaz de discriminar entre uma mulher inconsciente e a anima de um homem. Psicologicamente não há distinção. Uma mulher que está perdida no mar do inconsciente tem uma vida interior vaga e não tem compreensão crítica, nem força de vontade. Esse tipo de mulher indefinida facilmente desempenha o papel de anima para os homens. De fato, quanto mais inconsciente ela for, melhor ela desempenha a anima. Esta é a razão pela qual algumas mulheres são relutantes em se torna­rem conscientes; se elas assim se tornarem, elas perdem a habilidade de ser uma anima-feiticeira e, consequentemente, perdem o poder sobre os homens. De modo similar, um homem que está mergulhado no inconsciente com­porta-se como o animus da mulher. Um homem possuído (Hitler, por exemplo) tem todos os traços do animus — ele é levado pelas emoções, é cheio de opiniões imponderadas, expressa-se incautelosa e didaticamente e sempre em explosões emocionais.
A linda noiva branca é empurrada para a água e nada sob a forma de um pato branco, enquanto Reginer, o animus cuja tarefa era conduzi-la ao rei, o contato verdadeiro com o logos, é jogado num poço de cobras. Porém, a sombra modesta do rei, o menino da cozinha, é eficiente e revela a verdade.
Quando o rei corta a cabeça da ave, ela volta nova­mente a ser uma linda mulher. Se um conteúdo psíquico não for reconhecido no domínio humano, ele regressa ao domínio instintivo, como nós vimos no caso de Snati-Snati. Depois de a bruxa e sua filha terem sido destruídas, um mandala de quatro pessoas emerge: o rei, a noiva branca, Reginer libertado e o menino da cozinha.
Apesar de muito poder ser dito sobre essa história, eu a citei somente para mostrar como um fator que representa a consciência de uma mulher pode, ao mesmo tempo, ser identificado como a anima negativa de um homem.
Muitos contos de fada iluminam aspectos diferentes ainda que contenham temas semelhantes tais como bruxas, madrastas e reis, e sempre têm um processo semelhante, ou seja, a maneira enérgica de se proceder, sendo isto bastante sugestivo. O fato de que os fios que correm através dos contos seguem todos a mesma direção — de tal modo que muitos contos podem ser ligados numa corrente circular, sendo um ampliação do outro — sugere que a ordem à qual eles se referem é fundamental. Eu tenho a sensação de que quando os contos de fada são colocados em grupos e interpretados em relação um ao outro, eles representam na sua base um arranjo arquetípico trans­cendental.
Do mesmo modo que um cristal pode ser iluminado de vários lados, assim também ura conto apresenta certos aspectos iluminados e outros necessariamente obscuros. Por exemplo, em um conto certos arquétipos são particu­larmente ressaltados, enquanto em outra história outros arquétipos emergirão. Existem, também, grupos de con­tos referindo-se à mesma configuração arquetípica.
É sedutor tentar criar um modelo abstrato da estru­tura geral do inconsciente coletivo representando-o como um cristal, único em si mesmo, mas que se manifesta em 10.000 diferentes contos de fada. Entretanto, eu não acredito que isso seja possível, pois sou levada a crer que nós estamos lidando com uma ordem transcendental semelhante ao átomo, o qual, segundo os físicos, não pode ser descrito como ele é em si mesmo, porque os modelos tridimensionais distorcem-no inevitavelmente. Enquan­to que o esquema que nós fazemos não tem senão um valor relativo, o evento de quatro dimensões jamais poderá ser captado.
Embora a ordem interior se recuse a ser esquemati­zada, é possível que se tenha uma ideia a respeito dela observando que todas as espécies de contos, de uma forma ou de outra, circundam o mesmo conteúdo — o SELF.























TERCEIRA PARTE

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Bibliografia adicional
Além dos trabalhos citados nos capítulos preceden­tes eu gostaria de mencionar, ainda, um material adicio­nal que pode ser útil ao estudante. É lógico que não é uma lista completa, mas tem o propósito de iniciar o estudante no campo dos contos de fada. Acredito que, primeiramen­te, é necessário se utilizar de uma coleção de contos de fada tais como a editada pela University of Chigago Press e pela Routledge and Kegan Paul, em Londres, ou ainda, a coleção mais apropriada, em língua alemã, da qual foram tiradas a maior parte das minhas referências: Die Màrchen der Weltliteratur (Diederichs Verlag — Dussel­dorf/Kõln). Os contos diferem conforme o editor; alguns eliminam algumas partes ou adulteram passagens, de maneira chocante. É aconselhável comparar um conto com suas diferentes versões.
Para os que leem alemão, eu recomendaria Hand-wõrterbuch des Deutschen Aberglaubens, de H. Báchtold-Staáubli (De Gruyter, Berlim, 1942). Essa edição contém uma quantidade muito grande de versões sobre cada um dos temas. Ela apresenta uma boa organização metodoló­gica, com uma boa bibliografia no fim de cada artigo; menciona também temas religiosos e mitológicos e só não abarca as superstições folclóricas.
Um outro livro excelente é o Handwòrterbuch des Deutschen Mãrchens, de J. Bolte e L. Mackensen, embora vá somente até a interrupção feita com uma carta de M. Publications no final da última guerra, mas nos anos 60 foi revista.
Há, também, uma nova série, de bom nível, quase toda publicada pela Erich Peuckert, intitulada Hand-wõrterbuch der Deutschen Sage. Consiste num dicionário de sagas, ao invés de contos de fada, mas como estes campos estão entrelaçados naturalmente encontram-se referências ao estudo dos contos de fada.
Um outro livro, em alemão, que pode ser impor­tante, é o Enzyklopádie der Klassischen Alterum-swissenschaft, de Pauly-Wissova. Nesta enciclopédia há uma grande quantidade de ampliações relacionadas com a mitologia greco-romana. Veja também: H. W. Haussig, Wòrterbuch der Mythologie (Klett Verlag, Stuttgart).
Para os que leem inglês, eu recomendo somente Motif Index ofFolk Literature, de Stith Thompson (In­diana University Press—seis volumes). Temas específicos podem ser encontrados no índex da Encyclopedia of Religion and Ethics, de J. Hastings. M. Lurker organizou diversos volumes chamados Bibliographie Zur Symbolkunde (Baden-Baden, Heitz Verlag, 1964). Eles contêm tudo o que foi publicado sobre símbolos e temas específicos. A Encyclopedia of Mythology da Larousse é bastante pobre, mas fornece algumas ampliações, assim como o Standard Dictionary of Folklore, Mythology and Legend, de Funk e Wagnalls. Um material bastante variado sobre ampliações da mitologia pode ser encontra­do no índex de Golden Bough, de Frazer. Essa coleção é antiquada e as teorias ultrapassadas, mas os fatos são bem relatados.
Um livro no qual se pode encontrar um farto mate­rial de grande valor é The Origins of European Thought, de R. B. Onians, que trata do corpo, da mente, da alma, do mundo, do tempo e do destino (Cambridge, 1952). Onians é um estudioso do clássico, mas reuniu um material primitivo e religioso comparativo onde pode-se encontrar o significado de cada parte do corpo bem como de alguns comportamentos involuntários, tais como coçar a barriga. O pensamento europeu tem origens bastante interessan­tes! O livro tem um índice excelente e muito pode ser encontrado para a interpretação de sonhos.
Um material comparativo muito interessante é o livro Themis, de Jane Harrison, mas aqui também não considere as teorias mas só os fatos, que são válidos.
A escola freudiana também tem um trabalho com relação a temas mitológicos, principalmente a partir do complexo de Édipo. Entre eles, podem-se citar: Traum und Mythos, de Karl Abraham (Leipzig, 1917); os estudos de Otto Rank em Der doppelganger (Leipzig, Wien, 1919); Das Incest Motiv in Dichtung und Sage (Wien, 1912), Der Mythos uon der Geburt des Helden (Leipzig, Wien, 1922); e Spiegelzauber, de Geza Roheim (Leipzig, Wien, 1919). Muitos desses estudos e outros posteriores aparecem em língua inglesa.
Existe um livro sobre a história dos contos de fada de Jan de Vrie, intitulado Forschungsgeschichte der Mythologie (Freiburg München, 1961) que está muito incompleto. Jung está mal apresentado, alguns cientistas são omitidos e o livro só dá uma visão superficial do campo.
Jung sempre enfocou a importância dos símbolos arquetípicos e seu primeiro trabalho extensivo nesse campo é Symbols of Transformation (C.W.5), onde ele inclui uma excelente bibliografia desse nosso campo. Ele também encorajou seus colaboradores tais como F. Rick­lin (Sênior) e Alfouns Maeder a estudarem os contos de fada. De Franz Ricklin é o Wunscherfüllung und Sym­bolik im Mãrchen (Leipzig, Wien, 1908), cuja tradução inglesa de W. A. White intitula-se Wishfulfilment and Symbolism in Fairy Tales (Nervous and Mental Disorder Monogram Series, 21, N.Y., 1915).
Jung ainda escreveu sobre contos de fada e temas correlates nos ensaios do volume 9.I, da Collected Works — por exemplo: The Phenomenology of the Spirit in Fairy Tales e On the Psychology of the Trickster-Figure.
A apresentação mais condensada das ideias de Jung sobre mitologia encontra-se também nesse volume (C.W.9,I) — On the Psychology of the Child Archetype. Este artigo apareceu anteriormente no livro Introduction to a Science of Mythology, de Jung e Kerenyi. Neste livro, Kerenyi trata sobre o Kore divino num artigo e em outro sobre a criança divina, e Jung tece comentários sobre ambos. Os primeiros capítulos do comentário são de caráter geral, não se detendo apenas na criança divina. Porém, aqui, podem-se encontrar as ideias de Jung sobre a mitologia mais clara e sinteticamente apresentadas, o que não ocorre em outros livros.
Para ampliações no campo da mitologia clássica, existem os livros de Kerenyi, a saber: The God of the Greeks e The Heroes of the Greeks, ambos com farto material. Eu também recomendo Shamanism, de Mircea Eliade, onde são tratados os temas da escada do centro do mundo, da corda, do fogo, do ferro etc. As outras publica­ções de M. Eliade também são valiosas.
Na língua alemã, eu carinhosamente recomendo os cinco volumes do livro Anmerkungen zu den Kinder und Hausmãrchen der Brüder Grimm, de J. Bolte e G. Polivka (Leipzig, 1912-1932). Esse livro é muito precioso, pois do lado de cada conto de fada de Grimm, Bolte apresenta todos os contos paralelos, versões que ele encontrou até aquela época, o que é um número enorme. Existem versões japonesas, da Polinésia e de todos os tipos. De certa forma, esse livro é semelhante ao de Stith Thompson, porém é de leitura mais fácil, pois Stith Thompson organizou tudo em números, tornando o livro um aparato complicado, enquanto o outro livro apresenta o conto de maneira concisa e, em seguida, suas variações.
Deve-se, também, consultar o Márchen und Tiefenpsychologie de W. Laiblin (Darmstadt, 1969), onde se encontra um levantamento das escolas de interpreta­ção da psicologia profunda e as críticas dos folcloristas àquelas teorias. Eu recomendo, em especial, a segunda edição do Volksmàrchen und Volkssage (Bern, 1966).
Como bibliografia mais recente, em inglês, pode-se citar Folklore Fellows Communications (Helsinki), Jour­nal ofFolklore, editado em Londres (também em outras línguas), e Fábula (Berlin). Um estudo mais volumoso sobre contos de fada, no qual eu tomei parte, apresentan­do principalmente o ponto de vista junguiano, é Symbolik des Màrchens, de Hedwig von Beit (3 volumes, Bern).
















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Perguntas e respostas
Pergunta: Qual o modelo que um autor de literatura de contos de fada, como Andersen, segue?
Dra. uon Franz: Bem, Andersen certamente é um grande poeta, porém, na minha opinião, bastante neurótico. E eu não consigo ler suas histórias porque a neurose dele me perturba tanto que é como uma faca raspando no prato. Eu sou sensível às suas colocações mórbidas e sentimen­tais. Sua neurose principal não é um problema dele somente, mas de toda a Escandinávia: um terrível pro­blema quanto a sexo, decorrente de uma proibição cristã, rígida e imposta, havendo subjacente um temperamento pagão bastante selvagem. Esta é uma tensão encontrada em todos os países nórdicos e Andersen teve essa neurose coletiva de uma forma extensa e extrema. Ele nunca se casou e nunca foi capaz de tocar uma mulher. Ele morreu virgem, mas estava tão tomado de fantasias sexuais que quase enlouqueceu e no seu leito de morte praguejou e discursou obscenidades. Pode-se mesmo dizer que, na medida em que seu conflito não era só pessoal mas de toda uma coletividade do Norte, os seus contos de fada, então, tiveram o sucesso que se sabe. Sua neurose era um problema coletivo que ele sentiu com grande dor e de um modo muito mais profundo que a maioria das pessoas, pois era uma pessoa muito sensível. Seus contos de fada podem se tornar presentes na consciência coletiva numa determinada época e podem ser, então, recontados, por todo mundo; ou pode ser que nada disso ocorra, pois o seu conteúdo é muito específico.
Eu creio que um contador de histórias pode expres­sar um problema que é comum às pessoas e isso pode se tornar um conto de fada; mas se as histórias são muito impregnadas pela neurose pessoal do autor, elas não se tornarão populares: as pessoas sadias não as aceitariam.
Comentário: Com relação às discordâncias dos intelec­tuais que dizem que a psicologia junguiana não é "cientí­fica", a ideia prevalecente é que a ciência precisa ser universal e, enquanto se considera o tom emocional e pessoal do indivíduo, o que se faz não é ciência, mas arte; desta forma, parece-me que a psicologia junguiana é uma ciência e uma arte.
Dra. von Franz: Sim, você tem razão. O que se tem a acrescentar a isso é que uma emoção não é necessaria­mente não universal, se considerarmos a hipótese do arquétipo. Se eu tenho uma emoção pessoal que surgiu através de uma constelação arquetípica, então ela é, também, uma emoção universal. Dessa forma, os cientis­tas erram quando identificam sentimento e emoção como puramente subjetivos. Eu mesma posso ter uma forte emoção pessoal que é uma emoção arquetípica. Muitas pessoas podem ter essa emoção e, nesse sentido, ela é universal.
Pergunta: Em outras palavras, quando as pessoas apre­sentam um sonho arquetípico, o analista experienciado será capaz de levantar materiais análogos?
Dra. von Franz: Sim. Algumas pessoas podem chegar a um estado de expressão emocional completamente pes­soal, sendo quase que totalmente engolfadas por um sonho terrível ou por um sincronismo de eventos: ela conta um drama pessoal inesquecível que pode afetar toda a análise, para melhor ou para pior. Mas o analista, conhecendo o material comparativo, pode notar algo de universal e ver, então, que aquilo não é algo puramente subjetivo. Há uma universalidade da emoção, uma uni­versalidade de reações afetivas que devem ser levadas em consideração. Tem-se que aprender, aos poucos, a diferen­ciar entre o que se chama de sentimentos condiciona­dos e pessoais e as reações afetivas gerais.
Digamos, por exemplo, que eu tenho um complexo maternal negativo e que reajo de maneira muito violenta diante de um tema mitológico sobre a mãe terrível. Todo mundo pode dizer, com razoável propriedade: "Oh! Sim, nós sabemos por quê! "Mas, apesar disso, o tema é também arquetípico, e mesmo as pessoas que não têm um complexo maternal negativo reagem de forma semelhante. Então, se eu me conheço através da análise, eu posso dizer: "Agora minha reação é neurótica e pessoal; eu passei por uma experiência pessoal que me marcou e que me fez neurótico, mas essa é também uma reação humana". Na verdade, então, somente quando um indivíduo passou por uma análise e tornou-se consciente (o quanto possível) das diferentes nuanças de suas reações é que ele é capaz de diferenciar os sentimentos e saber quando a emoção sentida é puramente pessoal e quando é universalmente válida. Embora o indivíduo possa estar mais fortemente afetado por sua história pessoal, a sua reação é humana e universal e assim deve ser considerada, e não somente como algo subjetivo. Alguns intelectuais chamam toda emoção e sentimento de subjetividade não-científica.
Pergunta: Se eu bem a compreendi, a senhora inclui Erich Fromm entre o grupo de intelectuais? (Veja cap. 1, p.18.)
Dra. von Franz: Ele não pertence ao mesmo grupo de Graves e Eliade e dos editores das revistas Antaios e Symbolon, mas algumas de suas interpretações seguem o mesmo caminho intelectual de identificar tudo com tudo, dessa forma caindo na mesma armadilha. Eu não o conheço, mas ele me parece ser um tipo intelectual intuitivo e ampliar seu material de maneira excessiva, como também faz Robert Graves. Toda a imagem arque­típica é o centro de uma rede de conexões. Intelectual­mente, pode-se fazer conexões sem fim, mas com a ajuda da função-sentimento pode-se escolher aquilo que é per­tinente e deixar de lado o que não estiver tão próximo. Quando se tem 2.000 ampliações, é necessário que se escolha, com a ajuda do sentimento, quais os temas que se sente mais próximos ou melhores, os que mais escla­recem o contexto do conto de fada. Isso não pode ser feito sem sentimento porque não há regras intelectuais para isso. De 2.000 lobos encontrados para ampliar um conto de fada, eu não lhes poderia dar uma regra intelectual que dissesse qual lobo deve ser considerado e qual deverá aparecer somente em nota de rodapé.
Comentário: Eu acho difícil reconciliar esse ponto de vista com o que eu conheço de Erich Fromm e de seu interesse no amor na relação terapêutica.
Dra. von Franz: Bem, ocorre que as pessoas que enfati­zam tanto a arte de amar geralmente enfatizam algo que é auto-evidente para outras pessoas. Existe toda uma escola nos Estados Unidos e existem psiquiatras ameri­canos como Sullivan e Rosen, por exemplo, que dão ênfase muito grande ao rapport, dizendo que não pode haver terapia sem amor. Isso, na verdade, é um movimento compensatório, pois, por um tempo, os terapeutas tenta­ram manter-se dentro dos seus aventais brancos, distan­tes dos seus pacientes. Nosso ponto de vista é que se você não é capaz de gostar de um paciente, você não lhe deveria conceder sequer uma hora. O Dr. Jung sempre dizia que se ele não conseguisse gostar de um paciente, ao menos em alguns aspectos (ainda que não gostasse de outros), ele nunca o aceitaria para análise. Se você não tiver amor, nada pode acontecer. Para nós isso é auto-evidente, e soa muito estranho quando as pessoas começam a repetir isso tantas vezes, escrevendo livros e livros sobre o assun­to. A seguir, eles irão escrever livros sobre a necessidade do sono ou que comer é algo extremamente impor­tante; ou mesmo, que se deve assoar o nariz (ainda que seja um terapeuta), e que uma análise pode ser toda comprometida se assim não se fizer e o nariz começar a escorrer; e ter essa coragem ética é existencialmente essencial!
Pergunta: A senhora sempre tem sonhos que a ajudam numa interpretação?
Dra. von Franz: Somente se eu não compreendi suficien­temente um conto; então os sonhos emergem. Tome um conto de fada e tente, e você verá. Eu nunca vi ninguém que interpretasse um conto de fada com uma certa paixão sem que seu inconsciente reagisse. Por alguma razão, o inconsciente é bastante ávido em se tratando de interpre­tação de mitos; é que os mitos fazem cócegas no incons­ciente.
Pergunta: Mas o sonho demoraria muito para aparecer?
Dra. von Franz: Não tanto, segundo minhas observações; mas eu não posso propor uma regra absoluta. Pode-se dizer que usualmente ocorre uma perturbação emocional no inconsciente e, se você sair da trilha, terá reações curiosas advindas do inconsciente.
Pergunta: E essas são sempre confiáveis?
Dra. von Franz: Sim, eu sempre confio nelas. Eu não conheço nada melhor. Desde que não haja nenhum cri­tério absoluto de prova, o melhor que se pode fazer é dizer que a interpretação me é satisfatória, que me faz feliz e saudável, e se meu inconsciente não tem nada mais a dizer, então isso é tudo que posso fazer. Mas, natural­mente, esta não é nunca a última palavra.








ÍNDICE
Introdução à coleção "Amor e Psique"
Primeira parte
Uma Introdução à psicologia dos contos de fada
1. Teorias dos contos de fada
2. Contos de fada, mitos e outras histórias arquetípicas
3. Um método de interpretação psicológica
4. A interpretação de um conto: "As três penas"
5. "As três penas" (Continuação)
6. "As três penas" (Conclusão)
Segunda parte
7. Sombra, anima e animus nos contos de fada
Terceira parte
8. Bibliografia adicional
9. Perguntas e respostas


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[1] N. da T.: Pedra polida com desenhos, de valor totêmico entre certas tribos australianas. Acredita-se que ela encerre a duplicação do espírito de alguém ou a alma de algum ancestral.
[2] N. da T.: Em francês, no original.
[3] N. da T.: Considerar a origem suíça do texto.
[4] "Do tempo assim movo o tear milenário / E da Divindade urdo o vivo vestuário."
[5] N. da T.: Suíça.
[6] N. da T.: "A interpretação psicológica do dogma da Trindade". Já publicado em português.
[7] N.T.: "O símbolo da transformação na Missa". Editado em Português.

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